25/11/2012

"Escondidos" nas ruas e nas estatísticas.




Reportagem 
"Escondidos" nas ruas e nas estatísticas
Por Andreia Sanches Texto Enric Vives-Rubio Fotografia in Público
Algumas horas a caminhar em Lisboa bastam para encontrar um número equivalente a 10% dos sem-abrigo que o INE contabilizou no país todo. Como Eduardo, o pára-quedista, ou o transmontano que conduzia máquinas nas obras
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Um, dois, três, seis, 10, 20, 40, 60... caminhe-se algumas horas numa noite fria de Novembro, em Lisboa, e percebe-se mais facilmente por que razão algumas organizações não governamentais dizem que os números apurados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre pessoas sem-abrigo estão muito aquém da realidade. Conhecidos esta semana, os dados definitivos do último Censos falam de 696 homens e mulheres nessa situação em todo o país. Na quinta-feira, só passando por meia dúzia de ruas da Baixa da capital e na Gare do Oriente, o PÚBLICO contabilizou mais de 60 a dormir ao relento. "Há tanta gente... é ir por aí acima, Marquês de Pombal, Saldanha...", comentava um transmontano de 49 anos, cabelo grisalho, camisola verde de malha, impecável, por cima de uma camisa branca de flanela. Podia estar vestido para ir trabalhar. Mas era assim vestido que se preparava para dormir aninhado numa caixa de cartão desengonçada num passeio da Avenida da Liberdade - a avenida das lojas de marca de renome, dos hotéis, das esplanadas e dos sem-abrigo. 
Nem sempre é fácil saber quantos corpos estão por debaixo dos montes de cartão e mantas que se avistam nas ruas e nas ombreiras das portas. Nem é possível garantir que nesta noite fria e húmida quem dorme ao relento o faz mesmo porque não têm como pagar um tecto. "Acha que se tivesse onde dormir estava aqui?", pergunta indignado o transmontano, os olhos muito brilhantes, enquanto, de joelhos no chão, endireita os cartões que lhe vão servir de cama. 
O percurso escolhido cobre apenas uma pequena parte da rota dos sem-abrigo. Praça da Figueira: uma mulher dorme sentada, num banco, curvada sobre si mesma, com uma manta colorida sobre a cabeça, rodeada de sacos de supermercado. 
Rua 1.º de Dezembro: à entrada de um prédio, num recanto escuro, junto a uma pizzaria frequentada por turistas, alguém dorme em cima de cartões e mantas.
Largo de São Domingos: três corpos enrolados, um corpo por cada uma das três montras de um "pronto-a-vestir de senhora, criança e homem". 
Praça dos Restauradores: três pessoas dormem junto à porta da antiga Loja do Cidadão. Um homem tem uma garrafa de vinho tinto ao lado. Outro dorme por debaixo do banco de uma paragem de autocarro iluminada por um reclamo que anuncia bilhetes de avião para Bordéus, Paris e Lyon a 29 euros e promete "umas férias bem regadas" com vinho francês. 
"Quando fechamos os olhos, não se sabe o que pode acontecer, se se vai ser agredido, se se vai ser queimado", diz Eduardo, 27 anos, alguma experiência de rua onde, em geral, explica, "ninguém quer pensar no amanhã". Eduardo é um homem de pele morena, olhos claros, sorriso largo. Tem uma frase tatuada no braço: "Só vence quem acredita na vitória." É um lema dos pára-quedistas. Ele já foi pára-quedista.

Rua Augusta: um homem dorme enfiado à entrada de uma loja de óculos de sol.

Avenida da Liberdade: três homens dormem junto à montra de uma perfumaria, outros dois junto a uma loja de roupa - entre os quais o transmontano que conta, quase a sussurrar, que trabalhava nas obras "a conduzir máquinas" e que sempre teve trabalho, mas sempre sem fazer descontos, até que há uns meses nem trabalho, nem dinheiro, nem casa, nem quarto na pensão. "Estou à espera de uma vaga num abrigo do Exército de Salvação."
Gare do Oriente: num corredor, umas a seguir às outras, dormem mais de 40 pessoas. Há um homem de barbas brancas, deitado de barriga para cima, que tosse convulsivamente, mas que nunca abre os olhos. Outro que ressona muito alto, as meias de fora da manta que o cobre, brancas, muito sujas. Há um casal embrulhando num saco-cama - ela de cabeça de fora, a falar com um outro homem, e o homem que está com ela a puxá-la para debaixo do agasalho. Mas há, sobretudo, muitos corpos com os rostos tapados com lenços, trapos, sacos-cama, impossível de adivinhar sexo, idade, etnia. Uma rapariga de saltos altos, passo apressado, pára bruscamente junto a um dos corpos, tira da mala uma manta azul, tapa-o e segue caminho. Tudo muito rápido. É meia-noite.
Nas escadarias de acesso aos pisos superiores, há mais pessoas a dormir ou a preparar-se para dormir - 1, 2, 3, 4... Um sem-abrigo embrulhado em cartão fuma um cigarro. Os que o rodeiam estão imóveis. Nascem amizades nestas "situações extremas", como lhes chama Eduardo? E inimizades? "Em ambientes de necessidade as relações são de conveniência. Mas inimizades não há. Há inimizades quando há inveja e aqui ninguém tem nada para invejar." E continua: "Na rua o que é que se tem? Outras pessoas que não têm nada como nós. Que estão à mercê como nós. O que é que fazemos com isso? Consome-se (álcool, drogas) e não se tem paciência para nada. O que é que acontece quando não há paciência para nada? As pessoas discutem, zangam-se. Mas não se tornam inimigos. Não se tornam nada." 

O problema dos conceitos

Uma das novidades dos Censos de 2011 era que as pessoas sem-abrigo iam ser contabilizadas à parte, o que poderia vir a permitir caracterizar o fenómeno. Quando esta semana esses resultados foram conhecidos, Sérgio Aires, coordenador da Rede Europeia Anti-Pobreza, disse que a operação se revelou uma "oportunidade perdida". Por causa do conceito de sem-abrigo usado pelo INE, mas não só - mesmo se se tivesse em conta estritamente as pessoas que dormem na rua, disse, a realidade é bem pior do que a que as estatísticas mostram. 
A Assistência Médica Internacional (AMI) informou que, só este ano, atendeu cerca de 1209 sem-abrigo, mais 6% do que no ano passado. E dados divulgados há dois anos pelo Instituto de Segurança Social contabilizaram 2200 pessoas sem tecto. 
A definição de sem-abrigo está longe de ser consensual. E está longe de ser uma questão apenas portuguesa. Em Outubro, a Comissão Europeia estimou que "em 2009/2010 havia 4,1 milhões de sem-abrigo na Europa". A situação, acrescenta-se, ter-se-á "agravado recentemente". Mas este é um "fenómeno cuja extensão é difícil de quantificar".
Num outro documento, também com a chancela da Comissão, intitulado Os sem-abrigo na crise, lamenta-se que a União Europeia ainda não tenha adoptado uma definição de sem-abrigo que permita fazer um retrato fiel da situação. Diz-se que há "sem-abrigos "escondidos"" porque ninguém os contabiliza. E defende-se que passe a ser usado o conceito da Fédération Européenne des Associations Nationales Travaillant avec les Sans-Abri (FEANTSA), que considera que sem-abrigo são todas as pessoas que vivem na rua, mas também as que não têm habitação digna. Tal como as que vivem com familiares ou amigos, de forma precária, porque não têm alternativa. E as que habitam em instituições.
Em Portugal, o INE começa por explicar que o conceito que usou nos Censos "está em linha com as definições internacionais", nomeadamente com "a categoria conceptual "sem tecto" da tipologia da FEANTSA". Para a federação os sem-tecto são, contudo, apenas uma das categorias de sem-abrigo. 
O INE considera sem-abrigo "toda a pessoa que, no momento censitário, se encontra a viver na rua ou noutro espaço público como jardins, estações de metro, paragens de autocarro, pontes e viadutos, arcadas de edifícios entre outros, ou aquela que, apesar de pernoitar num centro de acolhimento nocturno (abrigo nocturno) é forçada a passar várias horas do dia num local público".
De fora ficam "as pessoas a viverem em edifícios abandonados; as que, não tendo um alojamento que possa ser classificado de residência habitual, no momento censitário estavam presentes em alojamentos colectivos como hospitais, centros de acolhimento, casas abrigo", as que estão a viver com amigos ou familiares por não terem casa e as que vivem em abrigos naturais, como grutas.

Temporariamente abrigados

À luz desta definição, os 25 homens que têm lugar no Abrigo Nocturno da Graça, gerido pela AMI, já contam para a estatística.
Aqui, só pode entrar quem estiver disposto a assinar um acordo que vise a sua inserção. A ideia é que num lapso relativamente curto de tempo (alguns meses) saia, mas nem sempre isso acontece. Neste momento, por exemplo, há um jovem que está a acabar o 12.º ano e Hugo Dias, o psicólogo responsável pelo Abrigo, entende que não faz sentido mandá-lo embora, quando a prioridade é que ele acabe os estudos. Cada caso é um caso, sublinha. 
No Abrigo, os utentes podem jantar, dormir, tomar o pequeno-almoço, mas não podem passar o dia. Aqui têm acesso a apoio psicológico e a ajuda dos técnicos de serviço social. Mas muitos dos que saem acabam por voltar às ruas - "As pessoas reorganizam-se, mas não é, muitas vezes, uma reorganização muito consistente", diz Hugo Dias. 
Dois utentes aceitam falar com os jornalistas sobre aquela que será a realidade de alguns dos que o PÚBLICO encontrará nesta mesma noite nas ruas da Baixa de Lisboa: um homem de cabelos grisalhos, que todos os dias lê os jornais na Internet, com formação em Gestão Financeira, a que chamaremos António; outro, Eduardo, o ex-pára-quedista que também já foi segurança privado.
Um e outro não podem contar com a família, por diferentes razões, sobre as quais não se alongam - Eduardo diz que quando as coisas se complicaram pediu ajuda aos familiares, mas estes disseram que simplesmente não podiam ajudar. Ambos têm filhos. Ambos são extraordinariamente bem-falantes e têm muita fé de que vão dar a volta - Eduardo está num curso de Inglês; António já arranjou trabalho, num projecto social chamado CAISBuy@Work, que permite que funcionários de grandes empresas possam delegar tarefas em pessoas como ele, tarefas que vão desde fazer compras no supermercado a entregar roupa na lavandaria. Em breve, poderá até assumir funções de coordenador, conta orgulhoso. 
Os pontos em comum entre António e Eduardo terminam, contudo, aqui. 
Eduardo já viveu na rua em diferentes cidades (na verdade, nunca diz "Vivi na rua"; diz, por exemplo, "Fui para a Póvoa do Varzim" e, quando se lhe pergunta "Mas foi para lá e ficou a dormir na rua?", ele responde: "Quando eu, ao longo desta conversa, não especificar o local onde dormia, é porque estou a falar da rua").
Já António é recém-chegado. Depois de "uma vida óptima, que tomara que todos os portugueses tivessem", foi "desviado por pessoas menos boas para fazer negócios" que o fizeram perder tudo. Durante alguns anos manteve-se com diferentes trabalhos, sobretudo vendas, que depois foram deixando de surgir. E em Junho já não lhe restava dinheiro. "Corri quase todas as paróquias de Lisboa, cheguei a oferecer-me para trabalhar em troca de um lugar no chão para dormir. Nada." Deu entrada no Abrigo ainda o Verão não tinha começado. 
Da vida nas ruas, António sabe pouco, portanto. Sabe que não é tão difícil assim que as coisas corram tão mal que se acabe por lá ir parar. 
Já Eduardo, percebe-se, sabe mais das ruas do que diz - ruas onde abundam os vícios, as doenças mentais, o isolamento. Contudo, agora que tem "três refeições quentes por dia" e vai receber o "cheque do rendimento social de inserção", sente-se cheio de força e só pensa na "vitória" de que fala a frase que tem no braço. "Na vida não devemos concentrarmo-nos nos problemas, mas sim nas soluções. Nas saídas de emergência. As pessoas com muito dinheiro é que têm muitos problemas. Eu estou apenas à procura da minha felicidade." Para já, ela passa por acabar o curso de Inglês e depois emigrar. "Talvez Brasil. Tenho que ponderar tudo muito bem. Foi por não ponderar tudo que acabei como acabei."

1 comentário:

  1. Só há sem abrigo involuntários porque a câmara quer. Dinheiro para duas rotundas e terreiros do paço não falta.

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