In Público (13/1/2011)
«Um Tesouro para o Futuro
Muito poucos se foram apercebendo de um tesouro escondido em Lisboa.
Além de edifícios belíssimos e únicos, agora reconhecidos com a classificação de Conjunto de Interesse Público (Balneário D. Maria II, de 1853, e Pavilhão de Segurança, de 1896), o Hospital Miguel Bombarda (o terceiro grande hospital português, de 1848, a seguir ao Hospital de S. José em Lisboa e ao Hospital de Sto António no Porto, e onde exerceram as maiores figuras da psiquiatria portuguesa), possui um património artístico e arquivístico ímpar no país, e raro no contexto europeu.
O Pavilhão de Segurança – Museu dispõe de uma colecção de Arte de Doentes desde o início do século XX, com perto de 4000 obras, abrangendo variadíssima gama de tipologias (pré-surrealista, dismórfico, traço automático, abstracto-expressionista, etc) , reconhecida como de enorme valor a nível europeu por peritos estrangeiros (ver Público de 2/2/2011). Arte Naif e convencional, mas a maioria Art Brut, Arte Crua ou Outsider Art, com relevante conjunto datado dos anos 1920 e 1930, semelhante, em pureza criadora, à lendária colecção Prinzhorn, da mesma época, além de autores como o famoso Jaime Fernandes.
O Museu também possui uma colecção de fotografia com 4500 exemplares, 1100 dos quais retratos de doentes para diagnóstico, desde o séc. XIX, sem paralelo nacional, além de centenas de páginas em prosa e verso, desenhos de tatuagens, etc, e do acervo de material clínico e hospitalar.
Mas sobretudo, o Hospital Miguel Bombarda conservou ao longo de 160 anos um Arquivo Hospitalar, específico das instituições psiquiátricas, que constitui um autêntico tesouro patrimonial para o país, e inclusive para a Europa, dada a sua antiguidade e integralidade (em muitos países desapareceram décadas de documentação, principalmente por más condições de armazenamento).
Dezenas de milhares de processos clínicos, desde as singelas papeletas do séc. XIX até às histórias clínicas do período Sobral Cid, verdadeiras peças literário-clínicas, incluindo a sintomatologia contada em discurso directo pelos doentes, árvores geneológicas, estudos morfológicos, rigorosa descrição da patologia e sua evolução, etc.
E somente neste hospital, livros de registo sequencial de todos os doentes desde 1848, e, além dos processos clínicos, dezenas de milhares de processos de admissão e de processos médico-legais, de todo o país e de todos os estratos sociais, contendo ofícios das Câmaras, tribunais, polícia, exército, e outras entidades, enviando doentes e cidadãos, cartas de médicos, cartas de familiares e de empresas ou dos próprios doentes, descrevendo os episódios de loucura, de crimes e roubos, de comportamentos considerados anti-sociais, troca de correspondência, etc. E ainda a documentação da direcção do hospital e dos diversos sectores e serviços, incluindo livros de ocorrências.
Uma fonte riquíssima e única para a investigação de ponta no campo das Neurociências (como mostra António Damásio), mas também um outro e profundo olhar sobre Portugal, de enorme importância para a investigação nos domínios da História, da História da Arte, da Sociologia, da Antropologia ou da Criminologia. São arquivos e colecções complementares: um doente está geralmente referenciado em diversos tipos de arquivos, por exemplo o autor de um desenho.
Deve assim ser garantida, urgentemente, dado o Hospital estar prestes a encerrar, a unidade e a complementaridade dos Arquivos, Colecções e restante acervo. Este tesouro arquivístico deve ser classificado património nacional, e não deve ser disperso, mas sim permanecer nas históricas instalações hospitalares, integrado no Museu de Arte de Doentes e Neurociências (renovado e alargado, prestigiante para a cidade e o país), correctamente inventariado e acondicionado, e disponível a investigadores, tal como proposto às Ministras da Saúde e da Cultura no Apelo de 23 de Dezembro subscrito por grandes personalidades da Ciência e Cultura.
Que a nossa elite, e os nossos políticos e decisores, compreendam sem delongas: os Arquivos e Colecções do Hospital Miguel Bombarda são relevantíssima componente da Cultura Portuguesa, são um tesouro para o futuro.
Vítor Albuquerque Freire
Historiador»
Li ontem no público e achei importantíssimo. Subscrevo em todas as frentes. O autor do artigo sabe do que fala e entre muitas credenciais tem uma que fala altíssimo -- o trabalho que fez com o panoptico e tudo o que lhe está associado.
ResponderEliminarO que não é claro para mim é de que modo os arquivos ficarão acessíveis à comunidade de pesquisadores, e não são poucos os que adorariam trabalhar com esses dados. Como o autor do artigo sublinha, o seu potencial vai muitíssimo para além da história da psiquiatria portuguesa e poderá integrar amplas discussões de carácter universal.
Cristiana Bastos -- Instituto de Ciências Sociais