Há três anos que não vou lá com a alegria e a frescura com que por lá andei, ao Bairro Alto. Há três anos que me puseram fora daquele bairro, daquele prédio feio da Rua Diário de Notícias/Travessa Poço da Cidade, casarão enorme e fantástico onde iamos inventando a vida, as artes e misturando os dias com os sonhos, as palavras dos artistas com o carimbo das contas, era ali que vivíamos, n´a Capital.
Agora, quase só passo por lá quando os estrangeiros chegam, em Julho foi o Davide Enia e o Ascanio Celestini, em Agosto costuma ser o Jerzy Radziwilowicz e acabamos a noite normalmente no Luso a ouvir o Pedro Moutinho, daqui a uns dias será a vez do Juan Mayorga, autores a quem prometi aquelas salas inventadas, aquela proximidade com o público, aquele peso da vida vivida tão vivida que a honra nos enchia a miséria dos bolsos.
Lá está, o casarão, emparedado. Morto. Matado.
Como tantos outros prédios, mesmo em frente na Rua do Norte há aquele fantástico que pertenceu ao Diário Ilustrado, 5 andares em open-space a estragarem-se ano após ano, e mais aquele que dá para a Rua da Misericórdia e Rua das Gáveas, apenas uma loja de vinhos no rés do chão e à noite há só uma janela acesa, terá sido um bordel e depois prédio da Censura, e lá estão duas estátuas de Nossa Senhora de ambos os lados do prédio a proteger as raparigas.
Vou lá no Verão e vou com os meus amigos, vamos comer ao Primavera, comer ao Fidalgo, às vezes conseguimos ir mais cedo e ser recebidos naquele maravilhoso Cantinho do Bem Estar, com as suas carnes bem temperadas, os surpreendentes peixes, tudo fresco, às vezes vamos ao Sinal Vermelho, às Gáveas.
Mas são agora sempre com a sombra da nostalgia estes jantares de amigos entre as delícias do queijo fresco ou os filetes de pescada. “Mas vão recuperar o prédio?”, “ O que é que vão fazer dele?”, “ E vão dar-to?” “ E vocês onde é que vão trabalhar?”. Já se foi a esperança, o sangue na guelra de há alguns anos em que a conversa era “É fantástico, as coisas que se podem fazer aqui”. “Não há nada assim em Madrid”. “Nem em Londres...”
A Rua do Diário de Notícias está cheia de gente à noite, há copos e gente cá fora, há lojas novas muitas lojas novas na Rua do Norte, roupas, coisas para malta nova, sapatos. E tanta gente pela rua, mesmo á quarta-feira, mesmo á terça, dias que eram mortos.
Mas, três anos depois, não tenho com que falar-lhes, nada a propor-lhes, venham ao teatro, estamos aqui ao pé, falamos de nós, não tenho. Assombrado, o casarão lá está, ocupando quase um quarteirão, por ali andaram Eça e Ramalho, ali, naquela primeira sede do Diário de Notícias iam entregando, divertidos, o Mistério da Estrada de Sintra, e andaram os grandes da República, o actor Taborda, Egas Moniz, Angelina Vidal, aquela redacção era ponto assente de convívio, intriga e acção, daqueles anos inquietos.
O casarão está morto e tem uma lápide. Como os jazigos: património municipal.
A lápide foi lá posta há três anos, quando nos puseram na rua, mal fecharam as portas e nos proibiram de trabalhar e fizeram promessas e promessas de obras e acolhimento, promessas e convites, promessas pela boca fora logo a seguir desfeitas, costas voltadas, ai como eu desprezo esta gente que promete sem saber o quê, que sorri só para não discutir, que insulta pelas costas, ai o nojo.
E o Bairro Alto vai vivendo o seu ócio nocturno, parece que continuam os assaltos, parece que só há copos, eu já quase lá não vou, para quê, não me vou enfrascar nem fingir que ouço house music, os mais velhos vão sendo retirados daquele bairro que um dia prometeu ser a nossa cidadezinha das artes, não foi?
Ainda digo aos meus amigos estrangeiros que é naquelas ruas que corre a vida mais inventiva de Lisboa, mas as ruas começam a ficar iguais a todo o lado, há lojas assim em Chueca, no Soho, em Fulham Road, na Goute d´or, na internet, o dourado paraíso dos marginais elegantes, as roupas inventadas de quem marca uma diferença andando pela cidade.
E livrarias? E galerias de arte? E gente a conversar durante o dia?
E escritórios de gente do cinema? E ONGs? E escolas de artes marciais, de gravura, escolas de línguas. de jornalismo, escolas, editoras? E os palácios fechados, Marim-Olhão, Pombal, tantos com a mortuária placa “Património Municipal”, não é?
Cidade oca, vazia. Esvaziada, esventrada, abandonada, adiada. Chamou-se “Enseada Amena”, nunca o foi, pois não? Cidade “património municipal”: a vida não continua aqui.
Tudo em suspenso.
À espera de eleições municipais. Como se não fôssemos nós a decidir a nossa vida e aguardássemos sempre as maiorias para nos refugiarmos nos pequenos cantinhos que nos reservarem.
Acho graça ao slogan de uma das campanhas eleitorais, “Vamos a isto, Lisboa!”, traduzido do francês de Balzac.“A nous deux. Paris” dizia o jovem Rastignac, o aventureiro, o oportunista chegado da província, do alto do Père Lachaise e certo que o seu destino havia de encontrar-se com o da cidade que ainda o repelia. Que ainda o deixava de lado. Se pegássemos em Lisboa com as nossas mãos?
Se lhe pegássemos pelos cornos e começássemos a tornar nossa? (“ Se fosse em Roma já estava ocupado este edifício”, dizia-me a Sara. “ E aquele também”. “E em Varsóvia não demorava um mês”).
Como é que continuamos a deixar estes edifícios municipais fechados, encerrados, emparedados, especulados, esquecidos? Não são nossos?
Ainda, já sozinho, volto a dar uma volta pelo casarão d´A Capital, já vão esquecidas as horas, muito mas muito tarde mesmo.
Que farão daquilo tudo, daqueles quase 5.000 metros quadrados, que farão daquele fantasma? Quanto tempo durarão ainda as nossas impressões digitais naquelas paredes, as nossas lágrimas?
Que vai ser de mim e de ti?
Jorge Silva Melo
A cultura a fazer ocupações? Isso não seriam desmandos? E a nossa subserviênciazinha não conta? A cultura à solta não controlada? E se lhe pegássemos pelos cornos, não faltariam abades prá excomunhão! E o sacrossanto direito de propriedade mesmo que seja para emerdar Lisboa e a nossa vida na cidade, não conta? Sabe quem faz cá falta? O Almada!
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