16/10/2011

Como é que alguns fazem em Lisboa o que mais ninguém pode

In 'Público' de 16.10.2011 - Por José António Cerejo


O que aqui se conta é uma história que mostra como a cidade lisboeta chegou ao que é e como muitas teias se tecem. O caso de como uma quinta histórica se tornou um condomínio privado que, afinal, é público.

Era uma vez uma quinta que se chamava Mata dos Sabugosas e que se tinha chamado Quinta Cesária e que ocupava quase três hectares não longe do centro de Lisboa. Ficava entre Alcântara e a Tapada da Ajuda, numa zona que nos anos de 1960 levou com a então chamada Ponte Salazar em cima. Pertencia à família dos condes de Sabugosa e num dos extremos, junto à Rua 1º de Maio, tinha um palácio com quatro séculos, um amplo jardim formal e um pomar.

Na parte superior havia uma "significativa e característica mata arbórea e subarbustiva", que "garantia a permeabilidade do solo". Quem assim a descreveu, em Dezembro de 1993, foi Maria Luísa Ferraz, uma arquitecta do serviço de Ambiente da Câmara de Lisboa. E disse mais: "Por este espaço passaram ao longo dos tempos vários escritores e homens de letras, sendo esta a casa que serviu de inspiração às descrições do "Ramalhete" nos Maias, de Eça de Queirós."

Daí e de tudo o que representaria o projecto de urbanização da quinta, sobre o qual tinha a incumbência de se pronunciar, concluiu a técnica que tal proposta não era compatível com a manutenção da mata. No seu entender, o espaço em causa merecia "um destino diferente".

O mesmo julgou a equipa da Direcção de Planeamento Estratégico (DPE) que, no mês seguinte, propôs "o indeferimento do pedido de licenciamento do loteamento". Proposta sobre a qual nenhuma hierarquia, nem o então presidente da câmara, Jorge Sampaio, se pronunciou.

Passados sete anos estava lá o que lá está agora: um conjunto de 17 prédios de quatro a seis pisos e 168 apartamentos, com um acesso único e exclusivo para os residentes, na Rua Luís de Camões, controlado por um segurança e uma cancela automática. O palácio e o jardim permaneceram intactos e fisicamente separados da nova urbanização, baptizada com o nome de Alcântara Residence.

O deferimento tácito

Para se chegar ao que lá está, muito caminho se fez. No final de 1993 estava em fase final de aprovação o Plano Director Municipal (PDM) de Lisboa, que apontava para restrições adicionais às que constavam da normas provisórias do PDM publicadas em 1992. E foi por essa altura que a mata dos Sabugosas passou para as mãos de um fundo imobiliário controlado pelo empresário Vasco Pereira Coutinho e gerido pela sociedade GEF.

Antes disso, a empresa "teve o cuidado de obter a confirmação, a título particular, junto de técnicos da Câmara de Lisboa, sobre a perfeita conformidade" entre o que ali pretendia fazer e o que estabeleciam as normas provisórias do PDM. Quem o afirma é a própria, numa acção judicial que interpôs em Março de 1994, com o objectivo de conseguir o reconhecimento judicial do alegado deferimento tácito do projecto de loteamento da mata, que tinha entregue em Junho do ano anterior. Esse projecto tinha tido uma proposta de indeferimento dois meses antes, sobre a qual ninguém se pronunciou.

Na prática, todavia, a câmara, que até rejeitava em tribunal a tese de que se tinha verificado o deferimento tácito, abriu os braços ao promotor (GEF) e começou a negociar com ele a remodelação do projecto. Jogando pelo seguro, a GEF pôs a acção em tribunal no meio das negociações e recusou-se a desistir dela mesmo depois de Jorge Sampaio, logo no mês seguinte, ter assinado um despacho de concordância com o resultado das mesmas negociações. Só passados três anos, já com o alvará de loteamento na mão, é que pôs fim ao processo, até aí suspenso a pedido das partes.

Nesse intervalo levou a água ao seu moinho e conseguiu, já com João Soares, muito mais do que Jorge Sampaio lhe tinha dado contra a redução das áreas de construção previstas na primeira versão do projecto - mas sempre no quadro das normas provisórias do PDM, conforme exigência sua.

O acesso que desapareceu

Logo em Junho de 1994, o então presidente da câmara aprovou a versão saída das negociações. Mas fê-lo sob três condições, uma das quais era "a resolução do acesso condicionado pela Rua 1º de Maio, em local que se presume estar sob jurisdição da Junta Autónoma de Estradas". Ou seja: a aprovação definitiva e a emissão do alvará só podiam ocorrer se a GEF conseguisse assegurar, na fase de aprovação do projecto das obras de urbanização, um acesso alternativo a construir naquele local.Acontece que o requerimento que acompanha os projectos dessas obras, entregue no final do ano e assinado pelo então presidente da GEF, José Manuel de Sousa, deixa cair tal acesso e explica porquê: "Por se ter revelado desnecessário". Tratava-se de um acesso de emergência, nomeadamente para os bombeiros, mas José Manuel de Sousa dizia a Jorge Sampaio que a sua supressão e as alterações que ela implicava "mereceram opiniões informais favoráveis dos serviços municipais contactados, designadamente do Regimento de Sapadores Bombeiros".

Formalmente, contudo, nunca os bombeiros se pronunciaram sobre a substituição desse acesso por uma escapatória labiríntica, sempre fechada, que atravessa os jardins do palácio do Conde de Sabugosa e dá para a Rua 1º de Maio, através de um portão em que mal passa um automóvel ligeiro. Mas se os bombeiros nunca o fizeram, o mesmo não aconteceu com outros serviços camarários. O Departamento de Tráfego, por exemplo, considerou repetidamente a "situação de acesso único" como "insuficiente em termos de acessibilidade" e de segurança, com a concordância do vereador do pelouro, Machado Rodrigues.

Mau grado essa concordância, foi este que aprovou as obras de urbanização, com o acesso único, em Julho de 1996. E fê-lo por remissão para uma informação do Departamento de Infra-estruturas Viárias que propunha a aprovação no "pressuposto", nunca verificado, "de que o loteamento obterá parecer favorável da Direcção Municipal de Planeamento e Gestão Urbanística [DMPGU]".

Eliminado o segundo acesso, a GEF ganhou em diferentes tabuleiros. Não só não teve de o construir, como, entre outras consequências favoráveis, viu aprovada no local a criação de uma grande área de estacionamento à superfície, em vez do previsto estacionamento subterrâneo.

Mas afinal ninguém se apercebeu de que a condição posta por Sampaio tinha sido desrespeitada? E o parecer da DMPGU, entidade que à época era fulcral nestas aprovações, o que é que diz? Vistos e revistos os processos do loteamento e das obras de urbanização ninguém deu por nada e a DMPGU nada disse. Um outro processo camarário, do Departamento de Património, relacionado com o cálculo das taxas devidas pelo promotor e com a entrega de terrenos em troca dessas taxas (ver texto nestas páginas), desmente, contudo, tal conclusão.

Parecer que ficou na gaveta

Três meses antes da aprovação das obras de urbanização, um arquitecto da DMPGU, Manuel Freitas, escreveu tudo o que os outros silenciaram, mas sem qualquer consequência. O original da sua informação manuscrita, de sete páginas, não está nos processos onde tinha de estar, mas há uma fotocópia no processo do Património. O PÚBLICO perguntou ao presidente da câmara, a 8 de Setembro, onde é que se encontra o original, mas, mais uma vez, não teve resposta.

No texto, o autor frisa que, "tendo o presidente dado uma aprovação condicionada à resolução do segundo acesso (preconizado pelo requerente) só o próprio presidente teria "poder" para expressamente aprovar outro acesso alternativo ou dispensar e "libertar" a GEF do condicionamento imposto no âmbito da sua deliberação - e isto o presidente não o fez."

Manuel Freitas faz notar que a criação do acesso pelos terrenos da Junta Autónoma de Estradas não foi autorizada por esta entidade e que, depois disso, fez uma visita ao local com um dos administradores da GEF para resolver o problema. Nessa ocasião, salienta, foram identificados vários edifícios da Rua dos Lusíadas, contíguos à parte de cima da mata, todos eles com condições para serem demolidos (depois de adquiridos pelo promotor) e propiciarem um adequado segundo acesso à urbanização. O técnico escreve também que informou o representante do promotor de que "em outros projectos de loteamento em idêntica situação e desta dimensão, a câmara não tem aceite soluções de acesso único".Quanto à solução proposta de acesso "através dos jardins privados do lote privado do palácio", por um portão "onde não caberá um qualquer carro dos bombeiros", o arquitecto salienta que, sobre ela, "nenhuma pessoa de nenhum departamento da câmara se pronunciou (ou se quis pronunciar)".

A informação termina com a proposta, nunca aceite, de convocação da GEF para que esta fosse instada a dar cumprimento à resolução do segundo acesso, não sem antes fazer uma chamada de atenção, a propósito do tratamento deste processo: "Há regras estritas de procedimento na relação dos serviços [camarários] com os requerentes que têm de ser respeitadas, tendo em vista o bom entendimento e um relacionamento dentro da legalidade e da transparência."

Os nomes desta história

Para lá de Pereira Coutinho, o empresário que uma vez levou Durão Barroso a passar férias numa ilha de que é proprietário e cujo nome nunca aparece no processo, esta história tem um protagonista essencial. Trata-se de alguém que só raramente aparece a assinar um documento ou outro, embora tenha também participado em reuniões na DPE da câmara, então dirigida por António Fonseca Ferreira - o braço direito de Jorge Sampaio na elaboração do PDM.

Chama-se José Manuel de Sousa, ocupou lugares dirigentes nos serviços da Câmara de Lisboa até 1990, altura em que assumiu a presidência do conselho de administração da GEF. Dois anos depois deixou o grupo de Vasco Pereira Coutinho e foi nomeado por Sampaio para o cargo de presidente da Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL).

Mas, logo em Março de 1994, três dias antes da acção da GEF contra o município entrar em tribunal, deixou a EPUL e voltou para a presidência da empresa de Pereira Coutinho. Já em 2001, quando o Alcântara Residence estava praticamente construído largou a GEF, seguiu para o Grupo Espírito Santo, e foi substituído pelo advogado e especialista em direito do urbanismo João Pitschieller.

Ou seja: saiu o antigo presidente da EPUL e entrou o principal consultor jurídico de Jorge Sampaio e de João Soares, enquanto presidentes da câmara, e um dos artífices do PDM de Lisboa.

Nem a GEF nem a câmara quiseram comentar ou prestar qualquer esclarecimento sobre este processo. A autarquia, a quem as primeiras perguntas escritas foram dirigidas em 12 de Agosto, limitou-se a informar, através da assessora de imprensa Luísa Botinas: "A câmara não comenta" e "a câmara não é obrigada a responder".

3 comentários:

  1. Este assunto é sério; porém, comparado com o mirabulástico Projecto 'Alcântara XXI', é brincadeira de meninos...!

    ResponderEliminar
  2. O público que se tornou privado
    16.10.2011 - 20:41 Por José António Cerejo
    http://www.publico.pt/Local/o-publico-que-se-tornou-privado-1516789

    ResponderEliminar
  3. Quem armadilhou a CML foi o Sampaio com aquele ar que não faz mal a uma mosca armadilhou a CML com os seus amigos vindos do MES que engrossaram as fileiras do PS.
    Imagino o desânimo do soldado Cerejo dá sensação que não há gente séria em lado nenhum, é uma pena. Coragem José António fica sabendo que a tua matéria prima não vai esgotar tão cedo...

    ResponderEliminar