Cinemateca: histórias de um quotidiano kafkiano
Por Alexandra Prado Coelho in Público.
O orçamento já era problema. Mas o que paralisa a Cinemateca é a obrigatoriedade de pedir às Finanças para gastar o seu próprio dinheiro. A luz verde não chega a tempo, há coisas que deixam de ser feitas.
Entra-se no edifício da Cinemateca Portuguesa, na Rua Barata Salgueiro, em Lisboa, e, em cima de uma mesa, está o jornal, com a folha de capa praticamente vazia e um aviso em forma de carimbo: "Em cumprimento do despacho do Senhor Ministro de Estado e das Finanças, de 12 de Setembro, vimo-nos obrigados a suspender a impressão do jornal Cinemateca deste mês", o programa que enquadra os ciclos e os filmes programados.
O jornal foi feito, mas não foi impresso numa gráfica - o que está disponível são folhas saídas de uma impressora de computador. Não foram, contudo, as restrições orçamentais que levaram a esta situação.
A questão é mais kafkiana, explica Luís Miguel Oliveira, responsável pela programação: "O dinheiro é do nosso orçamento, mas como a impressão entra na rubrica relativa aos serviços especializados que são contratados no exterior, temos que pedir autorização ao Ministério das Finanças. Estamos a pedir autorização para usar o nosso orçamento, o que implica uma perda de autonomia administrativa."
O problema é que, no caso da impressão do jornal, foram pedidas, logo em Setembro, autorizações até Janeiro, e "as respostas demoram meses a chegar". Para o jornal de Novembro não chegaram a tempo. E a nota/carimbo na capa pretende "chamar a atenção para o facto de que [as medidas das Finanças] não são uma coisa abstracta, têm consequências reais, muito práticas, nas actividades", afirma Luís Miguel Oliveira.
Maria João Seixas, directora da Cinemateca, diz que decidiram fazer esta chamada de atenção porque "há um respeito devido aos espectadores". O despacho das Finanças, que classifica como "asfixiante", foi "uma surpresa" e "limita muito a actividade", sublinha.
Outro exemplo: o pagamento das taxas alfandegárias necessário para o levantamento de filmes vindos de outros países. A Cinemateca programou um ciclo de cinema brasileiro, e, no dia em que falámos com o programador, ainda havia filmes retidos na alfândega. O problema é a falta de lógica do processo. "O pagamento do serviço de transporte de outro país até Portugal não necessita de autorização prévia, mas as despesas alfandegárias já estão ao abrigo do despacho". Ou seja, o processo decorre normalmente até metade, e a partir daí fica suspenso, aguardando a autorização.
É complicado trabalhar assim, afirma Luís Miguel Oliveira. "Mas isto não é inédito. Em Março de 2011, por causa de uma medida semelhante, que também obrigava a submeter despesas para aprovação, tivemos que reduzir o número de sessões e alterar outras."
Programar nestas condições - a excessiva burocracia vem somar-se a um orçamento que tem vindo a encolher - torna-se um exercício de ginástica. "O pensamento económico é hoje fundamental na programação. Fizemos os ciclos dos anos 70 e 80, em que nem chegámos a pensar o que queríamos realmente mostrar, programámos a partir das cópias que tínhamos. E há ciclos que têm sido adiados sobretudo a pensar no contexto orçamental, como o do Raoul Ruiz, que não fizemos ainda porque implica ir buscar filmes, por exemplo, ao Chile".
É um facto que a Cinemateca "tem uma colecção própria de filmes, que é significativa e que pode alimentar boa parte da programação, mas é impossível basear nela a programação toda, de forma consistente". O risco é que os filmes se repitam com maior frequência, incluídos uma vez num ciclo, outra noutro. "Nenhuma Cinemateca programa baseada a 100% no seu arquivo. Antes tínhamos uma percentagem de 60% a 70% de filmes exteriores, hoje a situação inverteu-se completamente. Perto de 80% são cópias nossas, o que é extremamente limitativo."
Espectadores fiéis da Cinemateca, como Mário Fernandes, de 27 anos, muitos dos quais passados nesta que é a sua "verdadeira casa" e "uma das poucas instituições" em que acredita, não se apercebem dessa ginástica em torno da programação. Apercebeu-se dos problemas com o jornal, a falta de legendas em alguns filmes, e o cancelamento de sessões no ano passado, mas, garante, "a programação continua a ser excelente" e lembra uma integral de Nicholas Ray em 2011 e outra, já este ano, do brasileiro Glauber Rocha. A grande força da Cinemateca, diz, é ser "uma casa que sobrevive às modas", enquanto "um festival é uma moda".
"Podia ter mais receitas"
Mas se as salas da Barata Salgueiro são a parte da Cinemateca que o público conhece melhor, há todo um outro universo de trabalho menos visível. Há, também na Barata Salgueiro, a biblioteca aberta diariamente ao público, e um arquivo que guarda algumas das melhores histórias do cinema em Portugal - recolhe tudo o que tem a ver com cinema, recebe doações e depósitos, e tem como núcleo inicial a colecção do fundador, Félix Ribeiro, que inclui um livro alemão de 1672, onde foi fixado pela primeira vez o sistema da lanterna mágica.
E há, instalado numa quinta perto de Bucelas, o que permite programar estas salas - o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM). Também aqui o célebre despacho de 12 de Setembro tem consequências. Rui Machado, director do ANIM, explica que este laboratório é "único em Portugal e um dos poucos na Europa a fazer restauro fílmico analógico" e que, apesar de a sua principal função ser sempre a preservação do património fílmico português, "podia ser uma fonte de receitas adicional para a Cinemateca", fazendo mais trabalhos para outros países. O problema, mais uma vez, é que "está a ser limitado" não só pelo pequeno orçamento, mas sobretudo, mais recentemente, pelos entraves burocráticos.
O trabalho implica máquinas especializadas, e a manutenção destas tem que ser garantida por técnicos (especializados também, dado que se trata de sistemas que começam a sair de circulação), que não pertencem aos quadros da Cinemateca. "Se tivermos uma avaria numa máquina, não podemos estar dois meses à espera da autorização das Finanças."
Um caso destes pode afectar os cofres climatizados onde estão guardados os filmes (os mais antigos, em suporte de nitrato, estão num bunker, afastado, com medidas especiais de segurança, para evitar qualquer risco de incêndio). Se houver uma avaria, o controlo climático deixa de ser possível, e isso afecta a película.
Este é o problema provocado pela burocracia. Depois existem outros, esses decorrentes do baixo orçamento. Há dois anos, conta Rui Carvalho, foram feitas obras no valor de mais de dois milhões de euros (fundos do PIDDAC) que permitiram a construção de cinco novos cofres, onde deverá ser guardado, entre outras coisas, o arquivo histórico da RTP. Convida-nos a visitar os cofres antigos, e os novos - os primeiros estão cheios, os segundos já têm pilhas de filmes, mas em cima de paletes, porque não há dinheiro para as estantes novas. Há pilhas de filmes em latas com um ar antigo. São, explica, uma enorme colecção de filmes russos oferecida pela Associação Iuri Gagarin.
Percorremos a zona dos laboratórios, onde vários funcionários estão a trabalhar em encomendas vindas de fora. Há uma estagiária que veio da Holanda para o ANIM e trouxe uma cópia de um filme holandês dos anos 20 sobre uma viagem a Portugal. Neste momento, está a visionar imagens de Évora e a reparar o filme para que possam depois ser feitas cópias novas - uma para a Holanda, outra para a Cinemateca Portuguesa.
Passamos para a zona onde se fazem as cópias e onde está neste momento um funcionário. "Não temos para já capacidade para trabalhar o negativo cor", diz Rui Machado. A boa notícia é que vão receber as máquinas da Tóbis que permitirão começar a trabalhá-lo, o que significa "um potencial de mais receitas". O problema é que isso significa também mais trabalho e para isso são necessárias mais pessoas. Terminamos a visita no meio de lanternas mágicas, e antigas máquinas de fotografar, filmar e projectar - guardado em Bucelas está também o núcleo do que poderá um dia ser um Museu do Cinema.
É preciso entender que "a Cinemateca não recebe um valor do Orçamento do Estado", lembra Maria João Seixas. "Vivemos de receitas próprias e de uma percentagem sobre a publicidade na televisão que sofreu e vai continuar a sofrer quebras incríveis, que não estavam previstas no dia 1 de Janeiro". O valor de 4.350.000 euros, que aparece atribuído à Cinemateca, não corresponde à realidade e tem que ser revisto todos os meses em função da publicidade.
É por isso que a directora sublinha a importância do ANIM, que "pode ser uma fonte de muito mais receitas". Alerta: "Já estamos a deixar cair encomendas". Mas será esta aposta no analógico, cada vez mais substituído pelo digital, arriscada? Maria João Seixas está convencida de que, para já, é uma boa aposta. "Veremos se é um romantismo. Não tenho medo nenhum em relação aos próximos anos. Continuam a chegar-nos encomendas. Assim pudesse o ANIM ter os técnicos de que precisa."
Digital: não estão preparados
A Cinemateca Portuguesa não tem possibilidade de mostrar nas suas salas filmes em suporte digital porque não tem um projector que permita fazê-lo. E o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM), que pertence à Cinemateca, não está equipado para tratar filmes digitais. Isto significa que grande parte dos filmes feitos actualmente está vedada à instituição.
"A missão da Cinemateca é mostrar a história do cinema do passado e do cinema de hoje", diz a directora, Maria João Seixas. E isso não é possível. "É raro podermos fazer a antestreia de um filme português". Houve, há dias, a antestreia do novo filme de Joaquim Sapinho, Deste Lado da Ressurreição, porque a Gulbenkian pagou a cópia em 35 milímetros, mas a maioria dos filmes é já em digital.
O ANIM, em contraciclo relativamente à tendência geral, optou por se especializar no analógico, tendo hoje um dos poucos laboratórios na Europa preparados para o restauro e cópia analógica. Mas, diz o responsável, Rui Machado, "não estamos minimamente preparados para o digital, não temos sequer um leitor de cópias digitais. E não temos ferramentas para fazer a migração sucessiva de todo este património digital. Estamos a recebê-lo, mas não temos meios para o trabalhar."
Porque é que uma instituição governada pelo Estado tem de realizar "pagamento das taxas alfandegárias" ?
ResponderEliminarEstamos em 2012 e a maquinaria não necessita de areia....
Quanto ao ANIM....será um dos arquivos mais importantes para a história do séc. passado. É favor cuidar isso com muitos cuidados.