13/03/2009

A vida quotidiana em Lisboa em princípios do séc. XXI

"Três a quatro vezes por semana, imponho-me o exercício de uma hora de marcha por vales e colinas do velho triângulo Baixa – Chiado - Príncipe Real. Apesar de já muito familiarizada com o cenário, estou atenta, porque transporto comigo o olho espião da máquina fotográfica. E mesmo se a atenção se foca, predominantemente, no quadro sereno das casas, dos jardins, das nuvens, do rio e do Sol poente, não deixo de reter algumas imagens e impressões das pessoas com que, entre as dezassete e as dezoito, me vou cruzando por ali. Arranco do Chiado, animada pelo cosmopolitismo desse espaço, que a proximidade do Tejo, espreitando a cada esquina, parece ampliar, e pela expectativa de um café no Nicola, tomado «en passant». Depois, as opções de trajecto são múltiplas: posso seguir para Ocidente, e embrenhar-me pelas vielas do Bairro Alto ou de Santa Catarina; posso subir até São Pedro de Alcântara – e, excepcionalmente, ficar por aí, na esplanada do quiosque, saboreando um chocolate quente sob um céu matizado de azuis, violetas e rosas suaves; ou posso descer ao Rossio, percorrer uns quarteirões da Avenida da Liberdade, ou «flanar» pela Baixa pombalina e explorar os novos baldios ribeirinhos até ao Cais das Colunas - aproveitando para me certificar de que este ainda lá está! - Infelizmente, já é raro encontrar, nas minhas deambulações, a paz que procuro. Ressalvado o refúgio do miradouro - onde se pára para que o mundo pare também - todos os restantes percursos me deixam, quase invariavelmente, o sabor amargo do ar poluído e da insegurança. Circulo, confesso, cheia de apreensões. Porque, para além dos taipais dos prédios e das obras intermináveis, da suja patina das paredes, que rouba a luz às ruas estreitas, das montras decadentes de uns estabelecimentos comerciais, que não renovam desde a minha infância, e do trânsito compacto, desordenado e frequentemente agressivo, há os pedintes, expondo, lamurientos, as suas mazelas; há as rodas dos «expatriados da vida» no Rossio, em S. Domingos e na Praça da Figueira; há os entertainers «pé-de-chinela» da Rua Augusta; há o dormitório exposto sob as arcadas do Terreiro do Paço; e há mil olhos vagabundos, predatórios, sem rosto, que parecem seguir-nos por demasiadas curvas do caminho. Há, em suma, uma atmosfera de tensão, vulgaridade e decrepitude, que me deita completamente abaixo. E que sinto – mais do que sinto: vejo! – adensar-se de dia para dia, como certas ondas que se encorpam e abatem sobre as praias, onde só deixam algaço e destroços."

Texto copiado, com autorização da autora, do Nocturno. Título meu.

9 comentários:

  1. Valha-me Deus, que senhora tão absolutamente dramática.

    E é tão bonito ver a sua preocupação ternurenta pelos problemas dos outros, pelos que são sem abrigo, pelos que têm uma vida miserável. Que coração de ouro.

    Não, esperem. É só porque lhe incomoda o passeio higiénico. Realmente, coitadinha.

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  2. Anónimo11:17 a.m.

    De facto, que texto mais reaccionário. Esta gente tem medo de pobres!

    Deve ser da mesma laia dos que não querem esplanadas no Camões, ainda vão para lá "pés-de-chinela" e outros horrorosos que tais!

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  3. Sim, Vanda, incomodam-me «o passeio» porque os vejo. Gostaria de ter a sorte dos que não os vêem e não se incomodam.

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  4. Marta, não é desses pobres que tenho medo, evidentemente. É dos outros.
    P.S.: Gosto imenso da vida e das esplanadas do Camões. Não tanto das da Baixa, onde o ambiente - até pelo mau estado de conservação das casas - é mais soturno.

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  5. Só mais uma nota, Marta: gostei de percorrer o seu blogue (ainda recente?). Alcântara (ou Sto. Amaro) é a minha zona. Espero que descubra muito sobre ela. :-)

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  6. Anónimo7:56 p.m.

    Espero que nunca tenha a sorte de ir a Paris, a cidade com mais vagabundos e sem abrigo por metro quadrado.

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  7. Caro Anónimo, está enganado: em Kinshasa há mais pedintes e sem-abrigo do que em Paris. O que torna a cidade uma delícia para se passear, e viver.

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  8. Anónimo9:40 p.m.

    Boas Luis Serpa,
    peço desculpa mas não percebi onde quis chegar.


    Obvio que Paris não é a cidade com mais sem abrigo, tratou-se de uma hiperbolezita apenas para dar ênfase a que em Paris há muitos mais sem abrigo que em Lisboa, o problema é bem mais grave, e damos especialmente de caras com ele se usarmos os transportes públicos da cidade durante a noite, no entanto, não deixa de ser uma cidade absolutamente fantástica.

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  9. Anónimo11:25 a.m.

    Partilho em absoluto o que é dito no texto.
    Há um ar de decadência miserável em muitas zonas da cidade de Lisboa e particularmente na Baixa e no Chiado.
    De facto incomoda-me ver miséria, ver mau gosto e ver porcaria, quer por uma questão de educação e principio, quer porque acabam por ser estes sinais de degradação que marcam a imagem da nossa capital.
    E sinceramente não considero desonroso ser pobre, nem culpo quem teve infelicidades na vida, mas abomino e não consigo respeitar quem faz, das suas mazelas e da sua pobreza, exposição pública.
    Ser-se pobre e ter dificuldades não impede ser-se digno... e asseado, nem obriga, muito pelo contrário, a apelos confrangedores à comiseração pública.
    Há elementos de comportamento das pessoas em geral e dos responsáveis pelas cidades, em particular, que tornam as cidades mais ou menos civilizadas, mais ou menos agradáveis para viver.
    Lisboa tornou-se infelizmente numa cidade quase desgradável e custaria tão pouco que se mantivesse digna e bela.

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