23/10/2006

Revitalizar ou desvitalizar a Baixa? (parte 1)

In Público (22/10/2006)
Opinião José Tudella

"Li a notícia da apresentação do plano de intervenção proposto para a Baixa-Chiado e exultei. Corri à Câmara Municipal de Lisboa ansioso por saber se estaria exposto algures publicamente. Na recepção remeteram-me para o gabinete da Vereadora M. J. Nogueira Pinto, onde a informação foi breve e seca: Está na Internet.
Seguiu-se um diálogo surrealista, porque a minha amável informadora nem queria acreditar no que ouviu.
- Essa agora, não tem Internet? Então não sei, talvez ler um jornal...
Como lhe referisse já ter feito isso, mas querer ver e saber mais, a coitada da paciente funcionária encarou-me com ar de comiseração explicando-me que "aquilo" para mim deveria ser "muito maçudo". (?!?!)

Perante a dificuldade de me empanturrar com tal peça de culinária indigesta para mentes decrépitas, não tive outro remédio senão olhar de novo para a plantazinha colorida, patente na secção LOCAL do PÚBLICO, reler mais compassadamente os comentários e descrições corridas da jornalista e tentar adivinhar a qualidade e quantidade do fermento que levedara tal papa fina, tornando-a especiosa ao ponto de só gente moderna, especialista em sistemas electrónicos de ponta, ser capaz de a deglutir com requintes de sibarita, sem perigo de lhe azedar no bucho, ou de lhe derrancar o bandulho.

Claro que banir o trânsito automóvel e criar muita habitação na Baixa são dois pratos de substância requentada que, à partida, explicam bastante bem a natureza indigesta do remédio proposto para debelar a doença crónica e hoje aparentemente fatal da Baixa. Com efeito, toda a gente - mesmo sem ser comissionada - sabe que aquela denominação corresponde a uma porção urbana fortemente atractiva de Lisboa, mas confinada entre o Tejo e as encostas abruptas dos morros do Castelo, do Bairro-Alto e da Pena. Destes condicionalismos geográficos resultou a fixação de quatro eixos convergentes - as avenidas da Liberdade, 24 de Julho, Infante D. Henrique e Almirante Reis - todas de inter-conexão obrigatória, a qual se processa em dois locais estratégicos: o Terreiro do Paço e o Rossio. Desse condicionalismo não pode fugir a Baixa, nem os comissários seja do que forem.

Os centros urbanos das grandes cidades situam-se geralmente no centro e, além de servidos hoje por redes densas de metropolitanos, são contornados por vias envolventes dispostas a distâncias confortáveis. Por tais razões nessas cidades se podem praticar restrições, por vezes substanciais do trânsito automóvel afluente, impedindo-o ou condicionando-lhe fortemente a circulação no interior desses contornos. As populações aceitam tais medidas restritivas porque as distâncias pedonais resultantes são curtas e confortáveis. Não é o caso de Lisboa. Aqui as quatro avenidas convergentes são colectoras longínquas exclusivas e não contornam, antes penetram no centro através de gargantas, por vezes bem longas e muito condicionadas. Querem ver o resultado da introdução de tampões, ou de fortes restrições nos acessos ao centro (Baixa)?

O plano propõe a supressão do trânsito na Av. da Ribeira das Naus a fim de criar um longo e calmo passeio à beira-rio; bravo, dou palmas toadas! Que bela ideia! Mas na tal planta colorida não aparece qualquer substituição, restando assim como percurso alternativo exclusivo, a Rua do Arsenal. Ora esta rua tem 14m de largura, sendo de 10m apenas a da faixa destina ao trânsito (incluindo eléctricos nos dois sentidos): estas dimensões reduzem-se a 11m e 6,5m respectivamente, imediatamente antes de desemborcar na praça do Município. Assim, o plano não pode, portanto, falar de restrição, mas de supressão, quer do trânsito afluente à Baixa, quer do trânsito de passagem obrigatória do litoral para o interior e vice-versa, nesta porção singular da beira-rio? Será então possível ou admissível tal supressão? Será sequer compreensível? Não creio. Em suma, o centro de Lisboa (a Baixa e as colinas envolventes) constitui um caso sui generis. Não admite soluções viárias standard.
De e para as colinas envolventes (às quais prefiro chamar morros) as dificuldades de acesso são também de monta; os seus acessos são becos, ruelas, ladeiras, escadinhas e escadórios, todos eles muito sugestivos para digressões turísticas ocasionais, mas extremamente penalizantes para uso diário obrigatório quer de residentes, quer de clientes. Por isso surgiram, quando a evolução tecnológica dos transportes mecânicos o permitiu, sistemas de ascensão em plano inclinado (funiculares) ou vertical (ascensores) e mais recentemente as escadas rolantes, todos eles destinados a substituir o velho, ultrapassado e há muito desaparecido sistema dos burrinhos, que tão bem se adaptavam à diminuta largura das íngremes ladeiras, bem como à míngua de espaço para a sua estabulação no piso térreo das habitações situadas nas encostas e nos comoros.

Curiosamente, só nos morros do Bairro Alto e da Pena os sistemas mecânicos de ascensão foram introduzidos. Os mais alcantilados (do Castelo e da Graça) receberam apenas eléctricos e autocarros que só os servem mediante longos e demorados percursos. No caso do Castelo, estes transportes nem sequer atingem o cume: S.ª Cruz do Castelo, Castelo, Chão da Feira, Largo dos Lóios, etc, só a pé ou de automóvel são acessíveis. A Graça, apesar de pendurada sobre o Martim Moniz, só pelos Anjos e Sapadores, ou por S.ª Luzia e Escolas Gerais comunica com o centro urbano de Lisboa.

Um passeio em quincôncio, bom para o turista cansado quando não chove
Estranhamente, no ambicioso plano agora apresentado pelos sábios iluminados aos eleitos esclarecidos, dotados de estômagos à prova de agressões prandiais de iguarias maçudas, a Graça continua alheia a qualquer estado de graça no capítulo dos transportes e o caminho para o castelo, salvo umas escaditas rolantes nos troços mais revessos de um íngreme percurso em torcicolos, continua tão escabroso e inacessível como descrito no reinado de D. Afonso Henriques pelo cruzado Osberno.
Presumo tudo isto a partir da observação da tal planta colorida patente no PÚBLICO, onde uma espécie de foice é indicada como acesso pedonal assistido por escadas rolantes e elevadores. Assim, entre a Rua dos Fanqueiros e o Largo Adelino Amaro da Costa (antigo Largo do Caldas) é possível praticar um subterrâneo inclinado, provido de escadas rolantes. Depois o percurso terá de ser feito a pé até à base das escadinhas do Chão do Loureiro, por onde continuará, em escadas rolantes, até à Rua da Costa do Castelo. Como esta acanhada via urbana conta entre 5m e 6m somente de largura, não é possível dotá-la com meios mecânicos; assim, o paciente, perdão, o passeante deverá retomar a saudável marcha a pé (vá lá, em plano horizontal) até junto das escadinhas de S. Crespim. Aqui, pelo que se pode depreender do esquema apontado no jornal, novo troço de escadas rolantes, disposto num terreno confinado de logradouros e de traseiras, conduzi-lo-á directamente à Esplanada do Castelo. Em suma, não é um acesso mecânico directo (alternativo) dirigido aos agregados urbanos situados na zona mais alta da encosta; trata-se, isso sim, de um passeio em quincôncio, bom para o turista cansado quando não chove.

Compare-se este trajecto longo, labiríntico, incómodo e demorado, com o do Elevador da Glória, breve, explícito, directo e rápido, desde a Praça dos Restauradores até S. Pedro de Alcântara. Pois bem, um funicular moderno, executado sem necessidade de demolições nem cortes de vias, panorâmico, mas sem ofensas paisagísticas (fálicas ou outras quaisquer) desenvolvendo-se na encosta poente da colina do castelo, desde a Rua dos Fanqueiros até à de S.ª Cruz do Castelo, junto à porta de entrada do recinto amuralhado. O tempo de percurso, tal como no elevador da Glória, seria de um minuto e meio, feito numa cabine confortável e ao abrigo das intempéries. Se tivesse uma paragem a meio do percurso, junto à Rua da Costa do Castelo, poderia considerar-se um mini-metropolitano de encosta, idêntico ao de Lausanne. Trepando desde o lago até ao centro urbano num plano inclinado, tem uma paragem a meia encosta para serventia da estação central ferroviária.

Tal como os ascensores de S.ª Justa, da Glória, do Lavra e da Bica, um funicular na encosta poente da colina do Castelo destinar-se-ia essencialmente à população comum, à facilitação e comodidade da vida urbana diária; complementarmente, ao lazer e ao turismo. No sentido de facilitar e ampliar o número de acessos mecânicos directos à Baixa, ligando-a directamente aos cumes envolventes, teria ficado bem ao plano introduzir a proposta de montar um teleférico directo entre a Rua Damasceno Monteiro e o sítio de Martim Moniz, junto a uma das bocas de entrada para o metropolitano aí existentes. Esse confortável e panorâmico meio de transporte rápido e directo, de uso comum diário e também turístico, seria também de execução fácil, baixo custo, ausência de demolições, tempo mínimo de percurso e ligação directa entre a Graça e não apenas a Baixa - carenciadíssima de acessibilidades - como também a rede fundamental dos transportes urbanos de Lisboa. A Graça agradeceria... e a Baixa também.

Os comissionados detestam os automóveis mas vêm de carrinho
Nisto de comunicações e acessibilidades, se compararmos o que se passa nas zonas centrais de Lisboa com as periferias e com os subúrbios, verificamos serem as populações residentes nestas zonas arrabaldinas principescamente servidas por amplos centros comerciais, modernos e confortáveis, dotados de supermercados e de grandes armazéns. Os utentes têm à disposição estacionamento automóvel coberto, com acessos mecânicos directos às superfícies comerciais onde podem encontrar tudo em espaços concentrados, cobertos, abrigados e climatizados, quer de dia, quer de noite.
Perante estas facilidades e conforto é com acesso de veículos automóveis expressamente dificultado, com míngua de estacionamento e sujeição das populações às contingências atmosféricas, que os comissionados pensam revitalizar a Baixa-Chiado? Sem querer criar acessos mecânicos forçados, capazes de propor acessibilidades múltiplas e cómodas aos residentes nos comoros e ladeiras das íngremes falésias envolventes? Nem com campanhas intensas de estoicismo, ministradas com denodo por todas as organizações ambientalistas da Europa Comunitária, apadrinhadas pelo Parlamento de Estrasburgo e trazidas de bicicleta para um acampamento juvenil montado no Terreiro do Paço, com distribuição de iogurtes, pão integral e sumo de genipapo, feita graciosamente nas arcadas por equipas de escuteiros, conseguirão resultados que mereçam, sequer uma sessão promovida conjuntamente pela Fundação Oriente e pelas Sedes, com comunicações de individualidades e debates públicos no Convento do Beato.

E como manter o trânsito marginal - que tem de existir, quer os comissionados queiram, quer não - escamoteando-o... sabe-se lá como entre as avenidas 24 de Julho e Infante D. Henrique? Em Paris, mediante recurso a vias desniveladas, dispostas ao longo do Sena, não foi suprimido o trânsito marginal, apesar de bordejar um rio estreito. Aqui e agora, os Senhores Comissionados, lá porque detestam os automóveis... bem (como diria Mário Soares em jeito de intróito) detestam o meu e o teu, caro leitor; os deles estão incluídos no termo de tolerância das percentagens estatísticas por eles estabelecidas para permanência e atravessamento da Baixa. Se te puseres de tocaia verás que vêm todos para cá de carrinho, com ou sem condutor. Arquitecto

Quanto a habitar na Baixa... se amanhã o PÚBLICO ainda estiver para me aturar direi o que penso (uma vez mais a partir apenas do que li no jornal) pese embora a maior ou menor fidelidade do testemunho jornalístico e valha o meu comentário o que possa valer
."

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