26/06/2006

Os azulejos retirados da Igreja da Encarnação prometem fazer correr muita tinta. E ainda bem!

In Público (26/6/2006)

"Um acto perverso na Igreja da Encarnação
A opinião de Ana Vaz Milheiro

Da leitura do artigo "Ippar aprovou retirada de azulejos no Chiado" (PÚBLICO 22/06), referente às obras de restauro em curso na Igreja da Encarnação, ao Chiado, em Lisboa, enquanto habitante desta cidade e arquitecta, gostaria de levantar algumas questões deixadas em aberto pelo próprio texto.
A primeira refere-se à perversidade do acto em si. A destruição de uma fachada azulejar urbana, das dimensões que atingia a da Igreja da Encarnação para a Rua do Alecrim, tendo como justificação a falta de qualidade artística dos elementos cerâmicos de revestimento é vexatória do senso comum.
A produção azulejar portuguesa dos finais do século XIX, início de novecentos era, maioritariamente, destinada à aplicação em fachadas urbanas. O seu valor artístico deve ser medido em função das qualidades dos conjuntos formados por variadas fachadas azulejares e não numa perspectiva particular que analise o azulejo fora do contexto em que foi introduzido. A sua importância patrimonial reside na sistematização da sua aplicação nos exteriores dos edifícios que compõem alguns trechos das cidades portuguesas. Estes edifícios abrangem um quadro bastante diversificado de usos, e o azulejo tem muitas vezes sido apontado como um elemento de indução de forte identidade urbana.
É, portanto, na perspectiva de um determinado "ambiente urbano" que a remoção parcial dos azulejos que cobriam a fachada da Igreja da Encarnação deve ser discutida; questionando-se assim o modo como o dito revestimento prejudicava a "nobreza do edifício" em que estava aplicado e se a solução encontrada - "reboco pintado de amarelo" - é mais dignificante.
Neste caso, cabe apontar que a presença do azulejo na Rua do Alecrim saiu reforçada com a intervenção recente de Álvaro Siza no projecto dos Terraços dos Duque de Bragança onde precisamente se propõe uma revisitação ao tema, usando o revestimento cerâmico de modo a enfatizar a sua "natureza" correntia - para dar uso a um vocábulo abundantemente utilizado no parecer técnico que, supostamente, contribuiu para validar a decisão favorável à remoção. O segundo aspecto diz respeito a um outro nível de perversidade e que toca as instituições públicas de defesa do património português. Sai reforçada a imagem pública de que uma decisão desfavorável pode ser (facilmente) ultrapassada com um único meio: a insistência. A este acrescenta-se um procedimento - a apresentação de um parecer favorável sem que este último seja confrontado com o seu "contrário", isto é, com um testemunho que sugira argumentos de ponderação.
Regressando à Igreja da Encarnação, cabe ainda recordar que o parecer de um técnico perito em azulejos, independentemente do elevado cargo directivo que ocupa, não deveria ser considerado isoladamente. Tratando-se de um imóvel que se localiza numa das zonas mais estratégicas da cidade, a alteração da sua "natureza" através da remoção de um dos elementos arquitectónicos mais visíveis na sua caracterização urbana deveria ter merecido uma reflexão mais profunda que a que foi descrita enquanto processo neste jornal.


O Cónego Seabra erra grosseiramente
A opinião de Henrique Dinis da Gama

1.Tive ocasião de saudar o aparecimento do Comissariado Baixa-Chiado, embora surpreendido pelas excessivas ambições do plano. De facto, a realidade da conservação e do respeito pelo património urbano é bem diferente das intenções oficialmente proclamadas. Aí está a confirmar-nos a demolição do paramento de azulejos da empena da Igreja do Encarnação que o "Público - Local", deu a conhecer. Cabe perguntar que entidades tomaram tal decisão ou que peso nela tiveram.
2. A citada notícia refere que o novo pároco do Encarnação, Cónego João Seabra, terá afirmado que o painel em causa "não tem qualquer valor estético". Se estivesse dentro das suas atribuições classificar o valor estético do painel, interessaria provar que erra grosseiramente. Será, no entanto, de lembrar-lhe que o material em causa desempenhava um papel importante na conservação da "sua" Igreja.
3. Creio que caberá ao Director do Museu do Azulejo definir, na óptica do seu cargo, o valor patrimonial em causa. Ao catalogar os azulejos de "estilisticamente incaracterísticos e de um eclectismo obsoleto" por certo reconhecerá que grande parte da beleza das fachadas de Lisboa é feita do material que assim classifica. Sempre na óptica do seu cargo, não deverá o Director do Museu do Azulejo menosprezar a dimensão do painel em causa, e daí admitir a sua nobreza ao contrário do que sugere no parecer transcrito pela mesma notícia. Como cidadão não deverá esquecer a banalidade do material que o vai substituir.
4. Seria de conhecer os fundamentos da decisão de Sumavielle, Presidente do IPPAR, que contrariam a do seu antecessor. Seria de conhecer se outras entidades não deveriam ter sido chamadas a pronunciar-se.
5. Estamos a falar de um bem que pertence a um dos mais nobres, senão o mais nobre eixo da capital. O painel de azulejos com o seu brilho tornava a massa da empena mais ligeira, criava um contraste com o mármore da fachada da Igreja e conferia uma atmosfera única à esquina do Chiado com a rua do Alecrim, reflectindo para o interior da Praça Luís de Camões o ambiente marítimo do Tejo.
6. A demolição do painel de azulejos não resolve o problema da citada empena. Como é sabido, desde que se começou a trabalhar na linha do metropolitano que cruza a Baixa, foi posta em causa a estabilidade da colina de S. Francisco. A contínua queda de azulejos que passou a verificar-se parece ter origem nesse fenómeno. Valerá a pena saber se tal situação se encontra definitivamente controlada, caso contrário a empena da igreja continuará a sofrer as mesmas consequências.
7. Se a colina estiver já estabilizada poderão regressar os azulejos, tal como existem em tantas outras fachadas de Lisboa, e contra a vontade do padre João Seabra, do Director do Museu do Azulejo e do presidente do IPPAR. Caso contrário, valerá a pena saber qual o destino dado aos azulejos retirados
."

O mais esquisito engraçado neste episódio lamentável da Igreja da Encarnação (restaurada há bem pouco tempo com o patrocínio da World Monuments Fund) é que o mesmo Pe.Seabra em nada se choca com as lâmpadas que iluminam o interior da "sua" igreja, e de que o WMF não deve ter conhecimento.

PF

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