15/05/2017

Cultura: tudo será feito… quando calhar ser feito


In Público (15.5.2017), por Luís Raposo:


«Confiemos, pois. Tudo há-de ser feito a seu tempo, como diz o simpático ministro da Cultura. Oportunamente. Ou quando calhar. Talvez nunca.

Aproximamo-nos de meados da legislatura. Começa a ser altura de fazer balanços. No mais de ano e meio já passado assistiu-se na Cultura, mormente na área do Património Cultural e Museus, a “uma tutela politicamente irrelevante, esvaziada de competências e incapaz de assegurar uma política interna coerente ou uma articulação interdepartamental eficaz com as restantes áreas da governação”, situação agravada pela “suborçamentação dramática” e pela manutenção de “fusões institucionais que conduziram à desestruturação de organismos”, bem assim com “uma redução cega de quadros e uma ausência generalizada de estratégia a médio e longo prazo.”

Neste período, a “educação para uma cultura mais participada” promoveu vagas melhorias no acesso a arquivos históricos da RTP. Nada mau. Não se reforçaram “os conteúdos de artes e humanidades nos programas curriculares”, não se definiram “novos modelos de gestão específicos do ensino artístico vocacional, em parceria com as áreas da educação e da cultura”, não se criou o “Cartão + Cultura” (muito menos se reformatou conceitualmente, resgatando-o do desinteresse que tinha), não se valorizaram “Teatros Nacionais como polos de criação nacional”, não se incentivou a “acessibilidade dos públicos com necessidades especiais às atividades culturais”. Nem sequer se começou a praticar a gratuitidade nos museus aos fins-de-semana até aos 30 anos (muito menos o que o Parlamento decidiu sobre a matéria, em sede de Orçamento do Estado). Mas, caramba, Roma e Pavia não se fizeram em meia legislatura.

No plano da “preservação, valorização e divulgação do património material e imaterial” conseguiram-se alguns êxitos nas “coleções de arte contemporânea nos museus portugueses”: o Miró em Serralves; o Berardo em Belém (obrigando-o a ser pago); talvez a Vieira da Silva nas Amoreiras – e não sabemos ainda bem o quê no Chiado. E pronto. Não se permitiu “que certos ‘equipamentos culturais bandeira’, como museus e monumentos de especial relevância” pudessem “beneficiar de uma maior autonomia de gestão” (antes pelo contrário, acentuou-se a claustrofobia em todos), não se criou “o Arquivo Sonoro Nacional”, não se intensificou “a digitalização sistemática dos fundos documentais dos arquivos portugueses” e não se promoveram “estratégias e metodologias coordenadas de tratamento e divulgação do património arquivístico comum aos países da CPLP”, não se revitalizaram “as redes patrimoniais” (a Rede Portuguesa de Museus, essa então, foi quase extinta e deixou de se falar nesse luxo asiático de apoio aos museus – o Promuseus), não se consolidou “a oferta pública de museus”, nem se flexibilizaram “os seus modelos de gestão”, não se promoveu, enfim, “o inventário do património cultural imaterial em Portugal e do património imaterial Português existente no mundo”. Mas, caramba, Roma e Pavia não se fizeram em meia legislatura.

Houve casos menos felizes, sim, admitamos. Umas ameaças de bofetadas aqui, umas destruições de gravuras rupestres ali. Não fora existirem, no caso das gravuras, avisos atempados de que, não sabendo elas nadar, também não sabem defender-se de vândalos, quando se retiram guardas, dir-se-ia que se tratou de imponderáveis. Quase casos de polícia apenas. E tudo o resto pode ser reduzido à condição de pecadilhos de ranchos de “boys” e gabinetes em intensa rotação, obrigados e recomeçar sempre do zero, retroalimentados em ciclo fechado dos mesmos de sempre, os quais se comprazem em defender-se de constipações, fechando como podem janelas e portas nos longos corredores da Ajuda.

Não fiquemos totalmente desiludidos, porém. É certo que “as intervenções de recuperação e conservação do património histórico” não passaram a ser feitas “de acordo com hierarquias e prioridades com base numa efetiva monitorização do estado de conservação do mesmo”. Mas a Cultura soube dançar bem a música que lhe foi posta no gira-discos pela Economia, lançou-se um “programa de investimento para a recuperação do património histórico… assente na mobilização de fundos comunitários” (uma boa malha para fazer REVIVEr o mercado dos operadores turísticos e empreiteiros) e deu-se a algumas instituições culturais a possibilidade de consignação de 0,5% do seu IRS – medidas difíceis e hercúleas, como se percebe.

Tenhamos fé: “o governo assume como prioridade reestruturar o setor, dotando-o de modelos orgânicos flexíveis e eficazes adequados à especificidade da sua missão”. Talvez até chegue a ter visão e tempo de perceber como se torna urgente voltar a possuir dados fiáveis e reverta a extinção do Observatório de Actividades Culturais (um dos mais nefastos erros estratégicos da anterior governação). Na mesma linha de reversão de autismos acumulados, poderá até meter ombros à revolução copérnica de realmente tornar credíveis, e úteis, as diferentes secções do Conselho Nacional de Cultura, começando pelas de museus e património, as mais governamentalizadas (algo que todos os partidos políticos, à excepção do PS, colocavam nos seus programas eleitorais). Confiemos, pois. Tudo há-de ser feito a seu tempo, como diz o simpático ministro da Cultura. Oportunamente. Ou quando calhar. Talvez nunca.

Nota: para os mais distraídos, informa-se que todas as citações neste texto foram tiradas do programa do actual governo, sendo que as do primeiro parágrafo dizem respeito ao diagnóstico aí feito da situação herdada do governo anterior. Um bom diagnóstico pela sua actualidade.»

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