26/01/2011

Mesmo quarentão, o Jamaica deita-se tarde

In Público (26/1/2011)
Por Ana Henriques

«O segredo? "Nunca apostámos na música dos tops", diz o primeiro DJ da casa, Mário Dias. Gerida durante muito tempo por um homem de direita, a clientela sempre se inclinou para a esquerda

Playlist de Mário Dias para 40 anos de Jamaica
Poucos e pobres moram onde parte da capital se diverte

O DJ dá mais uma baforada no cigarro antes de pôr os Rolling Stones: "I"ve been holding out so long, I"ve been sleeping all alone..." Na pequena pista de dança, que daqui a nada há-de estar a abarrotar, entoa-se o resto do refrão: "... lord I miss you."

Desde que as chamadas casas de meninas se reconverteram, transformando o Cais do Sodré num local de culto da noite lisboeta, já não é preciso vir para a fila do Jamaica para beber um copo. No Vicking, mesmo em frente, também passam clássicos; e quem preferir sons mais actuais é só rumar duas ou três portas adiante e ir até ao Music Box ou ao Roterdão. Mesmo assim, é quase sempre nesta antiga leitaria - que em 1971 se transformou num bar de alterne igual aos outros -, que a fila para entrar mais se alonga ao fim-de-semana.

Já com idade para ficar em casa a ver séries de televisão, Maria José Pereira passa muitas noites a cumprimentar quem vai passando à porta ou entra. "A decoração não é nada de especial. O nosso segredo é a música. Há anos que é a mesma e as pessoas não se cansam." Viúva de um dos sócios do Jamaica, resolveu tomar as rédeas da casa há meia dúzia de anos, e os 67 que já leva de vida não a demovem. Um dos filhos, Fernando, igualmente há muito ligado à casa, corrobora: "Pomos músicas que as pessoas podem cantar. Outro trunfo é o espaço: quando há muita gente na sala ninguém consegue ver nem dois metros à frente de si." Passa-se despercebido. Ou não: foram vários os casamentos que saíram das noites do Jamaica, confirmam proprietária e empregados. E alguns deles ainda se mantêm de pé.

O cheiro a pecado

Nos anos de 1980, antes de a zona de Santos nascer para a noite, o roteiro do sol posto começava no Bairro Alto, mas era aqui que acabava invariavelmente. O ambiente canalha, de bas-fond, que ainda restava do velho Cais do Sodré dos marinheiros-em-busca- de-prazeres-rápidos, exercia um certo fascínio sobre novos frequentadores, recorda o arquitecto Manuel Aires Mateus. Nessa época, quando ficava a trabalhar até tarde, passava primeiro pelo Frágil e depois pelo Jamaica com os amigos. "O que mais me agradava? Não se conseguir conversar, por causa do volume da música. Era um descanso...", ironiza.

"Tinha um certo cheirinho a pecado", observa por seu lado o escritor Mário Zambujal, que aqui lançou o livro Crónica dos Bons Malandros. O primeiro DJ da casa, Mário Dias, actualmente na TSF, tinha 23 anos quando mudou a sina do Jamaica.


"Jamaicização" da esquerda

Nos anos quentes do pós-revolução trocou os slows românticos e o disco-sound histriónico por Bruce Springsteen e Talking Heads, que tinham acabado de aparecer, à mistura com alguma música de intervenção. Só mais tarde haviam de surgir as terças-feiras de reggae. O intelectual Eduardo Prado Coelho inventou mesmo a expressão "jamaicização da esquerda portuguesa". Homem de direita, o marido de Maria José ia aos arames. "Tínhamos grandes discussões ao final da noite, ele a chamar-me comunista e eu a chamá-lo fascista", conta Mário Dias, cujo filho lhe seguiu as pisadas e põe música... no Jamaica.

"Como a sede da PIDE não era longe, antes do 25 de Abril havia agentes que frequentavam a casa", conta um antigo empregado, Augusto Barbosa. "Também era aqui que o Agostinho Neto passava o tempo" antes de se tornar Presidente de Angola, em 1975.

Nesses tempos, o bar abria logo às 9h, para servir café com leite às raparigas que trabalhavam de noite. E havia um quiosque com bonecas à entrada, para os cavalheiros que lhas quisessem oferecer, antes de irem para os quartos das redondezas.

Nesses tempos era assim, segundo a imprensa: num congresso, em Tóquio, um cientista anunciava a descoberta de uma pílula que permitiria às mulheres "comandarem a procriação" dali em diante; nas suas Conversas em Família, Marcelo Caetano inquietava-se com a situação internacional e, por arrasto, a portuguesa; os marinheiros continuavam a gastar dólares no Cais do Sodré, que se tornara um centro semiclandestino de troca de divisas. Quem saía do país abastecia-se ali, para contornar o limite legal de troca de moeda, diz Augusto Barbosa.

A 2 de Setembro, o Jamaica faz 40 anos. O programa de festas começa amanhã e prolonga-se até Outubro. DJ convidados ligados às artes alternarão com sessões de reggae e outras noites temáticas. O segredo? "Nunca apostámos na música dos tops", diz Mário Dias. "Nem Shakira, nem Beyoncé. A pop ligeirinha não faz parte dos hábitos da casa."»

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O Cais do Sodré podia ser um sítio fantástico, incluindo Corpo Santo, Praça D. Luís, Rua da Boavista e São Paulo. Infelizmente, não é. E nada acontece para que seja, apenas "planos de pormenor".

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