17/11/2012

Hospital das Camisas. O melhor pano merece cuidados intensivos.



Já lá estive ... várias vezes ... entrada pela magnifica porta gótica entre o Martim Moniz e a Praça da Figueira ...

Hospital das Camisas. O melhor pano merece cuidados intensivos
Por Maria Ramos Silva, publicado em 17 Nov 2012 - 03:10 in (jornal) i online
José Aguiar dispensa publicidade. Dez a 20 clientes por dia pedem arranjos de colarinhos e punhos. Só falta uma costureira para ajudar
Em vésperas do casamento, nenhuma camisa selava feliz matrimónio com o braço desarranjado do futuro padrinho. O cliente, que saíra empenado de um acidente, veio ao serviço de urgência certo. Do Hospital das Camisas, no Poço do Borratém, em Lisboa, saiu um modelo costurado sem desastres nem rezas. “Às vezes fazemos aqui milagres como a Senhora de Fátima. Fizemos uma camisa cheia de velcros.”

Décadas antes, aqui se sentaram, com a saúde bem alinhavada, Fernando Peça e Artur Agostinho, enquanto se faziam provas ou se aguardava a entrega da camisa nova. Já os arranjos, caíram nas graças do antigo presidente da República Costa Gomes. Que os modelos económicos deste século se acautelem e que a loucura dos descontos não saia mais cara que comprar uma peça sem promoções. “Muita gente compra nos saldos e depois chega a casa e têm as mangas muito compridas. Vêm encurtar.”

Nada bate uma camisa por medida e encomenda, aqui vendidas directamente ao cliente sob a marca Rovil. Palavra de José Aguiar, que conhece a casa há 53 anos. Saiu de Braga aos 20, incentivado por dois irmãos que já viviam na capital. Com a passagem por uma camisaria minhota no currículo, respondeu a um par de anúncios, um deles para os Armazéns do Chiado, onde preencheu um questionário e ficou a aguardar resposta para o dia seguinte. Entretanto tentou a sorte na Rovil, que não adiou a prestação de provas. “Pediram-me que tirasse o casaco e começasse logo a trabalhar. Perdi aqui a minha mocidade. Foi o primeiro emprego que consegui em Lisboa. Aqui fiquei, até hoje.”

Desconhecia tudo e todos. As ruas eram um mistério que só a consulta de um mapa resolveria. Começou como pracista, pois a casa já então aliava o ramo da camisaria com a confecção de fardamento para a indústria da panificação. O objectivo inicial era angariar clientes com uma pasta cheia de amostras, correr Lisboa fora e arredores, chegando mesmo ao Alentejo e ao Algarve. “Os clientes já tinham os seus fornecedores e eu não trazia quase nada. Vinha desmoralizado, mas o senhor Nunes dizia- -me que lá voltasse um mês depois. Haveriam de me tirar o chapéu.” Passaram- -se mais de 20 anos a visitar padarias e pastelarias, com os níveis do moral a darem razão ao antigo chefe.

Por aqui já circularam três gerações de gerentes desde que a casa abriu portas, sendo a data da fundação incerta. Há 15 anos à frente do negócio, José aponta para a década de 30 como provável ponto de partida. “Agora quero ver se não sou o último. Já pus muitos anúncios mas ninguém quer pegar nisto. É preciso perceber de costura. Já estou saturado. São muitos anos.”

Chegaram a ter oito costureiras neste espaço pequeno onde cabem uma máquina de casear, uma outra de pregar botões, uma de coser e cortar e duas de costura de ponto direito. Depois da reforma, três das antigas empregadas continuam a colaborar nos arranjos a partir de casa. José deixou de fazer a ronda porta a porta para ajudar a mulher, costureira desde os 11 anos, “de Alfama com muito gosto”, então funcionária da Adão Camiseiros. “Corri as melhores casas da Baixa”, conta Fátima, pretendente que servia a José “às mil maravilhas”. Conheceram--se quando trabalhava para fora e veio à Rovil procurar umas peças para consertar em casa. Assim se deram dois pontos com nó.

MOLDE FAMILIAR Já ocupou o primeiro e o terceiro pisos do número 50 da Rua do Arco do Marquês do Alegrete. Hoje está num lugar discreto no interior da porta 25, paredes meias com a Junta de Freguesia de São Cristóvão. Os desatentos mal darão pela casa, mas garante quem nela trabalha há meio século que dispensa néones de sinalização. Num bairro de amigos que se conhecem há anos, a maioria dos clientes sabe ao que vem. E quando o faz pode chegar a trazer 30 camisas.

“Com a crise fazem-se mais arranjos. Quando a camisa custa cinco euros, não vale a pena, mas no caso das caras compensa pôr um colarinho novo”, explica José enquanto abotoa um clássico à prova de modas, a camisa branca. Para quem se engana nos tamanhos no acto de aquisição noutras paragens, também se soluciona o problema. “A malta nova gosta das camisas justinhas. Compram-nas e quando chegam a casa estão largas. Vêm aqui para apertarmos.”

As entretelas, que conferem o formato a colarinhos e punhos, vêm do Norte. Os tecidos são fornecidos por Guimarães e Lisboa. Há colarinhos do 35 ao 54, para pescoços avantajados, como o do cliente com 240 quilos que prefere as camisas floridas e cuja medida sobe para uns excepcionais 58. Uma presilha como antigamente para outro habitué? Também se arranja. Tal como uma troca de favores entre amigos. “O presidente da junta também é freguês, mas nunca lhe levo nada. Ele tem aqui espaço para dois carros e eu de vez em quando estaciono ali.”

Não estamos entre ferreiros, mas se estivéssemos o espeto seria como o ditado sempre alertou. José não faz camisas para ele, nem precisa. Nas prateleiras acumulam-se peças que os clientes nunca chegaram a reclamar depois de feitas, muitas delas pagas, que o dono acaba por vestir. Sai um tamanho 42.

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