Um problema de vegetação e de ordenamento
Durante anos, as cidades escolheram espécies vegetais de manutenção barata. Por razões de saúde pública, este critério tem vindo a mudar. Porém, a Primavera continua a ser difícil para os alérgicos, porque subsistem más escolhas, problemas de construção e de poluição em meio urbano. In Público por Marisa Soares
Na hora de escolher a vegetação a introduzir nas cidades, que factores pesam na decisão? "Procuramos inserir plantas autóctones que não consumam muita água, nem libertem pólens que provoquem reacções alérgicas", responde a vereadora com o pelouro dos espaços verdes na Câmara de Oeiras, Madalena Castro. Neste concelho, há 200 hectares de jardins e o objectivo da câmara é chegar a 2017 com uma árvore por habitante, ou seja, 164 mil exemplares "adaptados a zonas urbanas", diz a vereadora.
Falta de formação
No processo de arborização de uma cidade não pesam apenas critérios como a espécie da planta e o tipo de pólen que liberta. "A questão deve ser colocada antes, ao nível do ordenamento do território", explica a presidente da Associação Portuguesa de Arquitectos Paisagistas (APAP), Margarida Cancela d"Abreu. E é sobre as câmaras que recai a responsabilidade de decidir onde construir, evitando situações propícias à acumulação dos pólens - o chamado "efeito de capacete", que se regista, por exemplo, na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Este efeito traduz-se na retenção do ar devido à existência de construções em altura.
A arquitecta aponta como exemplo a urbanização da Quinta do Cabrinha, no vale de Alcântara, Lisboa. "Propusemos que as casas ficassem a meio da encosta, mas a câmara quis fazer prédios em altura com fundações profundas e pôs tudo cá em baixo, criando obstáculos à circulação do ar. Os pólens ficam retidos", explica.
O mesmo acontece no vale de Benfica, também na capital, onde o ambiente muito húmido e as habitações construídas em altura impedem a eficaz circulação dos pólens. Para evitar uma maior incidência de alergias nas cidades, a APAP considera "fundamental" a "adequada estruturação dos espaços abertos e espaços verdes". Só assim se permite a drenagem do ar poluído, bem como a drenagem da água superficial e subterrânea em excesso, garante a líder da APAP.
O professor Manuel Barbosa, director do Serviço de Imuno-alergologia do Hospital de Santa Maria, de Lisboa, concorda com esta visão, defendida também há muito pelo arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, autor do Plano Verde de Lisboa. "Com a impermeabilização dos solos, é muito mais difícil fazer desaparecer os pólens", lembra o médico.
O planeamento dos locais a arborizar, em parte pensado pelos arquitectos paisagistas, tem ainda uma lacuna. "Estes especialistas não têm qualquer formação em alergologia", lamenta Pedro Lopes da Mata, que já propôs a realização de formações, mas sem sucesso.
Os "flocos de algodão"
O concelho de Oeiras foi um dos escolhidos para transplantar as oliveiras saídas de Alqueva. A gestora Carla Gonçalves vê algumas da janela de casa, mas não se incomoda muito com isso. Com 41 anos, Carla tem rinite alérgica e asma desde os quatro anos. É alérgica "a tudo menos batatas e ovos". Mas não falha a medicação. E essa, diz o alergologista Pedro Lopes da Mata, é a solução-chave para o problema: "É o doente que tem de se adaptar e tratar. O remédio não é cortar as árvores."
Embora não deixe as alergias condicionarem a rotina diária, Carla evita passar perto das árvores que "largam uma espécie de flocos de algodão". É o caso dos choupos e dos plátanos, muito utilizados para fazer sombra e ornamentar as zonas habitacionais urbanas. "São muito usados pelas câmaras municipais, porque crescem com grande rapidez", diz o antigo director do Jardim Botânico da Universidade de Lisboa Fernando Catarino. "As pessoas exigem às câmaras flores e relvados, mas não querem alergias. E os executivos acham que plantar zonas verdes é a maneira mais barata de ganhar votos", critica Catarino.
Cortar ou não cortar?
É a espécies como o plátano e o choupo que, habitualmente, se aponta o dedo acusatório. Muitos doentes procuram o médico para pedir um atestado a comprovar que são alérgicos a determinada árvore, para entregarem na autarquia e exigirem o abate. "Na maioria dos casos, depois vamos fazer os testes e afinal nem sequer são alérgicos a ela", diz o alergologista Pedro Lopes da Mata, director do Instituto Clínico de Alergologia, em Lisboa.
Pode haver resistência dos médicos em passar os atestados, mas muitos destes pedidos chegaram já à Câmara de Oeiras. "Temos de lidar com a situação com algum tacto", admite Madalena Castro, até porque também há quem defenda as árvores incriminadas com unhas e dentes. "Às vezes, quando concordamos com o corte, chegam-nos abordagens agressivas no sentido contrário. Tivemos um caso de um grupo de pessoas que se atou a um plátano para não o cortarmos", recorda.
A Câmara de Cascais também se vê confrontada com este problema com frequência e sugere a quem reclama uma consulta num médico especialista. "Esta pode ser a via que os capacita para conseguirem enfrentar o "inimigo" que lhes dá muitíssimos mais benefícios do que os danos que lhes cria", refere a directora do Departamento de Ambiente da autarquia, Ana Paula Chagas.
"Muito excepcionalmente", as alergias têm sido um critério para a decisão de abate de árvores, apenas em casos de "extrema gravidade", suportados por relatórios médicos que ficam disponíveis para consulta de todos os munícipes.
À Câmara de Lisboa chegam as mesmas reclamações. "Tentamos perceber o problema, mas não abatemos uma árvore só com base numa justificação médica", clarifica a directora do Departamento de Jardins. Até porque, segundo o médico Manuel Barbosa, a sensibilidade da população dos alérgicos aos pólens das árvores é de apenas dez por cento.
Em alternativa, a autarquia de Lisboa tem vindo a substituir algumas árvores antigas, evitando plantar espécies mais problemáticas, como o choupo ou o cipreste.
Ervas danadas
O que as câmaras têm mais dificuldade em controlar é a parietária, espécie vegetal que causa a maior parte das alergias. Esta erva, típica dos países mediterrânicos, é daninha e existe em grande força nas zonas periféricas de Lisboa, como Sintra e Torres Vedras. Em Lisboa, abunda nos terrenos e edifícios abandonados. Vive em muros velhos, casas degradadas, telhados antigos, e alimenta-se de azoto (presente nos excrementos de pombo, por exemplo) e fosfato, o que facilita a proliferação. Há cerca de 14 anos foi feito um estudo, durante um ano, no Jardim Botânico de Lisboa, por investigadores especialistas no estudo de pólens. A conclusão foi algo "inesperada": o pólen da parietária [também designada alfavaca-de-cobra] que teoricamente existe apenas no tempo seco, regista-se afinal todos os dias do ano, explica Fernando Catarino.
O pólen destas ervas - que pode percorrer até 100 quilómetros - só é visível ao microscópio, daí que poucos o culpem pelos sintomas alérgicos. "As pessoas só são alérgicas ao que vêem", enfatiza Pedro Lopes da Mata.
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