Degradação invade beira-rio numa das zonas mais nobres da cidade de Lisboa-31.12.2008Ana Henriques
Um pedaço de puro dirty realism surgiu entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço, para espanto dos turistas que ali passam
Fosse mais colorido e musical e seria um cenário digno de um filme de Emir Kusturica. As personagens estão lá, reunidas em torno de um fogareiro improvisado, o rio magnífico mesmo em frente, a roupa a secar nos tapumes que cortam o acesso aos edifícios novos a estrear das agências europeias. É o retrato da mais nobre zona ribeirinha lisboeta em época alta turística e ainda à espera da tão falada reabilitação.
Máquina fotográfica na mão, o turista passa debaixo das estruturas metálicas vermelhas conspurcadas de graffiti que um dia já foram arte pública, sem ousar aproximar-se do iglu onde os homens que aquecem o estômago ao fogareiro guardam os escassos pertences. Pisa um chão escalavrado que termina na água, e olha um pouco surpreendido aquilo que Lisboa tem para apresentar aos visitantes mesmo ao lado de uma das suas praças mais nobres, o Terreiro do Paço: estaleiros, redes, tapumes e sobretudo uma profunda degradação do espaço público que dura há anos e tem tido sempre como álibi obras sem fim à vista. 2009 não será excepção. Desta vez serão obras de saneamento a garantir que os lisboetas e todos os que visitam da cidade não conseguirão aproximar-se do rio - ou que, quando o fizerem, é por sua conta e risco.
A namorada do turista da máquina fotográfica não se atreve a entrar no cenário, que visto mais de perto lembra o dirty realism de Feios, Porcos e Maus. Há algumas dezenas de carros estacionados à má-fila, um monte de roupa já seca no meio do caminho, restos de um relvado que um dia aqui existiu e detritos, demasiados detritos neste pedaço de terra de ninguém entre o austero Ministério da Marinha e o rio. Também há gente a pescar. Um pouco mais adiante, já defronte do Terreiro do Paço, o aterro de areia e gravilha que surgiu junto ao murete do Cais das Colunas encontra-se salpicado de embalagens vazias, restos de jornal e outros detritos avulsos. O próprio murete não está inteiro, faltam-lhe pedaços. Entre os edifícios das agências europeias e o Cais das Colunas há ainda espaço para um estaleiro de obras bem apetrechado. Montes de brita, contentores e jipes são guardados por um homem sentado numa cadeira virada para o rio. O local está vedado por redes que já viram muito melhores dias.
"Uma vergonha, medonho"
Uma mulher pequenina segue em frente sem se preocupar com a paisagem. "Isto é uma vergonha", observa. "E há tanto tempo que está assim..." Na imaginação da porteira reformada, bonito mesmo era quando casou. Depois disso... "É uma vergonha. Está tudo medonho", repete o vereador responsável pelos espaços públicos de Lisboa, José Sá Fernandes, apontando o dedo à administração portuária.
Ladeado de redes a lembrar os galinheiros, o recém-recolocado Cais das Colunas é um oásis no meio da anarquia. Dentro em breve deixará outra vez de poder ser visto, graças às obras do colector, que vão fazer com que parte dos esgotos da cidade deixem de sujar o Tejo e que serão reconduzidos para a nova ETAR na Avenida de Ceuta. Em plena Baixa pombalina, uma enorme placa de cimento faz de calçada daqui até à estação do Sul e Sueste. Marco da arquitectura pública dos anos 30, o edifício de Cottinelli Telmo continua a servir o fim para que foi criado - apesar de ter um estaleiro de obras à sua direita, outro à sua esquerda e de os andaimes abraçarem os pilares revestidos a mármore do seu átrio interior. O empregado da tabacaria da estação conta que há uns dois anos que está tudo assim. Metade dos enormes painéis de azulejo com os brasões das principais cidades do Sul servidas pelo comboio desapareceram. "Começaram a abrir com as obras do metro e foram para restauro", continua, conformado, o empregado da tabacaria. Uns baldes de tinta bastavam para que o emblemático edifício, há pouco liberto dos tapumes das obras do metro, voltasse a brilhar. Mas no seu branco pardacento o ar que tem é de desleixo e abandono.
O turista regressa para o pé da namorada, depois de se ter aventurado a chegar ao pé do rio. A máquina fotográfica continua a pender-lhe dos dedos, inútil, a não ser que subitamente fosse assaltado por uma qualquer inspiração cinematográfica. O casal segue o seu caminho e durante alguns minutos deixa de ver o Tejo, tapado pelos tapumes das agências europeias. Mas não há-de ser tão cedo que irão conseguir premir o botãozinho, clic, para mais tarde recordarem. É que a frente de rio do Cais do Sodré, para onde se encaminham, também está submersa por tapumes.
"É uma vergonha. Está tudo medonho", diz o vereador Sá Fernandes, que culpa a administração portuária
Um pedaço de puro dirty realism surgiu entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço, para espanto dos turistas que ali passam
Fosse mais colorido e musical e seria um cenário digno de um filme de Emir Kusturica. As personagens estão lá, reunidas em torno de um fogareiro improvisado, o rio magnífico mesmo em frente, a roupa a secar nos tapumes que cortam o acesso aos edifícios novos a estrear das agências europeias. É o retrato da mais nobre zona ribeirinha lisboeta em época alta turística e ainda à espera da tão falada reabilitação.
Máquina fotográfica na mão, o turista passa debaixo das estruturas metálicas vermelhas conspurcadas de graffiti que um dia já foram arte pública, sem ousar aproximar-se do iglu onde os homens que aquecem o estômago ao fogareiro guardam os escassos pertences. Pisa um chão escalavrado que termina na água, e olha um pouco surpreendido aquilo que Lisboa tem para apresentar aos visitantes mesmo ao lado de uma das suas praças mais nobres, o Terreiro do Paço: estaleiros, redes, tapumes e sobretudo uma profunda degradação do espaço público que dura há anos e tem tido sempre como álibi obras sem fim à vista. 2009 não será excepção. Desta vez serão obras de saneamento a garantir que os lisboetas e todos os que visitam da cidade não conseguirão aproximar-se do rio - ou que, quando o fizerem, é por sua conta e risco.
A namorada do turista da máquina fotográfica não se atreve a entrar no cenário, que visto mais de perto lembra o dirty realism de Feios, Porcos e Maus. Há algumas dezenas de carros estacionados à má-fila, um monte de roupa já seca no meio do caminho, restos de um relvado que um dia aqui existiu e detritos, demasiados detritos neste pedaço de terra de ninguém entre o austero Ministério da Marinha e o rio. Também há gente a pescar. Um pouco mais adiante, já defronte do Terreiro do Paço, o aterro de areia e gravilha que surgiu junto ao murete do Cais das Colunas encontra-se salpicado de embalagens vazias, restos de jornal e outros detritos avulsos. O próprio murete não está inteiro, faltam-lhe pedaços. Entre os edifícios das agências europeias e o Cais das Colunas há ainda espaço para um estaleiro de obras bem apetrechado. Montes de brita, contentores e jipes são guardados por um homem sentado numa cadeira virada para o rio. O local está vedado por redes que já viram muito melhores dias.
"Uma vergonha, medonho"
Uma mulher pequenina segue em frente sem se preocupar com a paisagem. "Isto é uma vergonha", observa. "E há tanto tempo que está assim..." Na imaginação da porteira reformada, bonito mesmo era quando casou. Depois disso... "É uma vergonha. Está tudo medonho", repete o vereador responsável pelos espaços públicos de Lisboa, José Sá Fernandes, apontando o dedo à administração portuária.
Ladeado de redes a lembrar os galinheiros, o recém-recolocado Cais das Colunas é um oásis no meio da anarquia. Dentro em breve deixará outra vez de poder ser visto, graças às obras do colector, que vão fazer com que parte dos esgotos da cidade deixem de sujar o Tejo e que serão reconduzidos para a nova ETAR na Avenida de Ceuta. Em plena Baixa pombalina, uma enorme placa de cimento faz de calçada daqui até à estação do Sul e Sueste. Marco da arquitectura pública dos anos 30, o edifício de Cottinelli Telmo continua a servir o fim para que foi criado - apesar de ter um estaleiro de obras à sua direita, outro à sua esquerda e de os andaimes abraçarem os pilares revestidos a mármore do seu átrio interior. O empregado da tabacaria da estação conta que há uns dois anos que está tudo assim. Metade dos enormes painéis de azulejo com os brasões das principais cidades do Sul servidas pelo comboio desapareceram. "Começaram a abrir com as obras do metro e foram para restauro", continua, conformado, o empregado da tabacaria. Uns baldes de tinta bastavam para que o emblemático edifício, há pouco liberto dos tapumes das obras do metro, voltasse a brilhar. Mas no seu branco pardacento o ar que tem é de desleixo e abandono.
O turista regressa para o pé da namorada, depois de se ter aventurado a chegar ao pé do rio. A máquina fotográfica continua a pender-lhe dos dedos, inútil, a não ser que subitamente fosse assaltado por uma qualquer inspiração cinematográfica. O casal segue o seu caminho e durante alguns minutos deixa de ver o Tejo, tapado pelos tapumes das agências europeias. Mas não há-de ser tão cedo que irão conseguir premir o botãozinho, clic, para mais tarde recordarem. É que a frente de rio do Cais do Sodré, para onde se encaminham, também está submersa por tapumes.
"É uma vergonha. Está tudo medonho", diz o vereador Sá Fernandes, que culpa a administração portuária
Resta saber em que agenda politica é que os lisboetas vão votar nas próximas eleições. Porque sinceramente...quem vier com outras promessas que não sejam LIMPAR e ORDENAR esta cidade de raiz, está só a gastar tempo precioso e a empurrar Lisboa para o abismo.
ResponderEliminartambém gostava de saber o parecer do igespar à reposição do cais das colunas...ou melhor...à meia reposiçáo.
ResponderEliminarSó lá está a parte central. a parte oeste está tapada por um aterro enorme e um novo pontão até à ribeira das naus, sendo que os muros para a praça do comércio estão cheios de grafitis e partidos e incompletos, parecendo que um carro se despenhou pelo meio.
a parte este desapareceu num aterro enorme que vai até à estação de barcos, sendo que o aterro está coberto de um lindo cimento. desapareceu todo o murete até ao torreão e a escadaria lateral está tapada com aterro.
isto é que é resposiçáo? o que é que o igespar disse? estamos a falar de um monumento nacional!
O que se passa na zona ribeirinha, entre o terreiro do paço e o cais do Sodré, é muito mais que uma vergonha, é um crime contra a cidade. E é também emblemático: as novas construções, junto ao rio, sem justificação, sem planeamento, vergonhosas. E o que as rodeia: a miséria, a sujidade, a incúria, o desmazelo. Mas infelizmente não é único: o resto de quase toda a zona ribeirinha, os bairros históricos, a baixa, o chiado, a descaracterização da Av. Liberdade, a tentativa constante de acabar com os eléctricos, a falta de prevenção da criminalidade, a sujidade, o império do betão, o estado da maioria dos espaços verdes, as constantes tentativas de diminuir ou amputar o PF de Monsanto, etc,etc...Tudo isto é inadmissível. Só não percebo como os turistas ainda nos visitam, só não percebo como continuamos, nós Lisboetas, a permitir isto. São anos e anos de incúria, compadrios e falta de respeito, são anos e anos de desleixo e dinheiro mal gasto. Sempre sem responsabilidades, sempre impunemente. Infelizmente continuamos no mesmo caminho: vem aí o museu dos coches, com o "seu generoso" silo automóvel á beira-rio, se possível, o terminal de cruzeiros (um muro sobre Alfama), a transferência de serviços para Monsanto, os contentores, mais construção e muito menos recuperação. E, apesar de tudo, Lisboa ainda continua a ser tão bonita. Até quando resistirá?
ResponderEliminarÉ de perguntar para onde raio vai o dinheiro dos impostos.
ResponderEliminarCaro A. Lourenço!
ResponderEliminarOs turistas ainda nos visitam. O problema é que não voltam e, tão pouco recomendam a nossa cidade a outros. É o que a gestão incompetente da nossa cidade tem vindo a realizar há algumas décadas. Há muitos que conseguem matar qualquer galinha de ovos de ouro. O problema é que fomos todos nós que lhes fornecemos as facas.