In Público (24/2/2008)
António Barreto
Retrato da semana
«Talvez tudo fosse diferente se os políticos tivessem de responder, com os seus bens, pelas dívidas de que são responsáveis
É sempre assim. Calor e seca trazem falta de água, perda agrícola, incêndios de floresta e morte de animais. Por vezes, doenças. Chuva traz inundações, perda de casas e bens, pobreza, destruição de estradas e comércios. E ameaças para a saúde pública. Sem falar nas avarias de telefones e de água canalizada, nos cortes de gás, nas paragens de semáforos e nos colossais engarrafamentos de carros. Nuns e noutros casos, bombeiros, serviços de protecção e prevenção, socorros de emergência, soldados, polícias e centros de saúde desunham-se quanto podem, mas são sempre insuficientes, raramente chegam a tempo, não estão dimensionados e faltam-lhes meios e organização. Esta é a fragilidade de um país. Esta é a fraqueza de uma sociedade que se moderniza velozmente, de um modo brutal. As camadas modernas vão-se sobrepondo sobre a sociedade antiga, sem evolução ou ajustamento. Auto-estradas por cima das couves, cabos de alta tensão e antenas de telemóveis em cima dos telhados e prédios instantâneos rodeados de ribeiras e ribanceiras, de taludes e areia. Restos de obras escorrem nas enxurradas, areia e tijolo espalham-se pelas ruas e aterram nas baixas das cidades ou perto dos rios e praias. A lama natural mistura-se com os detritos de uma sociedade desorganizada e desmazelada, a que presidem autoridades sempre mais interessadas no que dá nas vistas, com enorme desprezo pelo que faz falta. Como tão bem adverte, há décadas, Ribeiro Telles, cortam-se as vias de água, tapam-se os sistemas de drenagem, desviam-se cursos, entopem-se as sarjetas e os esgotos e não se cuida do espaço público. Nem sequer se aprende com os desastres anteriores. Aposta-se no futuro e sai Casino, estádio de futebol ou Exposição. Choque tecnológico ou plataforma. Resort de luxo ou TGV. Mas a sarjeta, senhores, a sarjeta! Essa fica esquecida. Sem falar na drenagem, no abastecimento de água, nas linhas de telefone, nos esgotos ou na organização dos serviços de emergência.
No domingo passado, por acaso, vi meia hora de televisão. Num programa da RTP, quando liguei, Pacheco Pereira falava disto tudo, a propósito das inundações de 1967 e de outras, mais recentes, referindo-se em especial à cidade de Loures, onde os desastres costumam ser de grandes proporções. Tanto denunciava, pareceu-me, as autoridades como os costumes das populações. Foi imediatamente desmentido por um senhor empertigado da câmara ou dos serviços de protecção locais, ou de ambos. Foi-lhe dito, secamente, que não sabia do que falava, que a câmara já tinha feito o que devia e que umas novas construções evitariam aqueles desastres. Pacheco Pereira, garantia o seu contraditor, não sabia o que dizia, estava afastado de Loures e falava como um ressabiado, pois tinha perdido as eleições. Ponto final. Duas horas depois, uma carga de água varreu as ilusões modernizadoras do senhor. Só não sei é se lavou também a sua arrogância.
Nos grandes desastres, há sempre uma parte pessoal. A minha não foi tanto ter ficado sem telefone fixo durante uma semana, como foi a de ter sido entregue aos call centers da PT. Dezenas de chamadas e centenas de "prima a tecla três" ou "marque dois" não foram suficientes para reparar a linha. Era da humidade, da caixa, do verdete ou de qualquer outra sujidade. Desde o momento que um assinante deixa o seu número, nunca mais consegue falar com pessoa viva. Vai de máquina em máquina, de call center em call center, de serviço em serviço, tem de carregar em sucessivas teclas, até que os gravadores lhe dizem que está tudo registado e lhe desligam a chamada. A nova tecnologia, a modernidade e a simplificação dão nisto. Pena é não haver concorrência real nos telefones fixos!
Desastre maior, mas com origem diferente, é o que se abateu sobre a Câmara de Lisboa. Ou antes, que a Câmara de Lisboa ofereceu aos seus munícipes. Como se sabe, a câmara está falida. O que quer dizer que, sendo entidade pública, não está. Decidiu pedir um avultado empréstimo, subscrito por todos os partidos. O Tribunal de Contas, em aplicação das leis em vigor, nomeadamente a última sobre as finanças locais da autoria do então ministro e hoje presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, impediu o empréstimo. A câmara e os grupos partidários nela representados vão recorrer, mudar os processos, procurar expedientes. O município precisa urgentemente de 400 ou 500 milhões de euros. Não para fazer obra, mas para pagar dívidas. Dívidas a centenas ou milhares de empresas e pessoas que forneceram bens e mercadorias, fizeram empreitadas, asseguram a manutenção e prestam serviços. Alguns destes credores faliram, enquanto outros tiveram de pedir dinheiro emprestado (de que pagam juros), têm sérias dificuldades, despediram colaboradores, reduziram a sua actividade e vivem em grande stress. Os partidos, os autarcas e os governantes discutem o processo, debatem as normas jurídicas, compram pareceres aos melhores advogados, acusam-se mutuamente e denunciam responsabilidades. Do que se percebe, ressalta que a responsabilidade é de todos os partidos e de todos os presidentes de câmara que ocuparam cargos em Lisboa desde há pelo menos quinze ou vinte anos.
As consequências deste episódio são devastadoras. Para as pessoas que sofrem os efeitos e não têm meios ou recursos para serem compensadas. Mas sobretudo para a nossa vida colectiva. Por ser pública, uma entidade pode ficar a dever, falir e ter comportamentos absolutamente irresponsáveis, que nada lhe acontece. Por serem dirigentes públicos, os autarcas podem gastar o que não têm, ficar a dever, provocar a falência de cidadãos e empresas e não cumprir os compromissos e os contratos assinados. Por serem eleitos, podem fazer a demagogia que lhes dá na cabeça, gastar no que lhes apetece, contratar os amigos e subsidiar o que lhes interessa, que não são depois chamados a pagar e assumir responsabilidades. Talvez tudo fosse diferente se os políticos tivessem de responder, com os seus bens, pelas dívidas e pelos abusos de que são responsáveis. Talvez não houvesse tanta demagogia se os bancos comerciais fossem as únicas entidades capazes de avaliar a capacidade financeira de uma câmara. Uma coisa é certa: as dívidas da Câmara de Lisboa (e certamente de muitas outras autarquias e entidades do Estado central) constituem um poderoso estímulo à impunidade da vida colectiva. Mais: revelam que o Estado, em Portugal, não está submetido ao direito. Este é um verdadeiro desastre. Uma inundação é preferível. Sociólogo»
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