Reprodução integral de artº 22 de Maio:
"A OPRURB, Associação «Ofícios do Património e da Reabilitação Urbana», saúda e agradece o artigo, lúcido e corajoso, publicado a 14 de Maio no «Público» pela Professora Raquel Henriques da Silva que, com o rigor a que já nos habituou a sua autora, veio fundamentar as razões históricas e patrimoniais pelas quais constitui crime a construção de um estacionamento subterrâneo no Largo Barão de Quintela.
Numa perspectiva de enriquecimento do debate, já aberto na opinião pública, esta Associação, na sequência de um debate por ela promovido, no passado dia 4, com especialistas de acessibilidade urbana, vem propor à reflexão algumas conclusões a que se chegou e que apontam para um conjunto de motivos igualmente condenatórios da construção de estacionamentos no centro da cidade.
Se, com verdade, queremos preservar os nossos centros urbanos antigos, temos, como único caminho, o desencorajar o acesso automóvel privado a esses espaços, porque a permanência da cidade antiga submetida à invasão actual de veículos é obviamente inviável. Isto mesmo já foi reconhecido por muitas capitais, europeias e não só, onde se compreendeu que a defesa da acessibilidade ao centro se faz pelo reforço sério dos transportes públicos, essencialmente os colectivos, limitando o parqueamento aos residentes, que o pagam, como qualquer outro serviço. Nessas cidades, tornou-se mais cómodo, mais rápido, e mais económico prescindir do automóvel para ir ao centro. Só que, para aí chegarmos, teremos que promover mudanças de mentalidade e cultura, a começar nos dirigentes autárquicos, a quem se recomenda vivamente que comecem a viajar, para perceberem o que é o «progresso», e a estudar um pouco de sociologia e antropologia urbanas, para entenderem o que é uma cidade, antes de nela intervirem com a arrogância e o desacerto costumados.
Quando a cidade começou a crescer, em consequência das fortes migrações internas, a multiplicação das deslocações levou ao aparecimento dos transportes colectivos e privados, entretanto desenvolvidos com a mecanização, até uma primeira saturação que resultou na condenação do eléctrico, acusado de obstruir as vias com a sua via fixa. O quase desaparecimento desse transporte eminentemente urbano, porque não poluente e de convívio harmonioso com o peão, foi um erro crasso denunciado por alguns de nós. Rapidamente veículos privados, de mistura com autocarros, congestionaram as vias, tendo-se, então, iniciado a rede de Metro.
Contra a opinião geral, coberta por alguma imprensa, deu-se, após o 25 de Abril, prioridade aos transportes públicos, com a criação de corredores, o passe social, e ruas pedonais, e a acessibilidade melhorou, então. Depois, foi-se ampliando a rede de Metro e melhorando as interfaces, tendo-se, igualmente, fomentado a construção de estacionamento nos novos edifícios, a fim de libertar a rua. É conhecido que muitos desses espaços de estacionamento foram, entretanto, transformados em espaços economicamente mais rentáveis e as actividades que têm vindo a substituir os residentes trouxeram mais automóvel para as zonas centrais, onde se tornou omnipresente, reduzindo o espaço de circulação de pessoas e veículos. Criaram-se, depois, espaços próprios para estacionamento público, mas a taxa progressiva, encorajando a rotação, teve o efeito negativo de aumentar o tráfego. Alargaram-se ruas demolindo a cidade, deslocaram-se as actividades para evitar o afluxo, o que acentuou a depressão do centro. Esta é, em traços largos, a história triste do casamento impossível da cidade histórica com a máquina circulante privada.
Os centros antigos das cidades, construídos antes do aparecimento dos meios mecânicos de transporte, com as suas redes de ruas estreitas e sinuosas, não podem dar passagem e guarida aos veículos multiplicados ao infinito. Nem sequer os bairros da cidade consolidada do início do século XX suporta essa sobrecarga, apesar de ter ruas muito mais largas como é o caso das Avenidas Novas. Já deu, pois, para perceber que a concentração de carros no centro leva à paralisação e à asfixia, pelo que há que determinar um equilíbrio entre os usos e as possibilidades de acesso. Com alguns números, poderemos ser mais claros. Por exemplo, um automóvel necessita de 25 metros quadrados para estacionar, e esta é a área que um habitante necessita para viver. Assim se contarmos um veículo por habitante temos de duplicar a área de habitação para o estacionamento o que é impossível nos bairros antigos ou consolidados. Se considerarmos as áreas de actividades, a situação piora, pois para um empregado ou um utente são necessários 12,5 m2, consequentemente a área de estacionamento será de 25. Isto pode ser possível em expansões novas, cujo espaço é planeado tendo como premissa a presença deste tipo de veículos.
Ao contrário, na cidade antiga, para introduzir o automóvel, que é inteiramente estranho à sua génese, tem de se demolir a própria cidade e fazer outra coisa, o que constitui um absurdo. Deste modo, só o transporte público, e de preferência o colectivo, pode resolver o problema, pois além de, na mesma área de via, multiplicar por 30 o número de pessoas transportadas, não utiliza área de estacionamento. Para guardarmos os nossos centros antigos, há que viver neles de acordo com o que eles são, adaptando as nossas soluções às exigências do seu tecido construído, sem o violentar. Ou dito de outro modo, teremos que merecê-los."
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