12/06/2006

A entrevista do comissário Salgado

In Público (10/6/2006)

"Entre o Cais do Sodré e o Campo das Cebolas é toda uma frente sem automóveis. A frente ribeirinha é o filet mignon. Mas, para recentrar a cidade no Terreiro do Paço, é preciso desviar 70 por cento dos automóveis que atravessam a zona. Para reabilitar a Baixa-Chiado pode haver escadas rolantes até ao Castelo, projectos-âncora como hotéis, residências assistidas para idosos e mesmo algumas demolições. Tudo com muito diálogo.
Por Isabel Salema e Tiago Luz Pedro

O arquitecto Manuel Salgado diz que será uma "revolução" em Lisboa uma frente ribeirinha de um quilómetro, sem automóveis, frente ao Terreiro do Paço. Salgado é um dos membros do Comissariado da Baixa-Chiado, que a 22 de Setembro deverá entregar ao primeiro-ministro um plano estratégico para reabilitação do centro histórico da capital. Com as áreas do urbanismo, mobilidade e espaço público, o arquitecto, que fez o projecto urbano da Antas e os espaços públicos da Expo-98, explica que o tráfego "é chave" e que obriga a decisões a uma macro-escala.

PÚBLICO - Qual é a ideia principal para a revitalização da Baixa-Chiado? Um grande centro comercial ao ar livre?
MANUEL SALGADO - Não, o objectivo é a reabilitação. É ter mais gente a trabalhar, mais gente a viver - a habitar e na hotelaria -, mais gente a comprar e mais gente a utilizar todos os equipamentos de cultura e lazer. O que se procura é recentrar a cidade no Terreiro do Paço, criando uma zona com um grande potencial de vida urbana. Este é o grande objectivo que temos. Mas a Baixa é um centro. O Terreiro do Paço é o centro da cidade quase desde sempre. A Baixa foi um centro. Foi um centro político-administrativo, um centro comercial de excelência, de concentração de serviços e foi um centro cultural. Entrou num processo gradual de degradação, acelerado pelo incêndio do Chiado, mas não só. Por exemplo, a saída do centro financeiro, de uma série de bancos que se espalharam pela cidade; a saída dos tribunais e a construção do Palácio de Justiça, que levou atrás os advogados; a saída de grande parte dos serviços político-administrativos, que proliferaram pela cidade.

O que é mais importante para essa renovação, já que não é o centro comercial a céu aberto?
É muito mais relevante se se conseguir utilizar de forma mais racional o Terreiro do Paço, que tem 150 mil metros quadrados de área de construção utilizável. Deve ser o centro de um Estado moderno, não de um Estado burocrático. Pessoalmente, via com gosto que houvesse ali uma antena do gabinete do primeiro-ministro ou das instalações que estão na Gomes Teixeira. Achamos também importante que esteja ali o centro financeiro do país. Está ali o Ministério das Finanças, o Banco de Portugal, ainda há mais duas ou três sedes de bancos. Faz sentido reforçar essa função. Mas isso não depende de nós. Este projecto tem de ser concertado entre a câmara e a Administração Central.

E nas arcadas?
As arcadas têm todas as condições para serem uma extensão do espaço público. Espaços que vocês, eu ou um turista possam utilizar, com outros cafés, além do Martinho da Arcada, com galerias ou mesmo lojas.

Já iniciaram contactos com a administração central?
Tem havido inúmeros contactos, ao nível de ministros e secretários de Estado. O actor mais importante de toda esta reabilitação urbana é a administração central. Tem a jurisdição sobre toda a frente ribeirinha, através do Porto de Lisboa, e é, de facto, o dono do Terreiro do Paço, mas também de outros grandes edifícios estratégicos. Acabar com o atravessamento automóvel a sul do Terreiro do Paço implica uma intervenção de macro-escala na cidade.

É possível fazer a reabilitação da Baixa-Chiado sem resolver este problema do tráfego?
A questão do tráfego é chave. Se se quiser ter mais habitação, não se pode ter os níveis de ruído que existem hoje na Baixa. Os níveis de poluição ultrapassaram os limites estabelecidos pela União Europeia. Basta estes dois aspectos, só por si, para justificarem uma redução significativa do tráfego. Setenta por cento do tráfego que atravessa esta zona tem origem e destino a norte do Marquês de Pombal. É claramente tráfego de atravessamento. Basta cortá-lo para que se reduza substancialmente. (1)

Como é que se corta o tráfego?
É preciso que as pessoas vão por outros caminhos. É uma resposta de Monsieur de La Palisse, mas cortou-se por causa das obras do Metro e as pessoas encontraram outros caminhos. Protestaram mas encontraram. É como a água. Haverá um processo de adaptação e um conjunto de obras que têm que ser feitas.

Como a Circular das Colinas, que liga as avenidas Infante Dom Henrique e 24 de Julho mas a norte da zona de intervenção?
A Circular das Colinas pode não ser necessária fazer toda de uma vez (2). A ideia é, a partir das coroas, ter antenas que chegam à zona da Baixa-Chiado. São três coroas: a Segunda Circular - e para se actuar aqui é fundamental mexer na CRIL -, a Primeira Circular e a Circular das Colinas.

E o espaço público no Terreiro do Paço?
Acho que a frente ribeirinha é o filet mignon desta intervenção, desde a 24 de Julho até ao Museu Militar. Mas entre o Cais do Sodré e o Campo das Cebolas é toda uma frente sem automóveis. É um passeio de um quilómetro frente ao Terreiro do Paço sem automóveis. Acima de tudo, um passeio à beira do rio. Um pouco aquilo que temos, por exemplo, na Expo. Com zona de estar e sombra, que permite uma relação directa com o rio.

Escadas rolantes e elevadores
para subir até ao Castelo

Acredita mesmo que vai haver abertura da Administração do Porto de Lisboa para uma intervenção deste tipo? A relação institucional entre o porto e a câmara não tem sido das melhores...
Acredito, porque inclusivamente este estudo está a ser pago pelo Porto de Lisboa. É um sinal evidente. Depois há para aqui uma série de projectos importantes, além das agências europeias, inserindo-se neste conceito do Estado moderno.

O Cais do Sodré será uma espécie de centro europeu de Lisboa, também através da instalação aqui do Jean Monet?
Acho que isso é desejável. Tirar daqui a Av. Ribeira das Naus permite pôr a descoberto toda a doca seca, um projecto que a Marinha apadrinhou há uns anos: ter estacionados aqui os navios emblemáticos, o Sagres, o Crioula. Gostávamos de ter aqui um museu que fosse da Viagem e da Língua Portuguesa, quase todo multimédia. Um mini museu que fosse um pouco a entrada nos vários museus de Lisboa. Há também a ideia de um eléctrico ribeirinho a ligar todos os museus, que já existe e se podia prolongar para nascente até à Expo.

Quais são os limites da intervenção?
Os limites foram evoluindo. Há o da candidatura da Baixa-Chiado a Património Mundial; o estabelecido pela SRU [sociedade de reabilitação urbana], que alargou para o lado de S. Paulo. Temos pequenos ajustamentos, como incluir toda a freguesia da Sé. Mas existem interfaces. Quem está no Parque Eduardo VII percebe que o vale da Av. da Liberdade é uma unidade e que a Baixa está sempre relacionada com as duas encostas, a do Chiado e a do Castelo.Mas há um descontínuo entre a Rua dos Fanqueiros e o Castelo. Há um descontínuo muito forte, porque os edifícios da Rua dos Fanqueiros são o muro de suporte da encosta do Castelo e há um grande desnível. Para resolvê-lo temos duas ideias. Do lado do Chiado existe o túnel do Metro com as estações na Rua Garrett e na Rua do Crucifixo - é muito fácil esta ligação porque é assegurada pelas escadas rolantes. Mas, do lado oposto, não existe ligação nenhuma: a ideia é explorar a hipótese daquilo a que chamamos percurso pedonal assistido, com escadas rolantes que vão da Rua dos Fanqueiros à Rua da Madalena. A partir do mercado do Chão do Loureiro montava-se outro sistema de escadas e elevadores até junto do Chapitô. Depois, era mais escadas rolantes que subiam até ao Castelo. (3)

Mais mil camas e um centro comercial a céu aberto

Qual é a ideia do centro comercial?
O comércio vai perdendo qualidade à medida que caminhamos para a Rua dos Fanqueiros. Achámos que podia ser interessante potenciar um centro comercial a céu aberto, entre as ruas da Vitória e de Santa Justa, sendo o limite os Fanqueiros e as ruas Nova do Almada e do Carmo. Hoje vamos à Baixa e temos um eixo fortíssimo sul-norte, Terreiro do Paço-Rossio. Como é que vamos sentir que há aqui um centro comercial? O que é que distingue um centro comercial? Limpeza comum, segurança comum, promoção comum, marca comum, mesmo as regras. Num centro comercial, por exemplo, não se vê um papel colado de qualquer maneira num vidro.

Mas vão diferenciar este espaço público?
Não. Os mecanismos das SRU já permitem a associação dos proprietários fazerem-se obras em conjunto, inclusivamente ligações entre edifícios.

O centro comercial funcionaria como um primeiro sítio onde intervêm para depois se alargar?
Exactamente. Isto é uma das intervenções. Pessoalmente, acho que era mais importante trazer mais gente qualificada para trabalhar no Terreiro do Paço e para a banca... No Porto de Lisboa há um projecto, em marcha, de trazer para a zona de Santa Apolónia um terminal de navios de cruzeiro. O fluxo de turistas pode ter uma importância enorme na revitalização do comércio. Seria desejável ter mais de mil camas hoteleiras. Isso é possível restaurando uma série de edifícios.

Quais são os projectos-âncora?
O Terreiro do Paço e a frente ribeirinha; o Convento de São Francisco com a ampliação do Museu do Chiado e a manutenção da Escola de Belas-Artes; o Convento do Carmo, com qualquer coisa ligada às questões do design, até tendo em conta a proximidade com o Bairro Alto e com o Museu do Design previsto para Santa Catarina. Há algumas intervenções privadas que são âncoras, a que chamamos quarteirões estratégicos: a Suíça, o Corpus Christi e a Escola Veiga Beirão. Depois, há o processo normal de reabilitação.(4)

Vai haver um gabinete de apoio técnico?
Vamos apresentar, juntamente com este programa estratégico, uma proposta de modelo institucional e um modelo de financiamento e realização temporal. A Baixa tem de responder hoje perante seis ou sete entidades, para não falar das juntas de freguesia.

Vão fundir estas entidades?
A ideia é que tudo isso seja articulado provavelmente numa entidade única. Isto só é viável, se tiver um comando único, uma entidade de gestão única, um balcão único e uma situação de excepção. Como foi a Expo, como são alguns programas Polis, em que as coisas estejam todas articuladas. É impensável que para se mudar um passeio da Rua do Ouro seja necessário ouvir 33 serviços da câmara.(5)


"Admitimos demolições"
Manuel Salgado acha que se devem associar alguns subsídios à recuperação urbana para permitir a existência de rendas condicionadas. Haverá recuperações exemplares, mas também prédios com elevadores. E a ideia não é uma Baixa livre de carros, mas uma Baixa sem os 70 por cento dos carros que hoje a usam para atravessar. E com passeios mais largos.

É possível mais nove mil residentes na Baixa-Chiado, como defendem?
A Baixa tem mais de 4900 residentes. Admitimos que pode subir até aos 14, 15 mil. A Baixa tem capacidade para ter mais 2000 pessoas, mas onde há mais capacidade é no Chiado. Por outro lado, há muita gente idosa, muita gente com problemas económicos e sociais. A nossa intenção é ter aqui residências assistidas como forma de apoiar os residentes que cá estão.

Transferir os idosos para edifícios únicos? Se assim o quiserem.

Os idosos, em princípio, têm dificuldades em subir escadas. Pode-se intervir num prédio pombalino pondo um elevador lá dentro?
Acho que há prédios e prédios. Há prédios praticamente intactos e aí deve haver um cuidado e um restauro exemplares. Mas também há prédios muito adulterados, com muitas transformações, onde é possível meter um elevador.

Prevêem demolições?
Admitimos demolições. Acho que devia haver demolições exemplares. Na Rua do Alecrim, há um prédio clandestino que está embargado, vazio, em obra. É chegar lá e cortar. Porque ou acreditamos que é necessário reabilitar ou não.

Que tipo de habitantes é que prevêem?
Todos. À partida, a zona mais nobre da cidade seria para pessoas com muito poder de compra.Estão a tocar num ponto importante. Um dos óbices à reabilitação da Baixa, segundo os promotores imobiliários, é que a chamada "renda fundiária" aqui é muito alta. É evidente que o mercado é que vai definir a regra naquilo que for promoção livre, mas acho que devíamos procurar associar os subsídios à recuperação urbana com renda condicionada.

Aproveitar subsídios para congelar rendas?
Não é nada de original, é o que se faz em França. Dou-lhe crédito com juros bonificados, a longo prazo, para reabilitar o seu edifício que tem um grande valor patrimonial. É obrigado a fazer um projecto de conservação rigoroso, não destruindo interiores, e tem uma renda condicionada. (5)

Haverá sanções para os proprietários que não aceitem fazer intervenções?
A legislação das SRU é extremamente dura nessa matéria. Prevê mecanismos de expropriação muito ágeis, no caso de haver resistência por parte dos proprietários.

O que é que vai acontecer ao trânsito aqui dentro?
Neste momento, as ruas do Ouro e da Prata são vias rápidas sem nenhuma urbanidade.
Nem sequer se pode parar um táxi para deixar alguém. Se se conseguir reduzir o tráfego de atravessamento, é possível ter só uma faixa de rodagem.

Qualquer automóvel pode entrar na Baixa?
Qualquer pessoa pode levar o seu carro. Não estamos a pensar em aumentar as ruas pedonais. Agora, se reduzirmos as faixas de rodagem, temos passeios mais largos. Têm pouco mais de dois metros, o que é manifestamente pouco.

O que quer dizer a Baixa passar a funcionar como um labirinto?
Não é uma palavra feliz, o espaço público dever ser muito inteligível. É tornar difícil o atravessamento da Baixa, mexendo nos sentidos únicos de circulação.

Estar sempre a atirar as pessoas para fora?
Exacto. E para isso não é necessário haver portagens, taxas de circulação
."

Os nossos comentários:

(1) Intervir no trânsito da Baixa a partir do Marquês é uma ideia básica.
(2) A "Circular das Colinas" é uma aberração e é o leit motiv de toda a entrevista, apesar de não o parecer.
(2) As escadas rolantes são uma ideia do Arq. Alves Coelho, que datam da polémica à volta do elevador do Borratém, e são uma ideia com que concordamos (ver aqui)
(3) Este é um conjunto de ideias velhas, na sua maioria boas, que comentámos aqui.
(4) Idem.

PF

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