10/11/2006

Desabafo de uma lisboeta

In Diário de Notícias (10/11/2006)
Maria José Nogueira Pinto
Jurista

"Nesse tempo, o Campo Grande era longe da cidade e todo o meu dia- -a-dia se passava ali. As idas à Baixa ou ao Chiado representavam uma aventura. Vestíamo-nos para ir à Baixa. Andávamos sempre de bibe, para poder brincar à vontade. Quando a minha mãe dizia que nos levava à Baixa e ao Chiado íamo-nos vestir como deve ser. Era todo um ritual e isso assustava-me muito, porque na minha cabeça a ideia que tinha que me enfarpelar de uma forma tão original em relação ao que era o meu quotidiano resultava ameaçadora.

Chegar ao Chiado era chegar a um sítio cheio de montras, cheio de lojas, de objectos que não estávamos habituados a ver: a Bénard dos brinquedos, uma loja fascinante, cheia de brinquedos muito bonitos e muito caros, que se podiam ver, mas não comprar. O Ramiro Leão onde a minha mãe costumava comprar pó-de-arroz, que se vendia ao peso. Havia pó-de-arroz lilás. Esse também era um universo mágico. O Rei das Meias onde nos ofereciam decalcomanias com a figura dos valetes de espadas e dos reis de copas. Não sei porquê, eram as cartas de jogar.

No Sousa, a minha mãe desenrolava com uma desenvoltura que me afligia rolos e rolos de sedas e veludos e parlamentava com os balconistas sobre cores e texturas deixando a loja numa imensa balbúrdia.

Nos Restauradores (ou no Rossio, não posso precisar bem), havia um fotógrafo à la minute. Penso que muitos lisboetas terão um retrato assim. As pessoas vinham e ele perguntava se queríamos tirar um retrato. Um dia, a minha mãe disse que sim. É o meu retrato da Baixa-Chiado.

Outros "retratos" ou percepções coexistiam nesse espaço e nesse tempo: os engraxadores, os cauteleiros, a velhota que vendia pegas de crochet, as vendedoras de violetas, o preto da Casa Africana, o cego do acordeão, os intelectuais bem falantes da Brasileira, os ociosos da Casa Havanesa, a Tatão do Grandela, imortalizada no "Pai Tirano", e uma pequena classe média que também ela se enfarpelava para ir à Baixa comprar tecidos e retroses e as classes populares para desfrutarem das suas folgas.

Outros tempos, dir-se-á, mas não voltaram novos tempos, depois do incêndio do Chiado e da desagregação da ocupação do espaço, o despovoamento, a degradação do edificado, a desordem do espaço público, a morte lenta do comércio tradicional, a deslocalização paulatina de funções indispensáveis à sustentabilidade deste território. Mesmo o Chiado, mercê de diversos factores, não se repovoou, mistura lojas de luxo com quiosques pindéricos, pavimentos esburacados, caixas de electricidade inúteis, grafitti e publicidade pirata, uma roulotte com música aos gritos assassinando a milagrosa voz de Amália, o homem dos cães, pedintes romenos, sinalética desordenada, fraca e feia iluminação.

E, no entanto, este coração de Lisboa, esta porta de entrada do País toca fundo na consciência e na emoção dos lisboetas e dos portugueses e, justiça seja feita, preocupou e ocupou, todos os executivos camarários, organismos do poder central, universidades e estudiosos, especialistas e grupos de cidadãos.

A Proposta de Revitalização da Baixa Chiado, recentemente aprovada pela Câmara Municipal de Lisboa, representa uma oportunidade para, de forma integrada e sistematizada, se atacar com êxito uma questão fulcral. É um ponto de partida para um caminho que tem, e deve ser, apropriado pelos cidadãos, nas suas críticas e contributos.

Diria que os seis comissários que, por amor à cidade, responderam à chamada, deram uma mais valia inquestionável ao partir do diagnóstico para a visão, desta para a estratégia, e num quadro de objectivos razoáveis e exequíveis proceder à organização do espaço. Tendo em conta o enorme valor de uma reabilitação sustentável do riquíssimo património histórico- -arquitectónico tornar, contudo, este espaço singular num espaço vivido e fruído. A tudo isto se juntou um modelo institucional que garante a eficiência e a estabilidade da intervenção e um modelo de financiamento consentâneo com a situação das finanças camarárias.

Todas as vozes da desgraça insistem em que não é possível. Porquê? Ninguém explica. Mas este é um projecto que assenta na auto-estima dos portugueses e não na auto-comiseração. Apenas como lisboeta, mantenho a convicção que me moveu a assumir esta responsabilidade e que se baseia numa constatação tão simples quanto vergonhosa: se os outros fizeram, porque não nós? Se todas as grandes cidades revitalizaram os seus centros históricos, o que verdadeiramente nos impede de fazer o mesmo? Como queremos candidatar a Baixa Pombalina a Património da Humanidade se não sabemos tomar conta dela?

É que até Huelva já foi capaz
"

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