Classificação de dois imóveis do Estado como
monumentos nacionais já foi bloqueada. Uma delas chegou a ser agendada para
Conselho de Ministros no ano passado, mas não foi por diante porque a sua
concretização impediria negócios futuros.
Por José António Cerejo, Público de 12 Maio 2014
Finanças impediram a classificação da parte agrícola da Quinta do Marquês, em Oeiras. Foto de Carlos Lopes.
A austeridade chegou às decisões sobre o nível de protecção a
atribuir aos bens patrimoniais que são propriedade do Estado. Isto é: o risco
de as classificações que protegem esses bens vir a dificultar a sua
rentabilização passou a ser tido em conta na hora de os classificar. Para já,
há dois casos em que a classificação de propriedades do Estado como monumentos
nacionais foi travada pelo Ministério das Finanças, graças a esse tipo de
considerações: um em Oeiras e outro em Vila do Conde.
Fundada
na segunda metade do século XVIII, a quinta do Marquês de Pombal, no centro de
Oeiras, tem a sua área nobre, a chamada Quinta de Baixo, onde se encontram os
jardins e o palácio, classificada como monumento nacional desde 1953. Adquirida
em 2004 à Fundação Gulbenkian pela Câmara de Oeiras, esta parcela da
propriedade acolheu até há poucos anos o antigo Instituto Nacional de
Administração.
Os restantes 80% da quinta, a chamada Quinta de Cima, que é
totalmente murada e ocupa perto de 200 hectares, tinham uma vocação
essencialmente agrícola, que estão há muito na posse do Estado, sem qualquer
classificação patrimonial. É lá que está instalado o Instituto Nacional de
Investigação Agrária e Veterinária — que absorveu a antiga Estação Agronómica
Nacional —, mas é lá também que permanecem inúmeras marcas da exploração
agrícola setecentista e das áreas de recreio que ali existiam, incluindo o
sistema hidráulico criado por Carlos Mardel, o arquitecto que projectou o
palácio do marquês.
Face aos riscos resultantes da pressão imobiliária que atinge
este enclave verde rodeado de urbanizações foi a própria Câmara de Oeiras a
propor ao Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, em
2003, a ampliação a toda a quinta da classificação como Monumento Nacional que
protege apenas a quinta de Baixo.
A proposta partiu de Teresa Zambujo, que ocupava o lugar
de Isaltino Morais, então ministro do Ambiente, e levou a que também a Câmara
de Cascais, em 2007, solicitasse a inclusão na zona classificada de vários
elementos do sistema de abastecimento de água à quinta situados extra-muros, em
território do seu concelho.
Concluída a instrução do processo de ampliação da classificação,
o Conselho Nacional de Cultura emitiu em 2012 um parecer onde afirma que “a
extensão da classificação a todos os elementos constitutivos do imóvel (...)
enquadra-se numa atitude de reconhecimento do valor cultural da criação
arquitectónica e paisagística portuguesa setecentista, constituindo-se o bem a
classificar como valor cultural e patrimonial de enorme relevância não apenas
ao nível da vivência palaciana, mas ainda à sua consumada expressão através da
quinta de recreio que caracterizava a vida de Setecentos, nomeadamente no
entorno de Lisboa”.
Quem também achou que o Monumento Nacional devia abranger os 200
hectares da Quinta de Cima e não apenas a zona do palácio foi o actual
secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, que em Maio do ano
passado aprovou um projecto de decreto-lei preparado pela Direcção-Geral do
Património Cultural (DGPC) para formalizar a ampliação da classificação.
Agendado para a reunião do Conselho de Ministros de 27 de Junho
daquele ano, o projecto acabou por não ser objecto de qualquer decisão. Motivo:
o Ministério das Finanças, através da Direcção-geral do Tesouro e Finanças
(DGTF), emitiu um parecer na véspera da reunião do Conselho de Ministros em que
se opõe à proposta do secretário de Estado da Cultura.
De acordo com a DGTF, a classificação de toda a propriedade como
Monumento Nacional implicaria a sua integração no domínio público do Estado e
entraria em conflito com os interesses deste “no que diz respeito à disposição
e utilização não condicionada daquele património”.
Para ultrapassar os entraves das Finanças e assegurar a
protecção da possível quinta, ainda que inferior, a DGPC avançou, entretanto,
com uma alternativa. Essa solução já foi aceite pelo secretário de Estado da
Cultura e vai no sentido de a propriedade ser classificada já não como
Monumento Nacional, mas como Conjunto de Interesse Público. O respectivo
processo foi iniciado no mês passado.
O Convento de santa Clara, em Vila do Conde, tem ao lado a igreja homónima, classificada já como monumento nacional. Foto de Adriano Miranda.
No caso de Vila Conde verificou-se uma situação em tudo
idêntica, na medida em que, com os mesmos argumentos, a DGTF se opôs à
ampliação da classificação da Igreja de Santa Clara, que é Monumento Nacional
desde 1910, ao convento a que está ligada.
O convento albergou durante muitos anos um reformatório de
rapazes e encontra-se fortemente degradado, tendo fracassado em 2008 um
projecto do grupo Pestana que visava a sua transformação em pousada. A inclusão
do convento no conjunto classificado como Monumento Nacional foi proposta no
início deste ano pela Direcção Geral do Património Cultural, mas a DGTF travou
o processo.
Os argumentos do Ministério das Finanças
Um ofício dirigido à DGPC pelo subdirector-geral do Tesouro e Finanças, no fim do mês passado, explica a posição do Ministério das Finanças.
Um ofício dirigido à DGPC pelo subdirector-geral do Tesouro e Finanças, no fim do mês passado, explica a posição do Ministério das Finanças.
No essencial, escreve Bernardo Alabaça, a classificação de
um imóvel do Estado como Monumento Nacional determina o seu ingresso no
“domínio público monumental ou cultural, situação que não se verifica quando a
um imóvel do Estado é atribuída a classificação de interesse público”.
Neste caso, salienta, o bem “permanece no domínio privado do
Estado”. O problema está em que, ao ser classificado como Monumento Nacional, o
imóvel entra na categoria dos bens domínio público do Estado, os quais estão,
por definição legal, “fora do comércio privado, sendo imprescritíveis [não
podem ser adquiridos por usucapião] e impenhoráveis”.
Bernardo Alabaça não aponta, porém, uma terceira característica
dos bens do domínio público do Estado: são inalienáveis, de acordo com o
decreto-lei 280/2007. O que significa, entre muitas outras coisas, que não
podem ser vendidos.
Também no parecer com que travou a classificação da parte
agrícola da Quinta do Marquês como Monumento Nacional, a DGTF defende a
exclusão da área a classificar de uma grande parcela da propriedade, “por forma
a melhor compatibilizar os interesses em causa, salvaguardando os interesses do
Estado, no que diz respeito à disposição e utilização não condicionada daquele
património”.
Questionado pelo PÚBLICO sobre se as posições assumidas pela
DGTF nos dois casos aqui referidos traduz uma nova orientação de natureza
permanente, o gabinete da ministra das Finanças respondeu apenas que essas
posições têm em vista “assegurar a maior latitude procedimental possível por
forma a encontrar as melhores soluções de valorização patrimonial e cultural,
enquadráveis pela legislação vigente.” E acrescentou: “Não foram identificados
mais casos semelhantes”.
É muito grave, isto. No caso da quinta do marquês, projetada por Carlos Mardel, este desfecho do processo de classificação é completamente inesperado e é uma aberração que a última palavra sobre a classificação de património cultural seja do Ministério das Finanças. Não sei o que andam a tramar para a quinta do marquês, mas temo o pior.
ResponderEliminarMais vale vendidos do que "geridos" pelo estado. O estado é o pior dos gestores do património, e deixa tudo ruir, como é bem documentado aqui com fotos. Deixem vender que alguém fará bom uso.
ResponderEliminarCaro Filipe Melo Sousa,
ResponderEliminarA questão não está na gestão privada ou pública, mas na preservação do imóvel. O país está cheio de exemplos de monumentos nacionais cujo espaço está a ser explorado por entidades privadas (um de muitos exemplos: castelo de Alcácer do Sal). Portanto, essa é uma falsa questão.
Ao contrário do que se possa pensar, esta quinta não está abandonada. Tem exploração agrícola e vitícola (vinho de carcavelos), uma aldeia hípica (explorada por privados) que tb faz festas de aniversário para crianças e promove passeios pedestres pela quinta, e uma série de entidades a funcionar, com destaque para a estação agronómica nacional (agora transformada em instituto), com inúmeros edifícios e estufas na quinta.
Todas estas atividades são compatíveis com a classificação e preservação da quinta. Esta recusa de classificação tresanda a ideias urbanísticas. Será talvez mais rentável, mas este património vai à vida...
O património do estado pode ser rentabilizado de muitas forma sem ser a venda... isto de vender tudo aos chineses e penhorar o futuro para dar o dinheiro aos bancos alemães já chateia...
ResponderEliminarpara já isto não passa de especulação. uma coisa é vender outra é deixar aberta essa possibilidade. de qualquer modo, a ser vendida seria a quinta de cima que nunca teve qualquer classificação patrimonial. por isso isto não me parece grave.
ResponderEliminarAnónimo das 8:14:
ResponderEliminarNão é verdade que a quinta de cima não tenha "qualquer classificação patrimonial".
Foi promovido um processo com vista à classificação da quinta como monumento nacional. Durante todo o processo, nunca esteve minimamente em causa o facto de este imóvel ser merecedor dessa classificação. Não o classificar apenas por argumentos de rentabilização é uma aberração. É uma aberração que o critério decisivo de classificação de monumentos nacionais seja a rentabilização.