In Público (29/1/2007)
Ana Henriques
«Houve sítios onde a miudagem saiu para a rua aos gritos. "Foi só um bocadinho de neve, para ficarmos contentes"
"Mas não pode estar a nevar, filha, tu estás em Campolide!". Pelo segundo ano consecutivo o espanto tomou conta dos habitantes de Lisboa e arredores, pouco acostumados a ver os flocos gelados roçarem-lhes pela cara para se desfazerem em pouco mais que nada ao chegarem ao chão.
Enquanto grande parte da Europa sofre as agruras dos nevões, que nos últimos dias chegaram a matar gente, os lisboetas e os habitantes das antigas terras saloias abriram as caras em sorrisos de um prazer quase infantil perante o fenómeno, que os apanhou de surpresa no tardio pequeno-almoço domingueiro, quando não em vale de lençóis. Queixa, apenas uma: "Era poucochinha, só uns flocozitos... No ano passado havia mais". Por coincidência, faz hoje um ano que Lisboa e arredores viram nevar pela primeira vez em 52 anos. Ontem foi a segunda. Tal como no ano passado, o espectáculo aconteceu a um domingo.
Quando os aguaceiros de neve chegaram a Lisboa, onde mal se aventuraram para lá das fronteiras da cidade, já os habitantes de Casal de Cambra, Caneças e de várias outras localidades dos concelhos de Sintra, Loures, Amadora e Odivelas estavam muito satisfeitos, narizes colados às janelas, a vê-la cair. E com as bocas coladas aos telemóveis, a fazer inveja aos amigos menos bafejados pela neve. De fazer enregelar os ossos, o frio não impediu muitos dos que se encontravam no mercado de Queluz de virem cá para fora para celebrar a chuva de pequenos flocos.
A miudagem correu para a rua aos gritos. "Foi só um bocadinho de neve, para ficarmos contentes", observava um motorista de autocarro de Belas. "Os campos ficaram todos brancos", descrevia o proprietário de uma quinta em Caneças que resolveu transferir a mesa de pequeno-almoço para uma assoalhada envidraçada para assistir a tudo com a família. Ao fim de uma hora a chuva desfez o cenário.
Em Lisboa foi bastante mais rápido. Só os mais experimentados, nados e criados fora dos hábitos da metrópole, deram pelos primeiros sinais, ainda não eram 11h00. "A chuva começou a cair um bocadinho mais grossa. Quem não percebesse pensaria que era só chuva", dizia um empregado das bombas da Repsol da rotunda do Relógio. "Eu, que vim da Beira Alta, sei perfeitamente o que é neve". Segundo o relato dos homens da gasolineira, por duas vezes a água se transmutou em gelo a sério, capaz de ser entendido como tal pelo mais empedernido. "Se tivesse sido em maior quantidade metia mais vista", observava o beirão. Umas centenas de metros adiante, na Av. do Brasil, a empregada do balcão da fruta desdenhava do fenómeno: "Aqui em Lisboa é novidade. Agora para quem, como eu, que sou de Alijó, está habituado a neve a sério..."
Só houve queda de neve até metade da Av. do Brasil. A misteriosa fronteira parece ter sido um restaurante nepalês chamado Everest, que tem como imagem de marca... uma montanha com o cume cheio de gelo. O porteiro do Hospital Júlio de Matos, um pouco mais adiante, bem esperou por ela, enquanto passeava para trás e para diante no seu pequeno cubículo, para os pés não congelarem. Debalde. A neve lisboeta não conseguiu passar o Everest.
O Instituto de Meteorologia explicou que tudo se deveu à chegada ao continente de uma depressão vinda de Sul, que trouxe consigo uma massa nebulosa geradora de precipitação. Associado às baixas temperaturas que já se faziam sentir, o fenómeno fabricou os aguaceiros de neve. A chegada das nuvens podia ter, pelo contrário, feito subir a temperatura, o que impossibilitaria a formação dos flocos, que só surgem com temperaturas inferiores aos quatro graus.»
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