Através de um texto de opinião da autoria do arquitecto Nuno Almeida, o debate sobre a intervenção de arquitectos “criadores” em áreas patrimoniais consolidadas, constituindo estas, no seu conjunto intacto, um valor histórico insubstituível, surge nas páginas do PÚBLICO.
As aspas em “criadores” aponta para a não referência a outro tipo de arquitectos quase não existentes em Portugal mas necessários e indispensáveis: os arquitectos de restauro.
Com efeito, toda a retórica do autor é construída à volta de uma argumentação que, de forma enganadora, só reconhece duas alternativas para a intervenção arquitectónica na cidade: arquitectura contemporânea, leia-se modernista, em ruptura e afirmação consciente e demarcada com a envolvente histórica, que o autor considera como a única capaz de representar autenticidade, ou o perverso “fachadismo”, ou artificial operação cutânea que constitui uma mentira perigosa para o futuro da Arquitectura e da autenticidade da cidade.
Ora o “fachadismo” é sem dúvida uma perversão, mas sim, do conceito do restauro integral que considera um edifício histórico como uma unidade indivisível, entre fachada e interior.
Para dar um exemplo muito rapidamente: qual é o valor de um edifício pombalino, que faz parte de uma solução sistemática e global para uma reconstrução funcional de uma imensa área vítima de um cataclismo sísmico, sem a “gaiola”, que constitui precisamente a solução estrutural anti-sísmica pensada por engenheiros da mesma reconstrução?
Toda esta confusão “arquitolas” é fruto do facto de o ensino da Arquitectura em Portugal ter sido dominado ideologicamente por toda uma geração que, de forma manipuladora, tem sempre negado o reconhecimento da importância do ensino e da prática do restauro. Utilizando de forma manipuladora o argumento da Carta de Veneza crítico do restauro integral, os arquitectos de restauro são vistos e acusados no ensino como apologistas do sacrílego “pastiche”. Compreende-se o nervosismo de Nuno Almeida e de toda uma classe, agora sujeita a “honorários limitados” e a um crescente e justificado clamor crítico da opinião pública, capaz de inibir e amedrontar os técnicos responsáveis pelas aprovações.
Em 2008, Manuel Salgado, neutralizando a intenção da candidatar a Baixa a Património Mundial, veio anunciar que “a Baixa nunca será um bairro residencial” e propor exclusivamente um investimento na hotelaria, residências universitárias e alojamentos de curta e média permanência, entregando a dinâmica do investimento unicamente às exigências dos “mercados” e, assim, abdicando da sua responsabilidade planeadora e reguladora, abrindo a caixa de Pandora. Para isso, foi criada uma comissão “facilitadora” na DGPC em 2007 a fim de garantir uma autêntica “via verde”, capaz de “neutralizar” as exigências do PDM.
José António Cerejo publicou um artigo (PÚBLICO, 29.03.2016) onde referia como responsáveis das decisões desta comissão os arquitectos Flávio Lopes e Teresa Gamboa e descrevia as tensões mal disfarçadas entre esta comissão e os directores-gerais Nuno Vassalo e Silva e Paula Silva, que reivindicavam o seu direito à apreciação prévia a fim de “assegurar uma defesa eficiente e eficaz do património”. Ficou famosa a frase de Manuel Salgado: "E se formos muito exigentes com a pedrinha e com o azulejo não conseguimos reabilitar nada."
“Reabilitar” nesta perspectiva significa demolir integralmente os interiores históricos e aplicar o fachadismo. Os efeitos devastadores e irreversíveis nas Avenidas, na Baixa e em toda a cidade são visíveis e ilustrativos deste fenómeno.
Agora que um clamor profundo de resistência começa a dominar a opinião pública e a Internet, contestando, através de petições e acções, toda esta situação, e juntando a estas questões as graves consequências de uma gentrificação/turistificação galopante, a política profissional tem demonstrado uma incapacidade total para representar estes urgentes desafios, deixando exclusivamente à cidadania activa o desempenho deste papel.
Nas próximas eleições autárquicas, Fernando Medina não terá adversários credíveis e de conteúdo e, tendo a vitória assegurada, irá continuar na ilusão de que a sua recusa sistemática em reconhecer e regulamentar estes problemas não irá ter consequências.
Entretanto, no horizonte, acumulam-se as energias e os sentimentos de revolta que estão a desenhar de forma crescente uma tempestade futura. Curiosamente, inadvertidamente e involuntariamente, o texto de Nuno Almeida é mais um sintoma que anuncia a tempestade perfeita. Historiador de Arquitectura.
Historiador de Arquitectura
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ResponderEliminarMas Fernando Medina, se nos empenharmos, poderá não ter uma maioria ABOLUTA PARA FAZER AS ASNEIRAS que tem feito.
Que texto estupendo.
ResponderEliminarFazia falta uma sistematização do assunto.
Parabéns