"Três a quatro vezes por semana, imponho-me o exercício de uma hora de marcha por vales e colinas do velho triângulo Baixa – Chiado - Príncipe Real. Apesar de já muito familiarizada com o cenário, estou atenta, porque transporto comigo o olho espião da máquina fotográfica. E mesmo se a atenção se foca, predominantemente, no quadro sereno das casas, dos jardins, das nuvens, do rio e do Sol poente, não deixo de reter algumas imagens e impressões das pessoas com que, entre as dezassete e as dezoito, me vou cruzando por ali. Arranco do Chiado, animada pelo cosmopolitismo desse espaço, que a proximidade do Tejo, espreitando a cada esquina, parece ampliar, e pela expectativa de um café no Nicola, tomado «en passant». Depois, as opções de trajecto são múltiplas: posso seguir para Ocidente, e embrenhar-me pelas vielas do Bairro Alto ou de Santa Catarina; posso subir até São Pedro de Alcântara – e, excepcionalmente, ficar por aí, na esplanada do quiosque, saboreando um chocolate quente sob um céu matizado de azuis, violetas e rosas suaves; ou posso descer ao Rossio, percorrer uns quarteirões da Avenida da Liberdade, ou «flanar» pela Baixa pombalina e explorar os novos baldios ribeirinhos até ao Cais das Colunas - aproveitando para me certificar de que este ainda lá está! - Infelizmente, já é raro encontrar, nas minhas deambulações, a paz que procuro. Ressalvado o refúgio do miradouro - onde se pára para que o mundo pare também - todos os restantes percursos me deixam, quase invariavelmente, o sabor amargo do ar poluído e da insegurança. Circulo, confesso, cheia de apreensões. Porque, para além dos taipais dos prédios e das obras intermináveis, da suja patina das paredes, que rouba a luz às ruas estreitas, das montras decadentes de uns estabelecimentos comerciais, que não renovam desde a minha infância, e do trânsito compacto, desordenado e frequentemente agressivo, há os pedintes, expondo, lamurientos, as suas mazelas; há as rodas dos «expatriados da vida» no Rossio, em S. Domingos e na Praça da Figueira; há os entertainers «pé-de-chinela» da Rua Augusta; há o dormitório exposto sob as arcadas do Terreiro do Paço; e há mil olhos vagabundos, predatórios, sem rosto, que parecem seguir-nos por demasiadas curvas do caminho. Há, em suma, uma atmosfera de tensão, vulgaridade e decrepitude, que me deita completamente abaixo. E que sinto – mais do que sinto: vejo! – adensar-se de dia para dia, como certas ondas que se encorpam e abatem sobre as praias, onde só deixam algaço e destroços."
Texto copiado, com autorização da autora, do Nocturno. Título meu.
Texto copiado, com autorização da autora, do Nocturno. Título meu.
Valha-me Deus, que senhora tão absolutamente dramática.
ResponderEliminarE é tão bonito ver a sua preocupação ternurenta pelos problemas dos outros, pelos que são sem abrigo, pelos que têm uma vida miserável. Que coração de ouro.
Não, esperem. É só porque lhe incomoda o passeio higiénico. Realmente, coitadinha.
De facto, que texto mais reaccionário. Esta gente tem medo de pobres!
ResponderEliminarDeve ser da mesma laia dos que não querem esplanadas no Camões, ainda vão para lá "pés-de-chinela" e outros horrorosos que tais!
Sim, Vanda, incomodam-me «o passeio» porque os vejo. Gostaria de ter a sorte dos que não os vêem e não se incomodam.
ResponderEliminarMarta, não é desses pobres que tenho medo, evidentemente. É dos outros.
ResponderEliminarP.S.: Gosto imenso da vida e das esplanadas do Camões. Não tanto das da Baixa, onde o ambiente - até pelo mau estado de conservação das casas - é mais soturno.
Só mais uma nota, Marta: gostei de percorrer o seu blogue (ainda recente?). Alcântara (ou Sto. Amaro) é a minha zona. Espero que descubra muito sobre ela. :-)
ResponderEliminarEspero que nunca tenha a sorte de ir a Paris, a cidade com mais vagabundos e sem abrigo por metro quadrado.
ResponderEliminarCaro Anónimo, está enganado: em Kinshasa há mais pedintes e sem-abrigo do que em Paris. O que torna a cidade uma delícia para se passear, e viver.
ResponderEliminarBoas Luis Serpa,
ResponderEliminarpeço desculpa mas não percebi onde quis chegar.
Obvio que Paris não é a cidade com mais sem abrigo, tratou-se de uma hiperbolezita apenas para dar ênfase a que em Paris há muitos mais sem abrigo que em Lisboa, o problema é bem mais grave, e damos especialmente de caras com ele se usarmos os transportes públicos da cidade durante a noite, no entanto, não deixa de ser uma cidade absolutamente fantástica.
Partilho em absoluto o que é dito no texto.
ResponderEliminarHá um ar de decadência miserável em muitas zonas da cidade de Lisboa e particularmente na Baixa e no Chiado.
De facto incomoda-me ver miséria, ver mau gosto e ver porcaria, quer por uma questão de educação e principio, quer porque acabam por ser estes sinais de degradação que marcam a imagem da nossa capital.
E sinceramente não considero desonroso ser pobre, nem culpo quem teve infelicidades na vida, mas abomino e não consigo respeitar quem faz, das suas mazelas e da sua pobreza, exposição pública.
Ser-se pobre e ter dificuldades não impede ser-se digno... e asseado, nem obriga, muito pelo contrário, a apelos confrangedores à comiseração pública.
Há elementos de comportamento das pessoas em geral e dos responsáveis pelas cidades, em particular, que tornam as cidades mais ou menos civilizadas, mais ou menos agradáveis para viver.
Lisboa tornou-se infelizmente numa cidade quase desgradável e custaria tão pouco que se mantivesse digna e bela.