DEMOLIDO: imóvel pombalino na Rua da Lapa
“A defesa do património urbanístico e arquitectónico e uma orientação estruturante da revisão do PDM transversal a toda a normativa urbanística proposta”; “A demolição de edifícios fica restringida a situações excepcionais caracterizadas de forma objectiva e sujeitas a controlo técnico ou a uma justificação que demonstre que a reabilitação é inviável”
Estas duas frases não são obra de uma mente retrógrada ou de uma diatribe veemente de um actual Velho do Restelo. Foram retiradas do preâmbulo do plano director municipal. Afirma-se no papel o que a prática tantas vezes desmente. Assistimos, actualmente, em Lisboa a uma desapiedada destruição do património, enroupada em argumentos que tentam vender gato por lebre, tentando fazer passar a ideia de uma vaga de reabilitações sem precedente. O que acontece, na verdade, é construção nova, numa estafada e repetida imagem de fachadismo.
A lista é interminável, não sendo este o espaço oportuno para a fazer exaustiva. De qualquer forma, não será de mais afirmar que no Bairro Barata Salgueiro já nada resta dos incontáveis prédios de aparato característicos da Lisboa “entre séculos”, designação que abrange os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Por todo o lado nesse malogrado plano se passa à demolição integral de interiores, ao aumento de cérceas, à trivialização do que foi pensado para ser um bairro de excepção. O mesmo é válido para todo o eixo das Avenidas Novas. Raros são os exemplos de verdadeira reabilitação em que, ao necessário novo uso do preexistente, se associe a preocupação pela salvaguarda do maior número possível de características singulares que fazem dos imóveis desse período testemunhas importantes da evolução da cidade, da sociedade, de diferentes soluções e sensibilidades artísticas.
Tem-se optado pela descaracterização constante desse património, não se propondo a preservação de nenhum pormenor de época, à excepção de fachadas e de alguns azulejos que as cubram. O resultado está à vista e é de lamentar. Prédios de arquitectos de reconhecido mérito — Adães Bermudes, Ventura Terra, Norte Júnior, alguns prémios Valmor — são hoje a sombra de si mesmos. Quarteirões inteiros banalizados num rolo compressor de licenças dadas a eito, projectos muitas vezes de qualidade sofrível e um facilitismo que condenou a cidade, nessas zonas, a um vasto espaço de indigência patrimonial que assombra pela espantosa semelhança com os idos anos 60 e 70 do século passado, período em que a especulação e os ganhos imobiliários foram triste moeda corrente.
Mas não se julgue que é só o património edificado Arte Nova e Art-Déco que está na mira de promotores e que é vítima da eterna apatia com que as coisas do património são vistas em Lisboa. Prédios pombalinos e palácios históricos, conventos devolutos e antigas instalações industriais, importantes marcos da arquitectura do ferro, têm vindo a ser radical e tragicamente transformados. Para que não subsistam dúvidas, basta ir à Rua das Portas de Santo Antão ver o que sobra do antigo Palácio da Anunciada: destruiu-se o jardim, rapararam-se as mansardas pombalinas, todas as dependências foram demolidas, restando apenas o átrio, a escadaria e os salões nobres. Exemplos destes não faltam numa cidade que se quer, e bem, património mundial.
Há, contudo, dois casos que não podem deixar de mobilizar a opinião pública, pela sua dimensão simbólica, pelo que têm de insólito num país de leis e de regras para todos os gostos, pela desfaçatez com que se prolonga o injustificável e se autoriza o que em tempos não fora visto com bons olhos.
O primeiro, a demolição integral da moradia pombalina da Rua da Lapa, exemplar único na capital, excelente fecho da Rua de São João da Mata. A DGPC (Direcção-Geral do Património Cultural, DGPC) em 2012 já se tinha pronunciado a favor da manutenção dessa notável casa. Sublinhe-se que a moradia está numa área de confluência de várias zonas de protecção — Museu de Arte Antiga, Chafariz da Esperança, Convento das Trinas do Mocambo, Basílica da Estrela. Era parte integrante e emblemática do Bairro da Lapa. Este, caso avance a candidatura de Lisboa a património mundial, será considerado zona-tampão de um outro bairro integrante do bem a classificar, o Bairro da Madragoa.
A própria Lapa é definida pela CML como sendo um bairro de traçado histórico, ou seja, não são só as ruas que o desenham, mas também o edificado que nelas existe que lhe confere essa qualidade de lugar ímpar, com uma invulgar concentração de património, palácios, recolhimentos, conventos, casas populares, dando a este bairro uma marca inconfundível no conjunto dos bairros de Lisboa. Outra leitura tiveram os serviços que, fazendo tábua rasa das boas práticas em matéria de salvaguarda e valorização patrimonial por si próprios defendidas, optaram por dar o dito por não dito e, aquilo que há uns anos era só para ser alterado, passou a ser agora campo de demolição onde nascerá um projecto de autor em tudo alheio à tipologia e enquadramento existentes.
Às perguntas mais do que justificadas, a DGPC reage com respostas de amanuense encartado. À sugestão de um mapeamento patrimonial exaustivo dos bairros da Lapa e Estrela que pudesse servir de recomendação à acção da CML, a DGPC responde com artimanhas do código de direito administrativo para dizer que não é da sua área de competências, ficando o povo sem saber o que a augusta entidade pretende dizer. É do conhecimento geral que a DGPC voluntariamente levanta processos de classificação de imóveis, que estabelece protocolos de colaboração com várias entidades e diferentes jurisdições, criando e mobilizando, dessa forma, vontades e decisões. Por que motivo não acha conveniente fazê-lo nesta área da cidade, é matéria de difícil compreensão. Razão têm os moradores da Lapa por temerem que seja este o princípio da irreversível descaracterização de um dos bairros mais carismáticos de Lisboa.
O segundo caso, paradigmático do torpor em que se arrastam as chefias da DGCP e CML, é o do Palácio Almada-Carvalhais, dos antigos provedores da Casa da Índia. É esta uma notável residência aristocrática lisboeta, anterior ao terramoto de 1755, com torre senhorial de cantaria, galeria abobadada e azulejada e um magnífico pátio renascentista, único em Lisboa. Pelo seu carácter excepcional foi declarado Monumento Nacional em 1919 e nunca, nas várias revisões da lista de bens classificados, foi destronado. Estando abrangido pelo mais elevado nível de classificação, poderíamos partir do razoável princípio de que estaria a salvo da ruína. Nada mais longe da verdade.
Há décadas que a especulação imobiliária se abateu sobre esta casa nobre da Rua da Boavista, encostada a Santos. A sua posse tem passado de fundo imobiliário para fundo imobiliário, detidos, na totalidade ou em parte, por grandes instituições bancárias que, ávidas do seu retorno, não se sentem obrigadas a cumprir as disposições mais elementares da Lei de Bases do Património, a qual, entre outros pormenores descartáveis, estipula que ao detentor do bem cabe a manutenção dos valores que levaram à sua classificação. Como se sabe e vê, o estado deste Monumento Nacional é de pré-ruína absoluta, as janelas estão escancaradas, partidas, portas arrombadas, o pátio vandalizado, infiltrações por todo o lado, tectos apodrecidos. Basta um temporal mais forte, um começo de incêndio e, do palácio que resistiu ao terramoto de 1755, nada restará.
Perde-se a conta de toda a correspondência trocada com CML e DGPC sobre a urgente acção para salvar in extremis este marco de Lisboa, para que a tutela obrigue o detentor do bem a agir, para que os fundos que o comercializam não se sintam acima da lei. Quer do lado dos paços do concelho, quer da Ajuda, nada se move, para além da redacção de uns lembretes, tratando com punhos de renda o que deveria ser desmascarado sem cerimónias.
Estes dois exemplos são a tradução na prática da miopia cultural que percorre os corredores do poder, mais inclinados em retirar dividendos de acções de curto prazo em detrimento de medidas de ordenamento que valorizem a cidade e não a desfigurem irreparavelmente. Vive-se em Lisboa, em grande medida, não a sacralização do património, como foi dito por ocasião dos 20 anos do Porto — Património da Humanidade, mas antes a sacralização do vale-tudo.
Uma outra e maior ambição ou interesse face à extraordinária identidade de uma cidade como Lisboa deveria ser a missão urgente de quem governa e também de cidadãos mais atentos, única forma de resgatar a cidade da indiferença e da indiferenciação em que se vai perdendo. Na proporção do ganho que constitui para alguns, esse, sim, crescente, pressionante e rápido.
Artigo de opinião de Miguel de Sepúlveda Velloso in Público 21 de Dezembro de 2016
DEMOLIDO: palácio classificado IIP na Rua de O Século
Relativamente ao palacete pombalino demolido, choca-nos duplamente: pois a demolição é irregular e os fundamentos para a ocorrência da mesma são de uma desonestidade itelectual arrepiante e o licenciamento da obra em curso não é menos chocante. Vê-se a olho nu, que não cumpre os limiares regulamentares (altura de fachada e corpos balançados), não cumpre também os princípios orientadores e objetivos estratégicos, para além de não ter qualquer enquadramento harmonioso com a envolvente edificada. Enfim, uma profunda falta de respeito pelos lisboentas, um claro serviço ao sabor da especulação imobiliária, um duplo crime urbanístico. Valerá a pena submeter este procedimento administrativo a uma análise bem aprofundada, pois certamente que a consulta ao processo, poderá esclarecer com toda a clareza.
ResponderEliminarÚnico facto positivo : haver um jornalista com sensibilidade e um jornal com coragem para denunciar o que se está a passar impunemente em Lisboa .. Quando são mesmo as eleições ??
ResponderEliminarEstranho é o facto deste imóvel não constar da Carta Municipal de Património. Se assim fosse, teria sido mais fácil a sua preservação.
ResponderEliminarAté mesmo, se teria justificado, numa eventual não aceitação de ampliação de forma a ser atingida a média da altura das fachadas, a aplicação do previsto no n.º 2 do artigo 28.º do PDM:«»2 — Nas situações em que as operações de restauro e reabilitação dos bens imóveis da Carta Municipal do Património, face ao previsto no número anterior, não permitam atingir a média da altura das fachadas, é atribuído ao respetivo proprietário um crédito, nos termos do artigo 84.º do presente Regulamento, correspondente à diferença entre a superfície de pavimento efetivamente admitida e a que resultaria da aplicação daquele parâmetro».
Mas não há memória da aplicação deste procedimento previsto no PDM.
Certo é que o imóvel, não constava da Carta Municipal do Patrimonio, mas esse facto não lhe retirAva o valor histórico, que aliás transbordava.
No caso concreto o que se verifica e causa enorme perplexidade, é o facto do edifício que vai ocupar o lugar desta casa pombalina brutalmente destruida, não só atingir a média da altura das fachadas, como a ultrapassar. A volumetria é claramente execessiva, os corpos balançados também. Ambos os parâmetros ultrapassam os limites maximos estabelecidos nos instrumentos de gestão territorial aplicáveis. São factos que não escapam à objetividade. A desintegração e a indiferença face ao contexto urbanístico, também é bem visível, mas menos objetivas. Não menos objetivos, são os inegáveis valores estéticos e históricos, bem visíveis a qualquer observador.
ResponderEliminarEsta operação urbanística, lamentavelmente em curso, é muito, mas muito questionável. Era bem merecida uma providência cautelar e uma averiguação dos factos, por entidade credenciada. Penso que o que está em causa, justifica esse procedimento.
São exemplos de atos hediondos contra o património (inventariado ou não), que têm destruido na cidade de Lisboa, apenas e só, em benéficio da especulação imobiliária, repetidas vezes, com a mesma face.
ResponderEliminarNão haja dúvidas, que o património de Lisboa está em boas mãos.
ResponderEliminarO que virá asseguir? Julgo que perante estes factos valem todas as práticas.
Numa só palavra: desonestidade.
ResponderEliminarÉ o apetite voraz da especulação imobiliária. Mas a que preço?
ResponderEliminarÀ custa de mal fazer, julga-se que parece bem haver. Mas há limites.
ResponderEliminarA destruição da moradia pombalina na lapa, marco emblemático de um bairro histórico, é uma autêntica barbaridade! Tanto maior porque o imóvel estava em bom estado. O imóvel que vai ser construído em substituição, não requalifica, ofende. Ofende não só esteticamente, como também, por extravasar os limites regulamentares. Neste local, não só se impunham os limites regulamentares, como também, a preservação do património, exemplar único na cidade, impunha que esses limites não fossem neste caso esgotados. É o que estabelece o PDM, mas a prática é outra!
ResponderEliminarO maior cego é o que não quer ver. A DGPC e a CML, estão estranhamente de mãos dadas, numa obra que é tudo menos consensual...
ResponderEliminarNestes casos, as regras existem apenas para serem contornadas.
ResponderEliminarNão me parece que haja miopia cultural. É uma cegueira induzida. É pura desonestidade intelectual, por conveniência. Há certamente consciência do que se está a fazer e dos resultados que serão alcançados, mas isso não é suficiente, para impor os limites, nem mesmo o PDM.
ResponderEliminar"Terrorismo arquitectónico". É o único termo que consigo encontrar para classificar o edifício que vai ser construído na Rua da Lapa.
ResponderEliminarCuriosamente vai ter a assinatura do mesmo arquitecto que fez esta gracinha:
http://cidadanialx.blogspot.pt/2016/06/alguem-pode-explicar-esta-aberracao-em.html
Estranho.. O mandato do vereador Manuel Salgado vais ser recordado pelos piores motivos!
Incompetência, ganância, complacência e tachos para os amigos!
ResponderEliminarCom estes exemplos não lhes vejo nem lhes dou legitimidade para exigir o quer que seja de nós cidadãos!
O anónimo das 12:57 tem razão....os exemplos que estes "responsáveis" vão transmitindo ao longo de DÉCADAS, servem de "carte blanche" para os demais. Já vamos com 17 anos no séc XXI e pouco muda. A história irá arrasar esta gentinha....mas isso a nós não nos vai servir de muito.
ResponderEliminarÉ óbvio que quem toma levianamente estas decisões, não é digno do lugar que ocupa. É mesmo uma vergonha para qualquer quadrante político.
ResponderEliminarÉ o apetite devorador da especulação imobiliária.
ResponderEliminarÀ custa destas práticas, tantas e tantas vezes repetidas, há quem pense que até pode estar correto. Mas não, a legislação aplicável diz-nos exactamente o contrário. Como podem então estas práticas serem repetidas impunemente? Com danos irreversíveis para o interesse público? Espero que a justiça apesar de tardia não deixe de actuar.Lisboa está claramente, passo a passo, a ser destruída.
ResponderEliminarQuem decide não está ao serviço do interesse público, está a defender os interesses da especulação imobiliária e tirando proveito disso, certamente.