17/06/2012



Opinião

Lisboa e o apelo do Presidente
Por António Sérgio Rosa de Carvalho in Público


Lisboa, Jerónimos, entrega dos prémios Europa Nostra na presença do Presidente da República e princípes de Espanha. Momento institucional digno e conseguido. Momento institucional em tensão com uma realidade ameaçadora do património. As aparências iludem, numa diferença abismal entre aquilo que parece e aquilo que é.
Comecemos pelo paradigmático caso Foz do Tua. Depois de um relatório dos peritos do Icomos, o Governo, que segundo parece já teria a intenção de construir a barragem quando apresentou a Candidatura a Património Mundial, decidiu, com a EDP, avançar com a barragem. Num jogo arriscado para o prestígio internacional de Portugal, resolveram "tirar um coelho da cartola", iludindo num truque impossível uma intervenção que terá profundas consequências na região e que poderá levar à perda do seu estatuto prestigiante.
Entretanto, depois de o secretário de Estado da Cultura ter afirmado que a perda do estatuto seria impensável, vem a ministra informar que seria impossível parar as obras, pois os custos seriam incomportáveis. Teremos que aguardar o desfecho, mas quem será responsável se o Douro Vinhateiro perder o seu estatuto de Património Mundial? Vem isto a propósito do apelo do Presidente da República à participação cívica. Mas não é fácil, acima de tudo porque nunca são dadas respostas.
A ilustração ideal desta tensão entra aparências e realidades - entre "conteúdos" e fachadas - é Lisboa. Ou seja o triunfo sistemático e progressivo do fachadismo, camuflado na chamada "reabilitação urbana".
E o mais grave é que este processo de destruição já se estende à Baixa Pombalina, que a CML paradoxalmente continua a afirmar pretender candidatar a Património Mundial. As características fundamentais que determinam o valor histórico do estilo pombalino - a "gaiola", estrutura-esqueleto flexível e anti-sísmica - e todos os elementos produzidos dos seus interiores estão ameaçados por intervenções "betonizadas" dirigidas à inserção forçada de um conceito contemporâneo de viver e estar. É possível um equilíbrio integrado entre necessidades actuais e preservação de interiores históricos, mas nunca numa filosofia de intervenção onde o tema principal é determinado pelo comando à distância de portas de garagens, sobre o aparente prestígio de fachadas "históricas", transformadas num absurdo pela demolição de todo o seu conteúdo.
Num país onde não se desenvolveu uma cultura de restauro, onde o ensino da história da arquitectura é exercido por arquitectos prisioneiros da síndroma "criadora", que intervêm no património a seu bel-prazer, deixando marcas-fétiche pessoais, assiste-se agora a uma desconstrução da defesa institucional do património.
Todas estas perguntas, formuladas na Net por uma sociedade civil em franco progresso em direcção a uma democracia participativa, são sempre deixadas sem resposta.
Este mesmo jornal tem sido confrontado com esta realidade autista e indiferente perante os eleitores-leitores. Culminando uma série de experiências negativas, o PÚBLICO noticiou esta semana que a CML deixou de anunciar as suas propostas a apresentar em reunião de Câmara e recusa-se a disponibilizá-las. Esta progressiva ausência de transparência ilustra também um acto premeditado contrário ao incentivo da participação cívica a que o Presidente apelou, ilustrando assim tragicamente a diferença abismal entre o parecer e o ser.
Historiador de Arquitectura

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