In Diário de Notícias (28/8/2008)
Maria José Nogueira Pinto
jurista
«Nos vinte anos do incêndio do Chiado, neste abrir de memórias, comecei por ir buscar o retrato. É que, na minha cabeça, o Chiado, a Baixa e o retrato tornaram-se uma e a mesma coisa. O fotógrafo a la minute fixou-nos para sempre num rectângulo de papel: a minha Mãe, muito elegante, de tailleur preto, cintura fina, luva de pelica e um chapelinho janota na cabeça levava-me pela mão numa daquelas inesquecíveis incursões à Baixa. Teria cinco anos, não mais, e para a ocasião vestiram-me a rigor, de saia plissada, camisa de vaiela e sapatinho de presilha. Chegar ao Chiado era chegar a um sítio cheio de montras, ver (sem tocar) os brinquedos da Quermesse de Paris, subir no elevador do Ramiro Leão, entrar no Sousa, onde a minha Mãe desarrumava tudo desenrolando metros de seda e veludo, cheirar os perfumes e aviar pó-de-arroz lilás nos Armazéns do Chiado e receber decalcomanias da mão do empregado do Rei das Meias.
Todas as gerações que conheceram este Chiado e guardam o seu retrato a la minute, não podem senão ser assaltadas por uma onda de nostalgia.
Considerada a maior catástrofe ocorrida em Lisboa depois do terramoto, o incêndio destruiu, irremediavelmente, os sinais, os símbolos e os rituais de um espaço que ao longo de gerações significou "ir à cidade", o cosmopolitismo possível, a novidade das ideias como da moda. Há vinte anos, sobrou apenas o futuro. Difícil? Muito. Eu estava no Algarve e vi as imagens na televisão. Pensei, recordo-me, como Lisboa era afinal tão vulnerável e como era possível estar a ver, em directo, a paragem do seu coração.
A reconstrução arrancou num forte clima emocional, o que acarreta sempre consequências negativas. Pensou-se que a mera reconstrução constituiria uma resposta suficiente à enorme afronta daquela destruição... Julgo - é uma mera opinião - que não houve tempo para pensar aquele espaço à luz de uma nova vocação, do seu futuro, da sua sustentabilidade, no que ele poderia e deveria ser, no que queríamos nós que ele fosse. As obras demoraram muito tempo, e esse tempo destruiu os hábitos e rotinas do quotidiano e toda aquela área iniciou um inevitável processo de declínio que alastrou até à Baixa, Rossio, Restauradores e apanhou parte da Avenida da Liberdade. A fazer fé no último censo e nos dados disponíveis, o repovoamento não foi conseguido. A reconstrução atingiu custos elevadíssimos e os espaços destinados a habitação atingiram preços incomportáveis para os cidadãos normais.
Depois do terramoto, a opção de Pombal não foi fazer renascer dos escombros uma réplica do que lá estava, mas antes algo cheio de modernidade e funcionalidade, uma maravilha iluminista a que se chama "Baixa Pombalina" com candidatura a Património da Humanidade. Presumo que tenha sido tudo muito mais racional do que emocional. Obviamente que havia de refazer-se a matriz do Chiado, mas era inevitável pensar na sua nova vocação. Porque não basta reconstruir quarteirões numa zona fortemente atingida no seu âmago sem estabelecer a respectiva ligação às áreas adjacentes (vejam-se a estagnação desordenada da Baixa, o estado lamentável do Bairro Alto, os riscos emergentes do Martim Moniz...). A menos que nos contentemos com um cenário e uma animação efémera. Mas podemos ser muito mais ambiciosos, pois tudo aquilo que faz a diferença está lá, ainda está lá!
Por isso, quando me perguntaram que Chiado desejaria eu ver daqui a vinte anos fui dizendo: um Chiado (e uma Baixa...) consolidado após um programa de revitalização, cumprindo o desafio de devolver este espaço aos portugueses com a sua "marca de água" intocada, mas apropriando-se dos sinais dos novos tempos. Respirando, vivo, a todas as horas de todos os dias do ano. Um Chiado repovoado: moradores, famílias, comerciantes, trabalhadores, espectadores de teatro e de ópera, gourmets, turistas, pessoas que vão às compras. Gente que nidifique e recrie os rituais do quotidiano, o único antídoto contra o declínio»
Totalmente de acordo com MJNP, à excepção da referência à Quermesse de Paris - que ficava debaixo do Hotel Palace, aos Restauradores: os brinquedos eram para tocar e levar, sim. Abençoada casa que tantas alegrias ainda me deu (e dá).
Irrrita-me um bocadinho este bacoco saudosismo relativamente à ao Chiado...
ResponderEliminar"naquele tempo é que era", "estava cheio quando era chique ir à cidade", bla bla
São outros tempos, num país abandonoado e sem alternativas, quando não existiam mais diversões, noutro século!
Não é possível querer-se que o tempo volte para trás. Estamos em contextos completamente diferentes e há que actuar, avaliar e pensar no actual contexto.
Alias, num recente estudo verificou-se que a faixa etária acima dos 40 considera que o CHIado está triste e vazio, sem comércio de qualidade, sem sitios de encontro, sem atractividade, uma sombra do que foi.
A faixa inferior aos 20/25 anos considera o Chiado uma das zonas mais cool/in da cidade, com comércio de marcas de qualidade. com movimento, esplanadas interessantes, um complemento ao cool Bairro Alto.
Bem, ou somos esquisofrénicos ou vivemos em dois mundos.
Estamos a falar de dois extremos opostos, mas não os podemos rejeitar e encontrar um ponto intermédio, aproveitando sinergias.
Não podemos é comprometer a dinâmica do actual Chiado (que é de aproveitar para impulsionar também a Baixa) com os argumentos do tipo "no outro tempo é que era bom"....
"Chiado "democratiza-se" após o grande incêndio
ResponderEliminarLisboa 20 anos depois, uns dizem que o Chiado perdeu 'glamour', outros garantem o contrário
2008-08-26 - JN
RICARDO PAZ BARROSO
Os mais antigos recordam o Chiado como sendo a "pérola" de Lisboa, onde era chique passear. Já os mais novos garantem que continua a valer a pena passear no Chiado e que a zona está mais cosmopolita e urbana que nunca."
Eu conheci os "dois" Chiados...aponto mais para o segundo.
A nostalgia, é efectivamente um factor importante para o cidadão, todos nós temos as nossas memórias, que acrescento pessoais. Existe facto aquelas que são coincidentes, a isto chamamos memória colectiva. O património, ou a identidade cultural das gentes é a memória colectiva.
ResponderEliminarQuero também realçar e sublinhar a frase de MJNP, "recrie os rituais do quotidiano", é nesta frase que reside o sucesso da reabilitação de qualquer centro histórico, como o Chiado ou a Baixa. E óbviamente não é um Chiado ou Baixa para turistas que irá resolver o problema.
Infelizmente temos assistido a várias tentativas e experiências pessoais de intervenção mal sucedidas. Alguns convencidos, com uma necessidade pueril de afirmação, procuram impôr (em vez de recriar) o nosso quotidiano.
Concordo! Mas também concordo que não nos podemos prender demasiado ao passado. Impede-nos de viver o agora.
ResponderEliminarisso mesmo.
ResponderEliminarAs cidades na realidade são os armazens da memória colectiva. Mas, são também a nossa melhor oportunidade de projectarmos a nossa imagem para o mundo e para a posteridade.
ResponderEliminarAs grandes cidades do passado nas quais vivemos exprimem a sua sociedade, os seus sonhos e aspirações e entendem memoria não como nostalgia de glorias vãs, mas como inspiração para realizações dinâmicas e contemporaneas. Quanto mais enraizada uma intervenção urbana estiver conectatada no passado colectivo mais frutuosa será a inspiração para o futuro.
O teste de sucesso de um projecto urbano é de facto o seu sentido de inevitabilidade. Estas simples palavras de David Mayernik pretendem justamente recriar o quotidiano é esse o sucesso de uma intervenção urbana, como um complemento de uma pré-existência, ou de uma história inacabada. Mas este complemento requer soluções práticas para problemas reais numa prudente reconciliação de estratégias, (de forma a recriar o quotidiano).
Estou totalmente de acordo com o que disse o caro Daniel. Também não consigo compreender este saudosismo desmedido pelo velho Chiado.
ResponderEliminarFaz-me lembrar a velhinha música do Tony de Matos, "Oh tempo, volta para trás"! Pois é, mas o tempo não volta.
As vezes tento imaginar como seria o Chiado caso não tivesse acontecido esta infeliz catastrofe. E a imagem não é nada boa! Certamente algo identico à rua Augusta e adjacentes, com prédios degradados e descaracterizados pelo mau gosto dos anos 70 e 80, lojas de aspecto e qualidade duvidosa e marginais a tentar vender droga.
Apesar de já não me incluir na faixa etária dos sub-25, sem dúvida que o actual Chiado é uma das zonas mais cosmopolitas da nossa capital, com lojas, cafés e outros espaços fantásticos. É o Chiado que temos e é com ele que temos que viver. Se queremos mudar alguma coisa, terá que ser no futuro. No passado nada se pode mudar.
Gonçalo
ResponderEliminartambém concordo que a memória dos lugares é um factor tão objectivo a ter em conta no planeamento urbano, como são os elementos fisicos existentes e as condicionantes e as dinãmicas humanas "não palpáveis".
Mas lá está. É apenas um dos factores, mais ou menos preponderante, dependendo do caso concreto.
Mas também não nos podemos esquecer que a transformação urbana deve ser feita de acordo com as necessidades sociais; alterações demasiado bruscas, como aquela que aqui aconteceu, podem trazer roturas e feridas profundas de dificil resolução; a verdade é que o Chiado vive no seu Largo e pouco mais. Ele "encerra" com a FNAC e isso, não é bom sintoma.
ResponderEliminarA ideia de uma certa nostálgia é necessária e empresta aos locais aquela vivência de que tantos de nós precisamos para respirar e para inspirar; ninguém quer ir para Telheiras pensar em escrever um livro ou pintar um quadro; mas isso acontece no Chiado, porque lá existe quase que uma cumplicidade com outros grandes que por lá passaram; existe uma memória ou uma sã nostalgia, que nos ajuda a passar o tempo, entretidos com as nossas memórias...
Quem não tem passado não sabe construir o futuro. Sempre foi assim e sempre será. Procurar apagar a memória, a história ou o passado no governo das sociedades tal como na arquitectura caminha a passassos largos para o horror de ditaduras.
ResponderEliminarJá vimos isso e estamos assistir hoje a assistir a um retorno, os exemplos dos edificios no Cais do Sodré, no Rato, em Belém, em Cascais, a ditadura dos iluminados, esses arquitectos inseguros, ávidos de euros e fama, consomem o país a seu belo prazer, prometendo, arte nos seus mamarrachos. O governante sem cultura, vaidosos reneguam o passado porque sempre viram os seus antepassados a servir outros (o que não é vergonha nenhuma antes pelo contrário), hoje de diploma na mão e poder, espezinham e impõem as suas mediocridades.