Com baile, banquete e festa até de madrugada, inaugurou há 55
anos o histórico Hotel Ritz de Lisboa, projecto do arquitecto Pardal Monteiro,
decidido por vontade de Salazar, para um país que, no pós-guerra, se queria
modernizar e abrir ao turismo.
Por
Alexandra Prado Coelho, in Público de 24 Novembro 2014
O mestre ceramista
Querubim Lapa entra calmamente pelo hall do Hotel Ritz, em Lisboa, virando a
cabeça para um lado e para o outro, observando o espaço à sua volta. Há mais de
uma década que não vinha aqui, mas agora, a propósito do artigo que o PÚBLICO estava
a preparar para o 55º aniversário do hotel – a inauguração foi a 24 de Novembro
de 1959 –, os responsáveis do Ritz convidaram-no a voltar para ver a obra que
há mais de meio século criou para uma coluna no final de uma belíssima
escadaria.
“Era uma coluna de suporte, e o que o
arquitecto pensou foi em disfarçá-la”, conta, satisfeito por este regresso
inesperado. “Está num sítio muito visível, quem entra no salão [na parte de
baixo do hotel] passa pela coluna”. Já não se recorda exactamente desses dias
em 1959 que terá passado aqui a trabalhar. Sabe que havia vários outros
artistas a circular pelo hotel – uma das características do Ritz é precisamente
o facto de, como salienta a arquitecta Ana Magalhães, que nos acompanha nesta
visita, ser uma espécie de “museu” tal a quantidade de obras de arte que
alberga.
“Este foi o hotel que
naquela época mais decoração teve”, confirma Querubim Lapa. “E acho que mesmo
depois nunca se fez um hotel com tanta colaboração de artistas tão diversos.
Aqui a decoração nasce com a própria construção do hotel.” Mas desse rodopio de
artistas não se recorda bem. Estava concentrado no trabalho na sua coluna,
explica enquanto atravessamos o Salão Almada, com as grandes tapeçarias de
Almada Negreiros. Saímos por um momento para o exterior, a ampla varanda de
onde se vê o Parque Eduardo VIII, em frente, e, mais à direita, a rotunda do
Marquês de Pombal.
“Este hotel é um
compromisso entre a modernidade e a tradição. É um edifício moderno, mas é um
moderno tardio”, explica Ana Magalhães. “Naquela altura não havia nenhum grande
hotel em Lisboa, havia um de luxo, o Hotel Aviz, mas era de pequenas dimensões.
Desde há muito tempo que havia este desejo de fazer um grande hotel de luxo, e
esta era a zona de crescimento da cidade.”
A ideia partiu de um
construtor civil, Casimiro Antunes Paulo, que, através do Secretariado Nacional
de Informação (SNI), começa a pedir apoio ao Governo. “Manda uma série de
cartas, mas numa primeira fase ninguém lhe liga nenhuma, até que a determinada
altura a proposta chega aos ouvidos de Salazar. E de repente passa a ser um
tema interessante.”
O projecto do Hotel Ritz
foi entregue ao arquitecto Porfírio Pardal Monteiro, autor, entre outros, da
Biblioteca Nacional e da Cidade Universitária. “Era o arquitecto óbvio para uma
obra como esta”, diz a arquitecta Ana Magalhães. Mas morreria em 1957, antes de
a ver terminada.
Projecto Casa do Império
Já na altura da Exposição do Mundo Português, em 1940, em plena II Guerra Mundial, o Governo pensara na necessidade de ter um hotel para receber os eventuais turistas. “A ideia era chamar-lhe Casa do Império, mas acabou por nunca se concretizar”, recorda a arquitecta, que fez uma tese sobre o Hotel Ritz.
Já na altura da Exposição do Mundo Português, em 1940, em plena II Guerra Mundial, o Governo pensara na necessidade de ter um hotel para receber os eventuais turistas. “A ideia era chamar-lhe Casa do Império, mas acabou por nunca se concretizar”, recorda a arquitecta, que fez uma tese sobre o Hotel Ritz.
Mas terminada a guerra, e
com a Europa em recuperação, “o turismo era uma actividade económica em
expansão”. Salazar adere, portanto, à ideia. Forma-se um consórcio de
capitalistas (em que se destacam as famílias Espírito Santo e Queiroz Pereira),
e o projecto é entregue ao arquitecto Porfírio Pardal Monteiro, autor, entre
outros, da Biblioteca Nacional, ou da Cidade Universitária. “Era o arquitecto
óbvio para uma obra como esta”. Mas morrerá em 1957, antes de a ver terminada.
Conta, no entanto, com uma equipa de arquitectos mais jovens, entre os quais
Jorge Ferreira Chaves e Rodrigo Santana, que desempenharão um papel importante,
como o próprio Pardal Monteiro reconhece.
Estão reunidas as
condições para avançar para o projecto ao qual inicialmente se pensou chamar
Palácio da Rotunda. Em primeiro lugar, a localização: o terreno escolhido era
ideal, “era uma escolha que fazia todo o sentido, o Marquês de Pombal ia ser o
novo centro empresarial da cidade, e além disso o terreno ficava próximo da
recém-construída auto-estrada em direcção a Cascais, e não muito longe do
aeroporto de Lisboa, dois pontos importantes para o turismo.”
Querubim Lapa também se
lembra da impressão que causou. “As pessoas aderiram logo, o que é curioso. É
um volume enorme, dá muito nas vistas, quando passávamos no Marquês víamos logo
o Ritz, o grande hotel.”
Depois, o Governo criou
condições excepcionais. Ana Magalhães recorda: “Ficou assegurado que durante
vinte anos não se pagavam impostos sobre o terreno, e os construtores estavam
também isentos dos direitos alfandegários sobre tudo o que importavam, desde os
mármores que vieram da Escandinávia, aos pianos, ao mobiliário.”
E, por fim, havia os
artistas. Para além do extraordinário trabalho de decoração feito pela Fundação
Ricardo Espírito Santo, havia a arte encomendada especialmente para o local. O
que, aliás, não foi completamente pacífico. “O movimento moderno falava da obra
global, da integração das artes”, conta a arquitecta. “E o facto de aqui a
intervenção artística ser mais decorativa, ser mais uma justaposição do que uma
integração, levou a que surgissem críticas da geração mais jovem. O [pintor]
Nikias Skapinakis chamou-lhe mesmo uma ‘manta de retalhos’”.
Para a inauguração do Ritz
foi organizado um baile de gala para dois mil convidados. “O país vibrou, as
grandes lojas de alta costura encheram-se, jóias há muito esquecidas foram
retiradas dos seus estojos. Mais de uma centena de estrangeiros chegaram dos
mais variados países para essa noite de festa. Uma ceia memorável, concebida
por Pierre Gachet, foi servida com os pratos mais sofisticados. As baixelas
vindas de Paris brilharam em uníssono com os cristais desenhados especialmente
para o hotel num décor memorável”, escreve Helder Carita no livro Ritz
– quatro décadas de Lisboa, editado para assinalar os 40 anos.
O contrato de exploração
foi assinado com George Marquet, presidente da sociedade Les Grands Hotels
Européens, que, segundo Carita, se empenha em ajudar a conceber o “hotel
perfeito”. Havia boutiques, uma barbearia, restaurantes e até uma boite com duas orquestras, a Carrossel, que
encerrou em 1974. “Opulento de grandeza, o Hotel Ritz”, foi o título da notícia
do jornalO Século a propósito da inauguração. E, três
anos depois, o Ritz era capa da revista Life num artigo sobre os novos hotéis de
luxo no mundo.
Uma coluna-totem
Continuamos a percorrer
os espaços, passamos em frente à sala de refeições com duas paredes-janelas
abrindo-se ao exterior, atravessamos um longo corredor do qual se vê, à nossa
direita e em baixo, o Salão Nobre, encontramos uma parede com um cartão de
Pedro Leitão e lacagem de António Louro de Almeida, descemos a escadaria cheia
de efeito cénico, e chegamos finalmente à coluna do mestre ceramista. Querubim
observa-a atentamente, acha-a bem preservada, e diz que, apesar de não a ver há
muito tempo, se lembrava perfeitamente dela.
“Este rosto, talvez a
luz”, diz, referindo-se a umas das figuras da coluna, “está voltado para quem
desce as escadas, o outro rosto está voltado para a grande sala. É uma coluna
que pode ser vista por diversos ângulos. É uma composição fragmentada. E
porquê? Porque é vista de passagem e por isso nunca temos a noção da totalidade
dela. Tem um ar de totem. Não temos a sensação de que está ali para esconder
uma coluna”. Confessa que essa foi a sua principal preocupação. Mas, passado
meio século, continua a achar que foi um trabalho conseguido – o seu e o dos
outros artistas. “Havia a necessidade de encontrar uma decoração para que estes
espaços não vivessem silenciosos. Porque elas falam… a obra de arte fala
connosco, faz-nos parar. Uma das virtudes da obra de arte é essa, podemos
parar, olhar e pensar.”
E no caso do Ritz faz
todo o sentido falar nesta ideia de um percurso pontuado por obras de arte, que
nos vão acompanhando, distraindo, surpreendendo. Voltamos a ouvir Ana
Magalhães: “É muito evidente aqui a ideia de percurso, que podemos associar ao
[arquitecto francês] Le Corbusier e à sua promenade architecturale que no fundo é o que fazemos aqui
quando percorremos estes espaços. É um percurso que se vai descobrindo pela
arquitectura.”
Um dos espaços em que
melhor percebemos isso, e de uma forma surpreendentemente discreta, é nas
escadas de serviço junto à zona dos quartos, que quase ninguém utiliza porque
geralmente os hóspedes usam o elevador. É até aí que Ana Magalhães nos leva
para mostrar como as janelas rasgadas na parede exterior nos vão revelando, de
diferentes ângulos e conforme o ponto de onde olhamos, a cidade lá fora.
Depois, há o facto de a entrada
não ser evidente. “O terreno tem uma certa inclinação, e a entrada principal do
hotel é feita pela Rodrigo da Fonseca, uma rua secundária que foi escolhida por
ser mais resguardada e ter menos trânsito. Pela Rua Castilho faz-se apenas a
entrada para o salão de festas, que está dois pisos abaixo.” O que temos, no
projecto do Ritz, é um paralelepípedo levantado sobre pilotis, o que dá a
impressão de leveza a um edifício muito grande.
“O grande problema deste
terreno era a exposição aos ventos”, conta Ana Magalhães. “Pardal Monteiro cria
estas varandas, em vez de abrir as janelas na fachada, criando assim um espaço
de recuo que protege os quartos do vento. Mas isto era uma justificação, porque
o que resulta é a imagem do edifício com estas caixas e este claro-escuro que
se vê na fachada do Ritz.” É destas varandas dos quartos, visto de cima, que o
jardim elevado, voltado para a Rua Castilho, frente ao Parque Eduardo VII,
ganha a sua maior expressão. “Foi desenhado precisamente para ser visto de
cima”.
Subimos ainda até à
cobertura, à zona onde posteriormente foi instalado o spa,
e, saindo para o exterior, descobrimos, olhando para cima, e agora muito perto
de nós, as grandes letras com a palavra RITZ.
Uma última coisa, que não
é visível para a maioria das pessoas, mas que é fundamental para se perceber o
Ritz, é “a quantidade de espaços que não se vêem, que estão nos bastidores e
que garantem a qualidade do serviço”, diz Ana Magalhães. Há, por exemplo, 16
elevadores, quatro para os hóspedes, e 12 de serviço, há sete entradas, das
quais apenas duas dos hóspedes, há toda uma estrutura escondida que permite o
funcionamento de tudo.
O edifício do Ritz é um
museu, mas é também uma eficaz “máquina de habitar”. Moderna há mais de meio
século.
Sem comentários:
Enviar um comentário