20/09/2006

O Palácio Pombal: lá vão os anéis... e os dedos!

In Público (20/9/2006)
Mafalda Magalhães Barros

A venda do Palácio Pombal coloca inúmeras questões, de entre as quais a de saber qual a estratégia desta vereação para os bairros históricos

A recente notícia da intenção da Câmara Municipal de Lisboa (CML) de alienar a casa onde terá nascido Sebastião José de Carvalho e Melo representa mais um triste episódio na novela que a actual câmara nos tem vindo a presentear desde que há pouco menos de um ano assumiu os destinos da autarquia. Trata-se de um edifício notável "que no seu apogeu, na segunda metade do século XVIII, apresentava uma extensa implantação em L., com um cenográfico jardim em patamares unidos à cerca do Convento de Jesus".

É difícil dar mais sinais negativos em tão pouco tempo: a demolição apressada da última casa de Almeida Garrett, o anúncio da destruição do Largo Barão de Quintela para a construção de um parque automóvel, a anunciada demolição de um conjunto de piscinas, algumas das quais atribuídas a nomes maiores da arquitectura novecentista, e, agora, a alienação de um conjunto de edifícios de valor histórico-patrimonial, por sair cara à autarquia a sua conservação.

Se há disponibilidade para pagar sumptuosas assessorias e atribuir subsídios para actividades de interesse discutível, não se entende a razão para a CML não assumir a responsabilidade maior da gestão autárquica, a qualificação do património municipal. Faço minha a pergunta que a jornalista Diana Ralha colocava nas páginas do PÚBLICO de 16 de Agosto passado: "A moda da reabilitação urbana acabou nas Avenidas Novas de Lisboa?" Pelos vistos, a moda acabou nas Avenidas Novas e nas "ruas velhas", onde tanto investimento estava a ser levado a efeito.

No que respeita ao Palácio Pombal foram lançadas, pelo anterior executivo, obras urgentes para evitar o colapso da sua fachada tardoz. À obra de consolidação estrutural e de reformulação da cobertura, da responsabilidade do eng. João Appleton, somaram-se os trabalhos de conservação dos tectos em estuque, atribuídos ao artista milanês João Grossi, as sondagens parietais que revelaram um conjunto de pinturas do maior interesse artístico, o restauro do oratório, a descoberta de um tecto apainelado do século XVII que foi alvo de conservação.

O facto de a intervenção ter como propósito a salvaguarda daquele notável exemplar arquitectónico permitiu que os trabalhos de conservação fossem acompanhados de levantamentos documentais e estudos, levados a efeito pelos historiadores do Gabinete do Bairro Alto, António Miranda e Helena Pinto Janeiro, que assim puderam cotejar as fontes escritas com os testemunhos arquitectónicos, pois o edifício que chegou aos nossos dias é um acumular de transformações várias ao longo dos tempos, testemunhando a crescente influência política, e económica, da família Carvalho, depois Pombal.

Aquela casa de fachada monótona, como foram as do plano pombalino, tem no seu interior um património integrado de uma variedade e riqueza imensa. Tal como em muita da arquitectura lisboeta, dificilmente se adivinha, pela austeridade da sua imagem exterior, a riqueza dos seus interiores, o que torna, de resto, condenáveis muitas das intervenções que passam apenas e exclusivamente pela manutenção das fachadas.

A venda do Palácio Pombal coloca inúmeras questões, de entre as quais a de saber qual a estratégia desta vereação para os bairros históricos e o papel que os edifícios de valor histórico-patrimonial podem desempenhar na qualificação das áreas onde se inserem. Acreditamos que a reutilização do centro histórico, encarado como bem cultural, mas também como bem económico, implica a recuperação do património imobiliário existente, bem como a manutenção das comunidades humanas que são simultaneamente fruidoras desse mesmo património. A reconversão funcional e, até, a eventual privatização de imóveis de destacado interesse histórico só se pode fazer depois de estes estarem recuperados e de serem definidas, com rigor, as alterações que podem sofrer com vista a novas utilizações. Caberia à autarquia assumir a sua quota-parte neste desígnio.

Lembro apenas que a prioridade atribuída à reabilitação urbana pela anterior vereação permitiu que, para além das inúmeras empreitadas lançadas para a recuperação da habitação, se procedesse à recuperação de património monumental, de que a Igreja de Santa Catarina, na Calçada do Combro, é bem um testemunho. É nosso entendimento que o valor da história, entendida como memória colectiva, nos ajuda a perceber o significado da estrutura urbana e da sua singularidade e que permitir o acesso público aos espaços portadores dessa memória seria a melhor forma de aprender a respeitá-los.

Ex-directora municipal de Conservação e Reabilitação Urbana

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