20/10/2008

«Assalto a Lisboa»

In Expresso Online
por Miguel Sousa Tavares
8:00 | Segunda-feira, 20 de Out de 2008

«Quase vinte anos a escrever constantemente contra as inúmeras tentativas de expropriar aos cidadãos de Lisboa a frente ribeirinha do Tejo para a entregar a interesses privados ou a obras públicas inúteis têm-me ensinado que este será sempre um combate de retaguarda, recuando sucessivamente de trincheira em trincheira, sem perspectivas de vitória no final. Num mundo normal (nem sequer num mundo perfeito), numa cidade como Lisboa - que tem o luxo de ter 14 km de estuário de rio, que, além do mais, representam o seu maior património histórico de referência - nada seria consentido fazer que pudesse comprometer aquilo que é o domínio público mais importante da cidade e o seu traço marcante decisivo. O rio seria de Lisboa e de ninguém mais, porque Lisboa sem o rio será apenas uma paisagem em degradação acelerada.
Mas nós não vivemos num mundo normal. Nós vivemos numa democracia em que os interesses privados passam tranquilamente à frente do interesse público, com sucessivos pretextos que, olhados de perto, não passam de um embuste. É por isso que, mesmo contra toda a esperança, é preciso não desistir de defender Lisboa contra os seus predadores - porque eles nunca desistirão das suas intenções. Hoje, volto assim a um tema de que já aqui falei duas vezes, a última das quais a semana passada: o projecto escandaloso, já aprovado pelo Governo, de erguer um muro de contentores na zona de Alcântara, podendo ocupar até 1,5 km de frente de rio, com uma altura de 15 metros - o equivalente a um prédio de quatro andares. Este caso, aliás, vem demonstrar que, pior ainda do que um mercado desregulado por falta de intervenção do Estado - que subitamente tanto preocupa José Sócrates - é um mercado regulado pelo favor político do Estado, como sucede entre nós, de forma cada vez mais chocante.
A 'Nova Alcântara', como pomposamente lhe chama José Sócrates, é uma obra prejudicial à cidade de Lisboa, inútil e desbaratadora de dinheiros públicos, com todo o aspecto de ser ilegal e que levanta fundadas suspeitas de favorecimento negocial inadmissível.
É devastadora para a cidade, porque, além de uma extensa faixa de rio, nos vai roubar um dos privilégios únicos que Lisboa tem: a possibilidade de ver atracados ao seu centro os navios de passageiros cuja imagem faz sonhar milhões de pessoas no mundo inteiro. Nunca mais aí veremos navios tão emblemáticos como o 'Queen Mary II' ou o imenso 'Sovereign of the Seas', empurrados para a periferia de Santa Apolónia e substituídos por uma muralha de quilómetro e meio de contentores. Nem rio, nem navios: uma montanha de caixotes de ferro, empilhados uns sobre os outros. Mas o roubo do rio não se fica por aí: aproveitando o balanço e a deslocação do terminal de navios de passageiros da gare onde estão os painéis de Almada Negreiros para o extremo oriental da cidade, o Porto de Lisboa esfrega as mãos de contente e prepara-se para dar cumprimento à sua mais recorrente ambição: a construção imobiliária à beira-rio. Deixa-se a gare de Alcântara e os painéis de Almada para os contentores e vai-se fazer em Santa Apolónia, em cima do rio, mais uma barreira de 600 metros de comprimento e outros 15 a 20 de altura, para albergar uma nova gare e, já agora, um centro comercial e um hotel... para os passageiros dos barcos, com camarote pago a bordo. E há outro dano, ainda: durante seis anos, o governo vai lançar mãos à obra de enterrar a via férrea existente, adaptando-a à necessidade de escoar um milhão de contentores a partir do centro da cidade. Num ponto crucial de entrada e saída de Lisboa, vamos ter um pandemónio instalado durante vários anos, para conseguir fornecer as acessibilidades tornadas necessárias pela localização errada do terminal de contentores.
Nessas obras, vai o governo gastar para cima de 200 milhões de euros, através da CP e da Refer, de forma a tornar viável um negócio privado que é, além do mais, totalmente inútil. Lisboa tem capacidade subaproveitada para receber contentores - mas não ali e justamente na zona oriental, para onde querem mandar os navios de passageiros. Aliás, em Alcântara, vai ser ainda necessário dragar o rio, porque o seu fundo não assegura o calado dos navios que para ali se querem levar para despejar contentores. E, quando tanto se fala em descentralização, é notável pensar que o Estado quer investir 200 milhões para trazer contentores para o centro da capital, quando ali ao lado, em Setúbal, existe um porto perfeito para isso e cuja capacidade não aproveitada é de 95%! E isto para já não falar em Sines...
Tão absurdo projecto só pode ser fruto de uma imbecilidade inimaginável ou... de uma grande, grandessíssima, negociata. Ponham-me mais os processos que quiserem, mas isto eu devo à minha consciência dizer: o negócio que o governo acaba de celebrar para Alcântara com a Liscont/Mota Engil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 188/2008, de 23 de Setembro, tem de ser investigado - pela Assembleia da República, pelo Tribunal de Contas, pela Procuradoria-Geral da República. É preciso que fique claro do que estamos a falar: se de um acto administrativo de uma estupidez absoluta ou de mais um escândalo de promiscuidade político-empresarial.
Em 1984, o Decreto-lei n.º 287/84 estabelecia as bases para a exploração do Terminal de Contentores de Alcântara, com as seguintes condições: área de ocupação restrita; atracagem apenas permitida a navios que, pelo seu calado, não pudessem acostar a Santa Apolónia; prazo de exploração de 20 anos, e concessão mediante concurso internacional. Com estas condições, apenas uma empresa - a Liscont - se apresentou a concurso e tomou a exploração, que rapidamente se revelou deficitária. Em 1995, salvo erro, a Liscont é comprada pela Tertir, que vem a obter do Governo, nos anos seguintes, alterações ao contrato, que de todo subvertiam as regras do caderno de encargos do anterior concurso internacional: mais área de ocupação, possibilidade de acostagem de todo o tipo de navios e mais dez anos de prorrogação do prazo, agora fixado até 2014. Em 2006, oito anos antes de expirar o prazo da concessão, a Tertir é, por sua vez, comprada pela Mota-Engil, por um preço anormalmente elevado face à perspectiva de negócio futuro. Mas, em Abril deste ano, sem que nada o fizesse prever ou o aconselhasse em termos de interesse público, fica-se a saber que a concessionária obteve do Governo nova revisão extraordinária do contrato, com as seguintes alterações: alargamento da capacidade de descarga para mais do triplo; aumento da área de ocupação para mais do quíntuplo; manutenção das taxas, já reduzidas, de operação; e prolongamento do prazo de concessão por mais 27 anos (!), até 2042. Tudo sem concurso público, tudo negociado no segredo dos deuses, tudo perante o silêncio atordoador de António Costa, presumido presidente da Câmara de Lisboa. E, finalmente, em Setembro passado, através do citado Decreto-lei 188/2008, fica-se a saber que o Governo ainda se disponibiliza para investir mais de 200 milhões de euros para garantir à Liscont/Tertir/Mota-Engil as obras necessárias a garantir o escoamento da sua capacidade triplicada de movimento. Imaginem: eu tenho um pequeno restaurante à beira-rio, que não é viável, por falta de espaço e de acessibilidades, e cuja concessão a lei prevê que dependa de concurso público e só dure vinte anos. Vem o governo e, de uma assentada, autoriza-me a triplicar o espaço, prorroga-me o prazo de concessão de modo a que o meu negócio acabe garantido por um total de 57 anos e sem aumento de renda, disponibiliza-se para me fazer e pagar as obras de acessibilidade necessárias ao sucesso do restaurante... e tudo sem concurso público, negociado entre mim e eles, no resguardo dos gabinetes. É ou não é fantástico?
E é assim que se trata Lisboa. É ou não é escandaloso? E o que fazemos, ficamos quietos? Pedaço a pedaço, eles dão tudo o que é nosso, à beira-rio: um quilómetro e meio de frente à Mota-Engil, seiscentos metros ao Porto de Lisboa, um quarteirão no Cais do Sodré para qualquer coisa da observação da droga, outro quarteirão para o Hotel Altis, o CCB para a Fundação Berardo, um quarteirão mais para a Fundação Champalimaud e a Casa dos Bicos para a Fundação Saramago. »

8 comentários:

  1. Subscrevo cada palavra de MST, que mais uma vez levanta a sua voz em favor dos genuínos interesses da cidade. Que poderemos nós, cidadãos de Lisboa, que amamos a nossa cidade, para impedir que tão criminoso e fraudulento negócio seja concluído, às presas e longe do escrutínio público, como se prepara para ser, parece que ainda durante esta semana? Depois de assinado o contrato mais difícil será parar esta aberração urbanística e verdadeira espoliação da zona ribeirinha - na sua parte mais nobre - aos lisboetas, porque depois haverá sempre a desculpa do valor a pagar à Mota-Engil por não poder levar avante o seu terminal. Conseguimos uma vitória no caso do mamarracho do Rato, poderemos com empenho e mobilização, talvez, impedir mais um atentado à beleza de Lisboa. Deixo aqui um repto à mobilização de todos, pelos meios possíveis, para impedir que este vergonhoso negócio seja concretizado.
    Ana Martins Barata

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  2. Contem com o meu apoio a todas as iniciativas que visem impedir uma tão imbecil ou mafiosa conspiração contra os cidadãos de Lisboa.
    Basta de terceiro mundismo na governação deste país!!!!!

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  3. E nos vamos ficar de braços cruzados?
    Claro que não!!!
    Somos ou não lisboetas, vamos lutar até que consigamos ter novamente o Tejo para nos.
    Contem com o meu apoio para tudo o que for preciso.

    Marco Sousa

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  4. temos que fazer alguma coisa!

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  5. nem sempre estou de acordo com MST mas faço minhas cada uma das suas palavras.Indignação e revolta é o que é preciso. Onde está o presidente que deveria defender a cidade? Onde está Sá Fernandes? onde estão todos os eleitos ? o que vão fazer? Num debate realizado pelo forum sobre o terminal de cruzeiros Sá Fernandes mostrou-se "descansado" com o que ia acontecer na beira rio, è este o descanso? tenham paciencia mas já chega.Este é um crime monstruoso.

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  6. Terceiro mundista!
    Queremos o rio para nós!

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  7. tanta demagogia

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  8. Também nem sempre concordo com o MST mas de facto aqui... acho que nos vamos todos zangar muito visivelmente e se este governo tem aspirações à reeleição terá de aqui fazer o mesmo que fez com a Ota - Recuar. Rápidamente. As estacas já estão a ser colocadas no jardim do Tabaco. Serão estacas de 2 gumes?...

    De facto não é preciso ser Eng. nenhum para se perceber o erro colossal que a Ota seria a todos os níveis. Com o aeroporto consegui-se fazer o que era correcto, graças ao exercício de cidadania por muita gente realmente(!)interessada no bem comum, entre muitos outros factores, claro.
    Agora com o Porto (de Lx) parece que se passa exactamente o mesmo:
    os contentores, que podem e devem ir para o eixo Sta. Apolónia-Matinha, é que vão para o terminal de cruzeiros de Alcântara-Rocha C.Óbidos onde já se encontravam (e mal) enclavados (?);
    E, ao invés, os cruzeiros vão para o eixo Sta. Apolónia-Terreiro do Paço (doca da Marinha exclusivé) com o terminal e os navios a separarem mesmo bem separadinho a cidade do rio(?).

    Por favor, vá-se ao Google Earth (ou outro) e veja-se o disparate! Uma vez mais, a muitos níveis!

    É incrível ter que se propôr o óbvio, mas aqui fica:

    Terminal de cruzeiros contruído entre as estações de Alcântara e da Rocha, unindo-as finalmente e dando capacidade, dignidade e enquadramento aos navios de passageiros atracados. Pode ser um novo edifício levíssimo se bem explorada a arquitectura.

    Quaisquer mercadorias/contentores (que teremos sempre também que ter a bem da economia ...do País!), com as concessionárias associadas, instalados no eixo Sta. Apolónia-Matinha e/ou Lisnave e/ou (até)Setúbal e/ou ainda outro local bem estudado, pois de espaço a APL não tem falta na sua área de influência (vá lá, agora não vão escolher a Trafaria ou Porto Brandão, não?... É preciso dizer mesmo tudo?).
    E é possível fazê-lo certamente de modo bem rentável quer para a Liscont/Mota-Engil quer para o Estado/contribuintes.
    E o que é um negócio em que todos ganham?... ah, para bom entendedor meia palavra Ba.

    Finalmente o eixo Sta. Apolónia-Terreiro do Paço que corresponde à frente-rio de Alfama e portanto a mais antiga de Lisboa enquanto cidade romana, moura, medieval, sobrevivente a 1755 até aos dias de hoje, poderá ter navios como sempre terá tido, mas logicamente deveriam ser só os... Veleiros! ...de três ou mais mastros... Há veleiros antigos e modernos (Tall ships), até de cruzeiro, que apesar de tudo são muito menos em nº e tamanho que os paquetes, e que será quase unânime que ali se enquadrariam muito bem. E cada vez mais visitam Lisboa ao longo do ano.
    Útil à cidade e rentável...

    Por Exº: A nossa fragata D. Fernando II, tutelada pela Marinha, poderá ali estar atracada em espaço próprio servindo de cicerone aos restantes, visitantes ou nacionais.

    Ainda há o facto de se perder (ou ganhar consoante a decisão) a oportunidade de fazer 2 novas praças viradas para o rio e que estão mesmo a "pedi-las" há muito tempo: Praça de Sta. Apolónia e Praça da Alfândega, com os respectivos edifícios hoje já perfeitamente enquadrados - Há o problema da Inf. D. Henrique, mas de resto é quase só mesmo fazer a praça! E isso a Arquitectura nacional adoraria fazer/resolver!!! ...Mais negócios em que todos ganham?... Bom, e olhem que se há coisa em falho rotudamente é em engenharia...
    Portanto isto nas mãos de um bom engenheiro/gestor, imaginem!!

    Muitos, muitos mais argumentos existem, mas
    Bottom Line: Pense-se e actue-se repondo a lógica que assim todos ganhamos.
    Todos!- MST, Sócrates, Lisboetas, APL, País, Lisboa Cidade, Mota Engil, Tejo, eu, Navios de Passageiros, qualquer político, Arquitectura, Turistas, PME.s, Portugueses, tubarões da construção civil, Marinha Mercante (e até a de Guerra), MOPTC, E.U., DGCI...

    Ba não Ba?

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