A arqueologia náutica e subaquática portuguesa está a naufragar?
Depois de anos de desinvestimento e de diluição na máquina da Direcção-Geral do Património, a situação é "de emergência". Em causa estão a preservação de um património identitário e o cumprimento de obrigações internacionais. E, a curtíssimo prazo, há 14 mil bens móveis que podem ficar sem casa.
A metáfora é demasiado fácil e, talvez por isso, se possa dizer inevitável – a arqueologia náutica e subaquática portuguesa parece estar a afundar. Chegou a ter um centro de investigação só para ela dentro de um instituto que tratava em exclusivo da arqueologia e cujas competências hoje, depois de várias siglas e reestruturações, estão a cargo da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), o maior dos organismos do Ministério da Cultura. O que é que se passou de 1997, ano de criação do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), para cá? O que é feito da equipa deste organismo e dos projectos em que estava envolvida? Para onde foi o espólio entretanto recolhido nas suas escavações?
Nem tudo se perdeu, é certo, mas de uma estrutura que chegou a ter mais de 20 pessoas, ainda que na sua maioria avençados e bolseiros de investigação, um laboratório de conservação e restauro, vários projectos científicos em curso e uma frota a funcionar já pouco resta. Até o nome desapareceu da orgânica da DGPC (continuamos a usá-lo para efeitos práticos e porque os arqueólogos teimam em fazê-lo).
"Boa parte da nossa história ainda está debaixo de água"
Hoje são três os funcionários afectos a esta área (um arqueólogo e dois técnicos auxiliares). Os sete barcos que o CNANS ainda tem não podem ser usados (uns por falta de licenças, outros por falta de vistorias, equipamento ou manutenção). E o único arqueólogo que ali trabalha não tem como mergulhar (mandam as regras mais elementares de segurança que debaixo de água nunca se esteja sozinho).
O que o Estado tem no seu caderno de encargos no que toca a esta área, no entanto, não se alterou – continua a ser da sua competência a salvaguarda, o estudo e a promoção do património náutico e subaquático que se situa em território nacional, na zona económica exclusiva (uma das maiores do mundo) e na plataforma continental. E isto sem esquecer as embarcações naufragadas nas águas de quase 60 países que, tendo pavilhão português, são tecnicamente território nacional (neste lote estão, por exemplo, as descobertas no sultanato de Omã). Ao todo são mais de 7000 sítios arqueológicos, embora a esmagadora maioria esteja apenas referenciada em termos documentais.
Depois de o PCP ter defendido recentemente na Assembleia da República um reforço dos meios de funcionamento do CNANS, o PÚBLICO foi ouvir arqueólogos capazes de fazer um retrato do que é hoje a náutica e subaquática em Portugal. E deparou-se com “um cenário de emergência” que a todos preocupa e que põe em causa o investimento e o trabalho realizado, sobretudo nos finais da década de 90 e no começo da seguinte. Pelo meio há uma situação a que a tutela tem de dar resposta já – o centro tem de deixar rapidamente os 3200 m2 que ocupa desde Junho de 2010 no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL), em São Julião do Tojal, Loures, e onde estão instaladas as
reservas arqueológicas, lado a lado com o laboratório de conservação e restauro que não funciona há mais de um ano por falta de técnico (há já um concurso aberto para o substituir) e um importante arquivo.
O senhorio denunciou o contrato, que termina a 10 de Junho próximo, e informou em Dezembro o Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliações Culturais (GEPAC), o organismo que o assina em nome do Ministério da Cultura, que tenciona arrendar aquele espaço a outra entidade. Passado meio ano, o CNANS ainda não tem as malas feitas e o MARL não mudou de ideias. Para onde vão os 14 mil bens móveis que o centro tem à sua guarda, com destaque para as pirogas com mais de dois mil anos que foram descobertas no Rio Lima, que estão entre as mais antigas embarcações que se conhecem em todo o mundo, e os fragmentos e cerâmicas de uma embarcação quinhentista que resultaram de escavações na Ria de Aveiro? Para onde vão os vestígios e materiais da nau Nossa Senhora dos Mártires, que regressava da Índia com um carregamento de pimenta e naufragou ao largo do Forte de Julião da Barra, em 1606? E os do San Pedro de Alcantara, navio espanhol que viajava do Peru para Cádis e se afundou perto de Peniche em 1786, naufrágio em que terão morrido quase 130 pessoas, muitas delas escravos que viajariam no porão, presos com grilhetas de ferro?
Para onde vai o CNANS?
O PÚBLICO procurou saber junto do Ministério da Cultura onde vai passar a funcionar o CNANS e por que razão passaram seis meses sem que se tivesse encontrado uma alternativa ao MARL. O gabinete do ministro Luís Filipe Castro Mendes remeteu qualquer esclarecimento sobre a arqueologia náutica e subaquática para a DGPC, que se limitou a dizer, num brevíssimo email e sem direito a mais perguntas, que “a presença do CNANS no MARL sempre foi considerada uma situação provisória” e que “está a analisar diversas soluções de mudança” que permitam acolhê-lo “em condições adequadas à natureza da sua actividade”.
O CNANS foi para o mercado abastecedor pensando que a estadia seria, de facto, provisória, até que a instalação definitiva estivesse garantida. A mudança para aquele armazém a 12 quilómetros do centro da cidade foi feita quando a arqueologia foi forçada a deixar o espaço que ocupava na Avenida da Índia, em Lisboa, para abrir caminho à construção do novo Museu Nacional dos Coches. A transferência para o MARL começou em Novembro de 2009 e em Março não estava ainda concluída.
[...] “Portugal esteve na linha da frente na discussão da convenção da UNESCO para o património subaquático [de 2001] e hoje é claramente um dos países que se arriscam a entrar em incumprimento. Já estamos na linha vermelha.” Jacinta Bugalhão, que está a fazer um doutoramento sobre a arqueologia portuguesa no final do século XX-começo do XXI, vai ainda mais longe: “Tudo isto é de uma enorme irresponsabilidade em termos nacionais e internacionais. Acho que podemos dizer que [a arqueologia náutica e subaquática] está quase naufragada. Que precisa urgentemente, pelo menos, de uma operação de resgate e salvamento, ninguém tem dúvida nenhuma.”
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Sem direito a mais perguntas lol
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