In Público (9/7/2006)
"A opinião de José Sá Fernandes
Há décadas que muitas cidades do país têm vindo a ser sistematicamente descaracterizadas pela desordenada construção, que tem como justificação política quase sempre a mesma, mas nunca explicada, palavra: modernidade. Por vezes, à conversa do "progresso", é acrescentado mais um ou outro chavão, conforme o betão a utilizar: projecto de qualidade, investimento turístico e ideia inovadora.
A favor das empresas de especulação imobiliária e dos chamados investidores turísticos, Lisboa segue esta linha, sem pejo nem timidez. Até ao mandato Santana/Carmona, o crescimento urbano de Lisboa regeu-se por um Plano Director Municipal (PDM) aprovado no tempo de Jorge Sampaio, ainda em vigor. Mas depois, e até hoje, têm vindo a ultrapassar-se as suas normas e desenhos através de expedientes legislativos e oportunismos legais gizados à medida da conveniência imobiliária.
E, oh! Lisboa, dizem que isto é a política.
A actual maioria camarária, com ares de eficácia - através da elaboração de dirigidos planos de pormenor incompatíveis com o PDM - já deu o respectivo aval à possibilidade de virem a fazer-se mais um milhão e 500 mil metros quadrados de construção nova. Exemplos? Foram aprovados desenhos para subir para entre dez e 20 andares quase todos os sobreviventes prédios originais da Av. da República e ocupar quase todos os vazios e logradouros aí existentes; plantas para esburacar estacionamentos na Av. Liberdade, ajeitar a altura da maioria dos seus edifícios pela medida do mais alto e transformá-la definitivamente num parque hoteleiro e de escritórios; esboços para uma via rápida, túnel e luxuosas urbanizações na Ajuda; projectos para edificar massivamente nos vales, ainda potencialmente verdes, de Alcântara e Sto. António (Chelas); e por fim foram também aprovados planos para ainda mais construção na área da Expo.
Tudo isto sob a capa da legitimidade de terem ganho as últimas eleições, onde nada disto foi anunciado. Tudo isto quando devia estar a discutir-se o PDM, supostamente em revisão, cujo debate, com estas decisões, ficará reduzido a quase nada, ou mesmo a nada - até porque não há quase vazio da cidade que já não tenha o seu volumoso empreendimento bem encaminhado.
Entretanto já se prepara o plano da Av. Fontes Pereira de Melo, com a elevação dos edifícios e arranha-céus, e negoceia-se um plano insosso e invisível para a Baixa, como se de um projecto concreto e original se tratasse e como se não pudesse ser discutido. Descura-se a frente ribeirinha, que continua a ser olhada sem uma ligação contínua, apenas em frenesins de locais de diversão, de sítios para contentores.
Agora, com o apoio do "iluminado" Comissariado para a Baixa, quer-se construir, sem critério e como uma barreira, na zona do Cais do Sodré (de um lado o alargamento da estação fluvial, do outro os inqualificáveis edifícios para agências internacionais) e pretende-se um porto para grandes paquetes - qual paredão ajanelado - entre o Jardim do Tabaco e Sta. Apolónia. Sem se entender que isto será a morte súbita da vista rio e da ainda possível junção de Alfama e da área do Cais do Sodré ao Tejo.
Já não interessa a milionária maqueta de papelão do Gehry ou a constatação da ruinosa troca dos valiosos terrenos da Câmara de Lisboa em Entrecampos pelo pouco lucrativo Parque Mayer; já não se quer saber do despacho que considerou imprescindível a manutenção da casa Almeida Garrett; já não importa o também eleitoral anúncio da inauguração do túnel do Marquês, até porque, logo em Novembro, ficámos a saber, pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil, as implicações da obra com o metro, que tudo foi mal concebido e que nem no Verão os trabalhos poderão estar concluídos - e vão dois anos de atraso.... E agora a maioria camarária, em pose cultural, dá muitos subsídios, faz muitas reuniões, nomeia muitas comissões e produz muitos congressos.
E, oh! Lisboa, todas estas "prioridades", todas estas violações ao PDM, enquanto o resto, o que importa - as pessoas, os jovens, a segurança e a assistência aos idosos, o património municipal e cultural, a estrutura verde e os desprotegidos, ou as coisas simples, como o arranjo dos passeios e passadeiras para peões, a retirada do "lixo" visual, a limpeza, etc. - fica à espera. A carta educativa continua também na gaveta, os toxicodependentes na rua e os sem-abrigo, sem abrigo.
Devia recuperar-se a lógica do quarteirão e de zona habitacional no eixo Baixa/Av. da República, de modo a que as centenas de edifícios propositadamente abandonados e devolutos nesta área servissem para rehabitar, por todos, esta centralidade. Mas, ao contrário, está a decretar-se um deserto populacional entre a cidade mais habitada (Benfica e Lumiar) e a histórica, sem pessoas (a Baixa). Devia considerar-se a recuperação do património edificado das colinas que limitam os vales das avenidas da Liberdade e Almirante Reis e da nunca lembrada zona oriental, de forma a rejuvenescer estes núcleos fortes da cidade. Devia responder-se de forma eficaz aos problemas do trânsito, do estacionamento, da poluição sonora e atmosférica, o que passará necessariamente por diminuir a entrada de carros e melhorar os transportes públicos. Mas aposta-se em fazer vias rápidas dentro da cidade e parques de estacionamento nas zonas históricas. Devia incrementar-se o Plano Verde, mas, ao contrário, a maioria camarária, toda emproada, procura disfarçar, com arranjinhos aqui e ali, a sua inércia. E chumba quase todas as propostas feitas pelos outros, os que ainda lutam - porque é a política.
E, oh! Lisboa, a par disto tudo, pergunto-te porque é que a comprovada tentativa de corrupção de um vereador da Câmara de Lisboa é um assunto em silêncio?
Em causa está, pois, a identidade de Lisboa, a sua gente. Na verdade, os referidos esquecimentos e o exposto surto, violento e em marcha apressada, de planos, destruições e mega-construções, levarão - se deixarmos - a fintar-se a sua alma.
Mas, oh! Lisboa, tu sabes: os lisboetas não são parvos!
Vereador da Câmara de Lisboa eleito pelo Bloco de Esquerda"
PF
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