19/06/2008

O elogio das feiras do Príncipe Real

O Príncipe Real é um local de eleição.

Na cidade interna, como chamam alguns arquitectos e urbanistas às zonas de desenvolvimento até ao início do século XX, é de certo das mais interessantes.

O Príncipe Real é um local de eleição por motivos variados, e é precisamente essa variedade que lhe confere interesse. Convivem vários de tipos de gente, moradores ou não, existe algum cosmopolitismo, o comércio tem a sua graça, e a atmosfera dada pela arquitectura é graciosa (aspecto de especial relevância dado o descalabro urbano de grande parte da cidade, entregue à desgovernação de uns e à … … , como lhe chamar?, cupidez de outros!).

Nos últimos anos, no jardim da zona que se mantém famoso e formoso embora já tenha visto melhores dias em termos de conservação e limpeza, têm sido organizadas feiras que trazem à zona novas pessoas. Falo da feira de rua de antiguidades e artesanato, em domingos e segundas-feiras para mim incertos porque nunca assento o dia na agenda, e uma venda de produtos agrícolas biológicos aos sábados de manhã.

As antiguidades interessam-me muito, e embora os produtos estejam muito vistos, encontra-se sempre alguma coisa de curioso para observar ou mesmo para comprar em meses de economia doméstica mais favorável. O artesanato parece-me desinteressante, mas eu e esta forma de arte nunca fomos muito amigos. O certo é que há legiões de compradores entusiasmados e não há nada melhor do que ver gente feliz a vender a bons preços e outros encantados por comprar prendas para a família e os amigos.

A feira dos sábados também tem fiéis, fiéis às origens anunciadas dos produtos. Eu não pertenço a essa tribo, sou pouco crente na bondade daquelas cenouras raquíticas, dos morangos que me parecem por vezes maracaté, e das batatinhas engelhadas. Quanto ao mel, já provei mas pareceu-me mesmo igual ao outro – e não sei como pode ser um mel mais biológico ou natural que o outro. Mas é engraçado ver os membros da congregação dos produtos naturais a comprarem couves e a metê-las no porta bagagens do VW Touareg. Ou do Renaut Clio, tanto faz, claro. E, confesso: também já tenho comprado uma lombarda ou outra, mais para não se dizer que os moradores não participam da vida do bairro. O importante é dar oportunidade a quem quer vender e comprar e não há dúvida que o objectivo está assegurado.

Recentemente abriu outra feira, algo mais selecta. Ou deverei dizer, antes, seleccionada…. Dois minutos e 150 metros abaixo do jardim, exactamente frente ao ilustre Tribunal Constitucional (belo palacete clássico, robusto nas formas, emoldurado por árvores de bom porte e jacarandás, e guardado por interessante portão), nasceu um novo mercado, que tem satisfeito com galhardia aquele princípio atrás enunciado: dar oportunidade a quem quer vender e comprar, não havendo também dúvida que o objectivo tem sido assegurado, graças a uma certa conjugação de factores.

Os produtos transaccionados neste novo e emergente mercado local não são para qualquer um, já que se trata de estupefacientes. Apesar disso, podem ser vendidos, trocados e sei lá mais o quê, bem como consumidos logo no local, com apreciável tranquilidade. É vê-los à noite de 5ª fª, ou aos domingos logo muito cedo e durante toda a manhã, naquele frenesim típico, os carros que passam e arrancam, as cumplicidades trocadas (ah, as almas humanas em acção!); os pequenos grupos; os pés encostados às paredes; por vezes é notório o vigia, em carro fixo à porta do bar frente ao tribunal, intimidando e fiscalizando o negócio (pois se as polícias não aprecem, alguém tem de olhar pelo cumprimento das suas regras), ou fazendo passagens qual ronda da autoridade; coitados, às vezes, alguns caem, droga a mais, misturas com álcool, são jovens, não pensam, o corpo é que paga – os moradores indirectamente também, mas são danos colaterais, quais detalhes insignificantes nas guerras do Bush.

Refira-se, aliás, que o ambiente fica fantástico, até porque ao contrário das duas feiras que tive o gosto de referir atrás, neste mercado existe música ambiente, com fortes decibéis e agreste batida nocturna (o facto de estarmos numa zona residencial e estarmos numa 5ª fª às 4h ou domingo de manhã são pequenos pormenores que não têm despertado o interesse das polícias[1] ou das autoridades municipais[2]) com origem no pólo agregador e simultaneamente difusor da dinâmica e pujança desta feira: o bar frente ao tribunal, cujo horário de funcionamento autorizado pela CML é das 09:00h às 04:00h – o facto de aos domingos abrirem em regime de after hours às 07:00h duas horas antes do permitido é outro pequeno pormenor que também não despertado o interesse das polícias1 ou das autoridades municipais2). Com a música ambiente assim tão alto, contrastando com a calma matinal de um domingo, sempre se gera um outro ambiente mais propício ao tráfico e consumo de drogas. Afinal, tudo se quer em ambiente próprio, e como este originalmente não era o mais acolhedor para o efeito, o espírito empreendedor – que tanta falta faz à cidade e ao País - tem resolvido a dificuldade.

Diga-se ainda que este mercado, também ao invés dos outros referidos, anima a economia: dá postos de trabalho a desempregados desqualificados e proporciona grande movimento a taxistas que, em dias difíceis como estes, têm montes de trabalho a levarem e trazerem pessoas para o bar. Não se pode pedir mais.

Tudo somado, são três feiras muito distintas que dão muita animação e personalidade ao Príncipe Real.

O único problema é que indo para velho, tanta animação já me perturba um pouco. Mais do que duas feiras no local onde vivo é demais para mim. E como da última não penso comprar nada, eu ficava-me pelas duas primeiras.



Nuno Caiado


[1] Oficialmente, a PSP diz que na zona “há polícia aos pontapés” (frase elucidativa e elegante dum Intendente, mesmo a dar com o charme do bairro); mas eu julgo que a expressão se deve ao espírito futebolístico da época e não deve ser tomada excessivamente a sério, aquilo era ele só a reinar, pois eu não vi assim tanta polícia aqui, com botas ou sem botas, e os traficantes e consumidores fazem a sua vida com a calma que a sua actividade lhes impõe, tal qual como nas outras duas feiras (embora nessas ocasionalmente apareça a polícia municipal). Por outro lado, e com a devida vénia a quem teve a ideia, eu acho que os polícias aqui são só actores contratados que, naturalmente, não estão autorizados a agirem por não serem polícias de verdade – pelo menos quando os chamamos eles não vêm, deve ser por isso…
[2] a expressão autoridades é meramente retórica, porque quem manda aqui ninguém sabe; a situação está em vias de ser corrigida, dentro em breve tudo ficará mais claro, sendo os traficantes, a malta da noite e os bares a mandarem na zona, pondo fim a um atribulado processo de delimitação de competências.

3 comentários:

  1. Concordo absolutamente. Com tanta feirinha, feireca e feirota, Lisboa parece não estar a ser dirigida por vereadores responsáveis, mas por um grupo de mordomos de uma qualquer romaria da província de há um século atrás.

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  2. dessas só conheço a dos produtos Biologicos e acho um bocado "tacanhas" as observações á cerca da mesma.Seria bom concentrarmo-nos no que realmente interessa e não andarmos a disparar em todads as direcções.

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  3. agradeço os comentários mas creio que não me fiz explicar: o texto era apenas uma forma irónica de denunciar a emergÊncia de um novo território de venda de drogas no meio da cidade com os problemas daí decorrentes, sendo certo que ela decorre, por sua vez, do funcionamento de determinado bar. Nada tenho contra as feiras, embora tembém nada tenha especialmente a favor. Neste caso, foram só instrumento para introduzir de forma provocante a denúncia sobre o tráfico e consumo de drogas a céu aberto

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