"Lisboa - diz Luísa Dornelas - salvaguardará as calçadas com valor artístico, e que são sustentáveis, pois usam material nobre, reutilizável, que não impermeabiliza a cidade, mas alimenta os lençóis freáticos. É bonita, lavável, e é ela que dá a Lisboa a sua cor única. Mas para salvaguardar o património, é preciso inventariar, estimar. E regulamentar. É preciso regras para intervir em calçada artística, saber quem tem qualificação para tal. Não pode deixar de existir só porque está degradada."
Por Carlos Filipe in Público
Quem caminha sobre o rendilhado de pedra vai pedindo a reforma da calçada e pisos mais confortáveis, cansado de equilíbrio instável. Poderá ser preciso regulamentar para a preservar
Pedras mal calçadas ou arrancadas, passeios inclinados, ondulados pelo peso dos automóveis, escorregadios ou deformados pelas raízes das árvores, dir-se-ia que não se consegue andar a direito nas ruas feitas de calçada portuguesa. Com apenas 22 calceteiros, a Câmara de Lisboa não consegue acorrer a tanta doença no piso da cidade. Uma escassez de mão-de-obra qualificada que afecta também o Brasil, que importou o "Mar Largo" do Rossio para o famoso passeio marítimo de Copacabana. Não há revolta, mas apelos à atenção pelo conforto e saúde das pessoas e pela reparação dos passeios.
Sem um calceteiro que seja em formação na escola camarária, os tapetes de pedra começam a estar em risco, à beira da degradação e sob ameaça de substituição. Nota-se já que nos projectos de novos espaços públicos, os arquitectos revelam tendência crescente para utilizar materiais alternativos aos cubos de calcário. A laje em lioz vai tomando o lugar da pedra arrancada às serras d"Aire e Candeeiros.
"Fora das zonas históricas há clara tendência para utilizar materiais alternativos, um assunto de grande importância técnica, estética, urbanística, social e até económica, que importa discutir ponderadamente", diz o arquitecto paisagista Jorge Cancela, do gabinete Biodesign.
"Em muitas situações, a calçada será desejável, em outras não, tudo dependendo de um conjunto alargado de premissas que importa ter em conta na hora de escolher um pavimento, em particular, pedonal. A qualidade funcional e plástica da calçada em zonas mais planas, o fácil acesso a redes enterradas, a possibilidade de desenhos tradicionais ou criativos, a promoção de materiais locais, são exemplo de razões que podem levar a optar por calçada ao invés de outros materiais que, naturalmente, também têm vantagens e inconvenientes", concretiza.
"Os pisos irregulares são bastante desaconselháveis e frequentes causas de traumatismos provocados pelas entorses do tornozelo", diz Paulo Felicíssimo, da Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia.
"O uso de sapatos com salto muito alto e fino são uma das causas mais frequentes no sexo feminino. A presença de terrenos irregulares, entre os quais podemos incluir muitos dos passeios de Lisboa, são outra das causas frequentes de entorse do tornozelo, e o maior factor de risco para uma entorse é já ter tido uma entorse anteriormente, que frequentemente carece de tratamento cirúrgico", diz o ortopedista, admitindo que "a prevenção destas lesões passa, naturalmente, pelo uso de um calçado que é muitas vezes incompatível com a moda."
De saltos sabe o mestre sapateiro Joaquim Cavalheiro, de 76 anos, que há 47 exercita o ofício no vão de escada do 50 da Rua do Crucifixo. Os colegas - em outros tempos havia-os às dezenas -, um está na dos Correeiros, outro na da Vitória com a dos Fanqueiros, são os resistentes da Baixa de Lisboa que já não conhece ofícios. "Manter a antiguidade é importante, mas se a pedra fosse juntinha não teríamos problemas", diz o sapateiro.
Não é uma razão aceitável para ser considerada queixa a capa que conserta. Foi apenas um percalço. "As senhoras dizem que [a calçada] dá cabo dos saltos. Num caso ou noutro têm razão, mas veja-se este - mostra uma peça como exemplo: este estrago foi feito a conduzir, ou pelas travessas das cadeiras quando estão sentadas."
"Deviam colocar um pouco de cimento entre as pedras para elas não saltarem e para os saltos não se cravarem entre pedras", remata, consentindo que uma junta mal feita será o maior erro de um piso assente por calceteiro inexperiente ou mal formado.
Receio gera queixas
Mas que dizer quando são os cidadãos mais velhos a assumir que o seu principal receio em caminhar na rua reside no mau estado das calçadas? Em Março de 2011, para a elaboração do Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa, o pelouro da mobilidade produziu o relatório "As Ruas também são Nossas", após sessão de consulta pública com mais 200 munícipes, todos com idade igual ou superior a 55 anos.
Os participantes responderam que os passeios "são muito irregulares, têm altos e baixos que provocam quedas e acidentes", "A calçada tem pedras soltas e deformações provocadas pelas raízes das árvores onde as pessoas tropeçam e zonas mal calcetadas", "Os passeios muito polidos provocam escorregadelas, especialmente nas ruas mais inclinadas." Em suma, disseram ser necessários mais manutenção e um calcetamento mais bem executado.
Na informação prestada à Assembleia Municipal em Fevereiro pelo presidente da câmara, António Costa, os serviços municipais deram conta que a sua brigada de calceteiros fez recentemente intervenções em passeios de 62 arruamentos, totalizando 2570 m2 de calçada.
"Entre os anos 40 e 50 [do século passado] Lisboa tinha quase 400 calceteiros, hoje há 22 e nem um em formação", conta Luísa Dornelas, responsável pela formação profissional da autarquia e pelas escolas de calceteiros e de jardinagem, na Quinta Conde de Arcos, nos Olivais. A engenheira agrónoma fala com paixão das escolas que dirige, mas com dor na alma quando responde às empresas que não tem calceteiros formados para os abastecer. "É uma saída profissional, e com tanto desemprego não percebo por que não aparecem." Admite, porém, uma explicação: "É profissão dura. E um mestre - o topo da carreira - não ganhará mais que 900 euros."
A raiz do problema
Isso não demove a ADICES, associação de desenvolvimento local de Santa Comba Dão, que está a promover um curso de calcetaria em Carregal do Sal. De visita técnica à escola de calceteiros de Lisboa, levou 13 formandos, e alguns disseram não ter dúvidas. "Tem procura na região e é bem paga."
"Fazemos parcerias com o Instituto do Emprego e Formação Profissional, que paga bolsas e nós montamos o curso, que deve ter mil horas. Durante quatro meses o divulgámos, mas ninguém apareceu", lamenta Luísa Dornelas.
Frequentemente, a CML tem que fazer outsourcing para trabalhos de calçada. "Muitos desses operários não estão habilitados, pois são pedreiros que enchem o caminho de pedra e se ficarem afastadas enchem mais depressa o espaço. Depois, à primeira chuvada vai a pedra, o salto [e vem] a dor no tornozelo".
"Lisboa - diz Luísa Dornelas - salvaguardará as calçadas com valor artístico, e que são sustentáveis, pois usam material nobre, reutilizável, que não impermeabiliza a cidade, mas alimenta os lençóis freáticos. É bonita, lavável, e é ela que dá a Lisboa a sua cor única. Mas para salvaguardar o património, é preciso inventariar, estimar. E regulamentar. É preciso regras para intervir em calçada artística, saber quem tem qualificação para tal. Não pode deixar de existir só porque está degradada."
A raiz do problema é insistir em usar esse tipo de pavimento obsoleto, inestético, irregular, anti-higiénico, caro, impraticável, caríssimo de manter, impossível de limpar.
ResponderEliminarBasta de tiques de terceiro-mundismo, já é altura de acabar com isto.