20/10/2011

Um rapaz "exemplar" morreu esfaqueado nas Mercês por causa de um boné


Estabelecimento fica numa zona carenciada. O jovem empenhava-se em ajudar

Um rapaz "exemplar" morreu esfaqueado nas Mercês por causa de um boné Por Romana Borja-Santos in Publico

A vítima, de 19 anos, foi atacada por três indivíduos, anteontem à noite, confirmou a PSP. Horas antes, segundo a versão da directora da escola, tinha impedido assalto a outro jovem

António, de 19 anos, podia ter enveredado pelo caminho errado. Mas conseguiu fazer as escolhas certas. Era considerado um "exemplo de força, determinação e solidariedade" para a Escola Básica de Fitares, concelho de Sintra. Anteontem morreu na sequência de um esfaqueamento. "Era o DJ nas festas na escola, animador de rádio, era um exemplo, era tudo", recorda a directora da escola, Cristina Frazão.
Contactada pelo PÚBLICO, a Polícia de Segurança Pública (PSP) confirmou a morte do jovem, após um esfaqueamento levado a cabo por três indivíduos e que ocorreu ontem às 22h50 na Rua Dr. João de Barros, nas Mercês. A mesma fonte explicou que o óbito foi declarado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, mas escusou-se a avançar pormenores sobre as circunstâncias do incidente ou sobre a eventual detenção dos suspeitos - justificando que o caso foi entregue à Polícia Judiciária (PJ), encontrando-se actualmente em segredo de justiça.
Na versão da escola, tudo se passou por causa de um boné. Cristina Frazão ressalva que ainda não sabem todos os pormenores, mas consta que António terá tentado impedir um roubo de um boné a um outro jovem. Mais tarde foi interceptado pelo suposto grupo de assaltantes, acabando por ser esfaqueado com uma arma branca. "Ajudar estava na sua personalidade. Quem o conhece sabe que não é uma vítima de mais uma rixa", garante Cristina Frazão.
Um mediador
A Escola Básica de Fitares, onde António concluiu o 9.º ano com um Curso de Educação e Formação em Práticas Administrativas, fica numa zona carenciada, com problemas sociais. António era o mediador do projecto Orienta.Te, uma iniciativa que "surgiu da necessidade de se ultrapassarem alguns problemas emergentes na área geográfica da Rinchoa e Fitares".
Apesar de já ter concluído o 9.º ano e de ter, por isso, deixado oficialmente a Escola de Fitares, continuava a colaborar de perto, enquanto aguardava notícias sobre uma possível admissão numa escola profissional para prosseguir o seu sonho: fazer um curso na área de multimédia e eventos.
"Apesar da idade com que concluiu o 9.º ano não era um miúdo com muitas retenções ["chumbos"]. Veio da Guiné e por isso começou a escola tardiamente, mas foi bem-sucedido. Era muito empenhado, organizado e motivava muito os mais novos. Era o exemplo de que, quando conseguimos criar auto-estima nestes alunos, eles respondem. Preocupa-me muito a mensagem que uma situação destas pode passar e que os alunos deixem de lutar por uma vida diferente", reforçou Cristina Frazão.
Também Sónia Fernandes, psicóloga da escola e coordenadora do projecto Orienta.Te, conta que o aluno tinha "um projecto de vida bem estruturado" e que "funcionava como um mediador entre professores e alunos". Era uma ponte. "Mesmo quando fora da escola detectava algum caso de risco, vinha ter connosco a pedir para ajudarmos os colegas. Era um verdadeiro amigo, um amigo mesmo. Era tranquilo, mas muito conhecido e divertido. Sempre que tínhamos uma ideia, telefonávamos-lhe e lá vinha ele. Ajudava-nos com os mais novos nas colónias de férias. Era muito disponível e agora estava a preparar connosco a nossa festa de Halloween", recorda a psicóloga.
António vivia com a mãe e com um irmão mais novo, pelo que fazia as vezes de pai, acrescenta Cristina Frazão. "A mãe trabalhava muitas horas e ele era como um pai para o irmão. Acompanhava os estudos, cozinhava em casa e vinha muitas vezes à escola buscar o irmão. Era a referência deste irmão e de muitos dos nossos alunos, que estão inconsoláveis. Não queremos que deixem de acreditar que, apesar de tudo, vale a pena lutar para serem, no futuro, um António."

Contrastes
Um caso de sucesso que acabou mal

O caso da morte deste antigo aluno volta a colocar a Escola de Fitares no centro das atenções, desta vez pelo sucesso na inserção de um jovem assassinado no exterior do estabelecimento. António, de 19 anos, era alvo de elogios e poderia ter sido notícia por boas razões. Uma situação que contrasta com a notícia avançada pelo PÚBLICO em Março de 2010, sobre um professor de Música deste estabelecimento que se suicidou, alegadamente por ser vítima de bullying por parte dos alunos, depois de ter apresentado várias queixas à direcção da escola.
Poucos meses depois, em Maio do mesmo ano, um outro docente de Fitares foi acusado de assédio sexual. Ambos os casos foram arquivados por se considerar não haver matéria suficiente para procedimentos disciplinares.

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A Opinião de Helena Matos no Publico de hoje …

Quando o Estado falha

Estão a tornar-se perigosamente frequentes as notícias sobre cidadãos feridos (e em alguns casos mortos), quando tentavam impedir um assalto ou ajudar alguém que estava a ser agredido. Menos grave mas igualmente eloquente sobre o clima de insegurança é a multiplicação de agentes em gratificados e de seguranças em estabelecimentos comerciais. O Estado português quis fazer de família, animador cultural, educador, ensinar-nos como deve ser a nossa vida sexual… mas ganhou um fastio profundo pelas áreas tradicionais e até ver insubstituíveis do Estado. A segurança dos cidadãos é ou era uma dessas áreas, pois o que resulta da leitura diária das notícias sobre o chamado “delito comum”, que só é comum para quem não o sofre, é a imagem de um país em que as pessoas se sentem inseguras. Dirão que tal resulta em boa parte da legislação que transformou os criminosos em alegados qualquer coisa que os juízes mandam ir de duas em duas semanas apresentar-se na esquadra até que se ausentam para o estrangeiro. Provavelmente isso é verdade, mas essa é apenas uma parte da verdade. Aliás, um dos maiores falhanços da nossa democracia é o aumento da população prisional: segundo a Pordata entre 1970 e 2010 o número de reclusos duplicou. O que nos acontece ou mais precisamente o que nos está a acontecer neste absurdo em que os cidadãos se sentem desprotegidos pela lei e as prisões estão cheias? Acho que falhou a autoridade. Paulatinamente foram-se desautorizando os pais, os professores, os funcionários das escolas, os motoristas dos transportes públicos. Ninguém diz nada a quem rouba no supermercado, estraga os bancos do autocarro ou vandaliza uma paragem de autocarro. Só quando finalmente se chega ao crime é que aparece a figura da autoridade. Nesse momento é obviamente muito tarde. Às vezes demasiado tarde. Para os criminosos que podiam nunca o ter sido. E para as vítimas que nunca o deviam ter sido.

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