Que espera a multidão
com este frio,
plantada ali defronte à estação
do Rossio?
Nada que justifique uma pneumonia...
Nada, afinal, para que assim se afoite:
- Espera apenas o fim de mais um dia,
quando o relógio marque a meia-noite.
Só há que o fim do dia por que espera
é, simultaneamente, o fim de um desengano
e o princípio de mais uma quimera
que, para muitos, vai durar um ano...
E a multidão - que vive o seu presente
em sonhos sem tom nem som -
está de nariz no ar, ansiosamente
à espera do Ano-Bom!
Espera, como quem espera
depois da fome, o pão;
depois do Inverno, a Primavera;
no tribunal - a salvação!
E quando, enfim, se cruzam os ponteiros
e a meia-noite soa,
o delírio electrisa os mais ordeiros
e sai fora de si o povo de Lisboa!...
O chinfrim ensurdece
e dir-se-ia que tudo se conhece,
tantos são
os abraços que se dão!
Soltam-se vivas, gargalhadas, gritos!
Bate-se em latas, tachos, caçarolas!
Tocam-se gaitas, sopram-se apitos
e dizem-se graçolas!...
Mas passada a vertigem de balburdia
da eterna farça da passagem do ano
- sobre a cidade em esturdia
cai o pano!
A vida, como sempre, continua
nem melhor nem pior: - tal qual o que era.
E a multidão dispersa, rua em rua,
mas... não desiste de ficar à espera!
Silva Tavares (1893-1964), in Calendário de Lisboa
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