06/07/2011

Um novo teatro de autores está a nascer na capital

In Público (6/7/2011)
Ana Dias Cordeiro


«A luz branca da manhã entra em cheio na sala que vai ser de espectáculos, do Teatro da Politécnica, nova residência fixa dos Artistas Unidos (AU). O espaço, no coração de Lisboa, ainda está em obras. Mas não parece, porque a luz tudo limpa. E contrasta com o preto que cobre as paredes altas, nesta e na outra sala, a das Janelas, que será de exposições.

O edifício lembra um pavilhão de jardim e é esse o espírito do novo projecto dos arquitectos para o espaço onde vai nascer, a 19 de Outubro, um novo teatro de autores. Na nova casa dos AU que, desde 2002, andaram de sala em sala, sem residência fixa, depois da ordem de despejo, pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), do edifício d'A Capital no Bairro Alto, os espectáculos não terão mais do que dez actores e as peças serão, essencialmente, de autores contemporâneos.

"Gostaria que fosse um local onde se sentisse a escrita contemporânea." As palavras são de Jorge Silva Melo, durante uma visita com o P2 ao teatro, dias antes da assinatura, na semana passada, de um protocolo entre a sua companhia e a Reitoria da Universidade de Lisboa (UL) para os próximos três anos, renováveis.


Musset e Ângelo de Sousa

A escala não é muito grande para um teatro, mas a sensação é de espaço. Ao fundo, junto aos dois camarins, também banhados por uma luz plena, numa passagem sem porta, pode imaginar-se Elmano Sancho e Catarina Wallenstein a entrar no palco na peça de estreia do local: Não se brinca com o Amor, de Alfred de Musset.

Por ela passarão também outros jovens actores com quem o fundador e director dos AU tenciona trabalhar. "Acho muita graça aos princípios de carreira", diz o encenador. "De escritores" - Não se Brinca com o Amor, por exemplo, foi escrita quando Alfred de Musset tinha 24 anos. E de actores - "Gosto muito dos actores quando ainda estão a encontrar a sua voz." Mas Silva Melo vai querer também voltar a trabalhar com Maria João Luís ("um vício meu", diz), Lia Gama, Joana Bárcia. Miguel Borges e Manuel Wiborg vão voltar. Marco Delgado poderá também fazê-lo. Alguns actores deixaram o colectivo dos AU, fizeram outras opções, procuraram outros projectos. Há dez anos, a companhia chegou a ter quase 30 salários para pagar todos os meses. Hoje, fixas, tem 11 pessoas e, raras vezes, 30 pessoas por mês, a trabalhar. Na inauguração, haverá também uma exposição de esculturas de Angelo de Sousa, falecido em Março deste ano. "A Sala das Janelas é fantástica para escultura e as dele - pouco conhecidas muitas delas - são extraordinárias", continua o encenador.

As ideias fervilham para este horizonte de três anos, previsto no acordo com a Reitoria da UL que permite à companhia usufruir do espaço todo o ano, excepto em Maio, mês que fica reservado para os espectáculos do Festival Anual de Teatro Académico de Lisboa (FATAL), até aqui sem lugar fixo. No orçamento previsto para obras de 350 mil euros, os AU entram com cem mil euros este ano e a reitoria com o restante. O protocolo prevê ainda que a companhia procure outros financiamentos. A Fundação Calouste Gulbenkian e a agora Secretaria de Estado da Cultura garantiram ajudas para equipamento, em valores ainda por definir. A Câmara Municipal de Lisboa (CML) está neste momento em negociações com a companhia "para a celebração de um protocolo de apoio às futuras actividades no Teatro da Politécnica", fez saber o gabinete da vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto.

Mudança mas não total Desde 1973, quando fundou com Luís Miguel Cintra o Teatro da Cornucópia, Silva Melo encenou 140 peças e já passou por sítios muito diferentes. Sabe que um reportório se adapta à geografia do local. Neste caso, o local obriga a um reportório de teatro contemporâneo. E isso, só em parte, corresponderá a uma mudança de rumo.

"É uma mudança de rumo. Mas é também o que eu fazia n'A Capital. Aqui vou retomar o caminho que os Artistas Unidos tiveram lá. Mas A Capital não era só os Altistas Unidos. Era a ideia de um conglomerado de indústrias criativas, uma fábrica. Havia uma actividade transversal, com equipas de cinema, dança, etc... Aqui será mais uma sala de apresentação dos espectáculos dos Artistas Unidos."

Será um trabalho numa escala diferente àquela a que se habituou nas co-produções com o São Luiz, o Teatro Nacional D. Maria II, a Culturgest ou o Centro Cultural de Belém, mas também nalguns espectáculos que fez n'A Capital ou Teatro Paulo Claro (como passou a chamar-se quando este actor da companhia morreu num acidente em 5 de Maio de 2001).

O edifício, que foi sede, redacção e tipografia do jornal A Capital, foi cedido aos AU em 1999, pela Sojornal, nessa altura ainda proprietária e com o acordo da CML que, num processo de permuta entretanto já assinado em 2001, passou a deter a sua posse, lê-se na página dos AU na Internet. Seguiuse em 2002 uma ordem de despejo para a companhia. A companhia esteve no Teatro Taborda e Convento das Mónicas (mas este foi vendido para um hotel). Esteve no Braço de Prata, em Xabregas, onde agora é a Fábrica do Braço de Prata, nova morada da Livraria Ler Devagar, sala de concertos, exposições, restaurante e bar. Esteve também num casão militar perto de São Vicente de Fora, e noutras salas. O mais recente espaço, de onde saiu em Fevereiro último, foi uma garagem na Avenida Cidade de Luanda, nos Olivais.

Passaram quase dez anos, mas a história volta várias vezes ao ponto zero. E o ponto zero é A Capital, sonho acabado. "Isso nunca mais vai voltar a existir", diz. Para aí, Silva Melo chegou a pensar numa sala grande (com mais de 150 lugares), outra média e, ainda, uma pequena. No Teatro da Politécnica, a sala terá 110 lugares e um só cenário.

Antiga cantina

Já aqui houve teatro. Em 2008 foi um dos palcos do Alkantara Festival e, até 2008, esteve alugado ao Teatro Nacional D. Maria II. O espaço foi a cantina da Faculdade de Ciências, local de exposições e debates, de música com Lopes Graça e o seu coro da Academia dos Amadores de Música. No pós-guerra, final dos anos 40, quando Rui Mário Gonçalves e José Gil eram directores da parte cultural da Associação de Estudantes, Nikias Skapinakis teve aqui a primeira exposição com 17 anos. Aqui também se fizeram as primeiras conferências em defesa da arte abstracta e mais tarde se juntavam estudantes para a conspiração política.

O edifício tem uma história para ser contada. E Jorge Silva Melo também vai querer contá-la. Algumas das ideias que tem para o espaço traduzem-se em palavras num texto que escreveu sobre o novo teatro, e ao qual se colam palavras - como "juventude". Mas também nomes de autores contemporâneos com quem o encenador vai trabalhar. E de amigos, que Silva Melo filmou, como os pintores Angelo de Sousa e Álvaro Lapa: "Disponível, disponível é a juventude. Mesmo que seja incapaz, incompetente, estouvada, destrutiva. Mas é disponível", disse Álvaro Lapa. Silva Melo lembra isto a propósito da peça de estreia do espaço, em que Alfred de Musset, depois de um desgosto de amor, "inventa a juventude". Mais tarde, e depois de um clássico, o encenador voltará aos seus autores contemporâneos preferidos. Enda Walsh (n. 1967, Irlanda) com A Farsa da Rua W ou Giovanni Testori (1923- 1993), autor das novelas que deram origem a Rocco e os Seus Irmãos, de Visconti. Dias de Vinho e Rosas, de Owen McCafferty (n. 1961, Irlanda do Norte), é outras das peças já programadas até Dezembro.»

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