08/01/2007

EPL: os suspeitos do costume?

A notícia da venda do EPL não é propriamente uma surpresa mas a venda a uma empresa estatal e o preço ridículo da venda já revelam que deverá haver os suspeitos do costume ... por perto. Que história tão mal contada!

Vamos por partes.

1. O Estado vende ao Estado? Até não me choca neste mundo em que a engenharia financeira dita regras, não fosse o valor da transacção. Que negócios se preparam nesta empresa do estado? E cabe perguntar: num negócio de grandes dimensões relativo a um sector tutelado pelo ministro da justiça, porque não ele é a dar a cara mas antes um mero secretário de estado?

2. 60 milhões de euros por um espaço enorme, correspondente à construção principal inicial e aos terrenos circundantes onde ao longo de 100 anos foram sendo construídos serviços de apoio, parece um preço ridículo.

3. Como ridícula é a indicação dada pelo secretário de estado de que com aquele dinheiro se irão edificar dois novos estabelecimentos prisionais em Linhó-Sintra e Alcoentre em três anos. Para mim, só pode ser uma coisa: falta de consideração pela inteligência das outras pessoas.

4. Já agora: duas cadeias em três anos? Com planos, com concursos públicos internacionais, com a construção, com as derrapagens de prazos (e se for só de prazos…) habituais, com a falta de experiência na construção de estabelecimentos prisionais (dado que nos últimos 30 anos só se fez um de raiz, no Funchal, e quem o fez está reformado)? Nem na Suécia ou na Inglaterra onde o pragmatismo fala alto.

5. O argumento da localização da velha cadeia no meio da cidade também não colhe. Tem espaços de respiração muito apreciáveis em seu redor e não tem havido incidentes sérios no EPL que ameacem a sua segurança ou a da comunidade. E retira-se de Lisboa para se implantar em Linhó-Sintra? Então esse local não está em vias de ser um aglomerado urbano contínuo? E que dizer das suas irmãs de Barcelona ou Bruxelas por exemplo, situadas mesmo no interior de bairros no centro das cidades, rodeados de quarteirões vulgares (em ambos os casos sem sequer um perímetro se segurança em redor)?

6. Mas talvez o principal problema seja outro: Lisboa, cidade saqueada e ainda a saque no seu património edificado e cultural, não pode perder mais um grande edifício, de grande significado simbólico, cultural e arquitectónico.

O EPL é a cadeia onde, durante um século, se fez a justiça de cada tempo, num espaço de certo modo belo, pela primeira vez construído de propósito para o efeito. Poderá parecer estranho que se diga que uma prisão é um espaço muito interessante do ponto de vista simbólico e arquitectónico, apesar de um tanto adulterado nalguns componentes nos últimos 10 anos pela mão de ignorantes que tomaram conta da prisão. Mas o facto é que, juntamente com o EP Coimbra (também na lista de abates, falta saber a que preço) o EPL é a expressão da escola de Filadélfia do fim do séc. XIX na construção de cadeias de raiz, com um pensamento íntegro e consistente por detrás. A recuperação de um piso numa das suas alas (a ala GG, que funciona como comunidade terapêutica prisional) mostra que o espaço tem, na verdade, alguma beleza.

De resto, ainda hoje funcionam várias cadeias destas na Europa e nos EUA. Mas em Portugal, em breve não haverá vestígios. Memória de uma prisão, para quê?

7. Por isso, creio que se impõem algumas perguntas na esperança que elas sejam adequadamente respondidas, com transparência e respeito pela cidade e pelas pessoas que a habitam

§ não tendo a informação do secretário de estado sido minimamente clara a este respeito, qual o destino/uso do edifício principal: habitação, centro comercial (as galerias até podem sugerir isso a algum aventureiro), destruição total, parcial?

§ porque se afirmou que a estrutura não pode ser alterada?; na verdade, não é apenas a pequena fachada ou a estrutura que devem ser preservadas, já que há muito mais; repare-se no vandalismo realizado no saudoso e teoricamente preservável Jardim Cinema na Av. Alvares Cabral, hoje irreconhecível e para sempre perdido dada a eliminação de elementos não estruturais como o guarda vento da entrada e dos elementos decorativos)

§ qual o papel da CML na defesa do património de Lisboa?

§ qual o papel do IPPAR na defesa do património de Lisboa?


8. Talvez seja boa ideia começar a ventilar ideias para o futuro do EPL, mesmo admitindo que o edifício deixará de ser prisão e que o seu uso será outro. O espaço é enorme, eis alas/ seis pontas de uma estrela, e cada uma deverá ter 3 ou 4 pisos pelo que há enormes oportunidades para a imaginação criar equipamentos de qualidade para a cidade:

§ um museu da justiça seria um novo equipamento interessante para a cidade que seria potenciado pelo espaço prisional evocativo

§ arquivo histórico da justiça, hoje disperso por vários serviços

§ instalação de um centro de formação comum para serviços da justiça, hoje inexistente

§ instalação da junta de freguesia local

§ um centro cultural que sirva as zonas circundantes, por exemplo gerido por uma federação de juntas de freguesia

§ instalações policiais amplos e com parqueamento para viaturas, substituindo a sede de 3ª divisão da PSP em Benfica e a esquadra do vizinho palácio da Justiça reorientando estes espaços para outro usos

§ instalação de alguns serviços da justiça hoje tão mal instalados como os da inspecção de justiça, de reinserção social, de identificação civil, entre outros

§ habitação e pequeno comércio numa ala

§ comunidade terapêutica para toxicodependentes a cargo do Ministério da Saúde ou por entidade por esta licenciada para o efeito

§ eventualmente, reinstalação dos bombeiros voluntários de Campo de Ourique se houvesse conveniência para tal

§ uma zona de estacionamento protegido que sirva o palácio da justiça e os equipamentos a instalar

§ em redor do edifício principal podem ser feitos jardins relativamente extensos, sendo viável a arborização nos limites do terreno


Haverá coragem?

Teresa B. Vidal

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