As controversas alterações aprovadas em Julho ao plano de
pormenor da zona do hospital, a pedido do Grupo Espírito Santo, viabilizaram
obras já autorizadas. Nesta quarta-feira realiza-se a hasta pública do terreno
dos bombeiros municipais que poderá ser adquirido para ampliar o hospital.
Por
José António Cerejo, Público de 2 Outubro 2014 | Foto de Nuno Ferreira Santos
O novo parque, quase pronto, só passou a estar previsto no plano que vigora desde o mês passado
António Costa aprovou em
2013 dois projectos de obras do Hospital da Luz, quase um ano antes de entrarem
em vigor as alterações ao plano de pormenor que viabiliza parte delas.
Essas alterações foram feitas a pedido
da empresa do Grupo Espírito Santo (GES) proprietária daquele hospital, a
Espírito Santo - Unidades de Saúde (ESUS), que as solicitou por escrito em
2009, quando a câmara já estava a preparar uma revisão do plano que não as
contemplava.
A execução das obras
previstas num dos projectos, que incluem uma pequena ampliação do hospital,
ficou parcialmente condicionada à publicação no Diário
da República das
alterações ao Plano de Pormenor do Eixo Urbano Luz-Benfica (PPEULB), que
ocorreu no dia 8 do mês passado.
O outro projecto, que
preconiza a construção de um novo parque de estacionamento subterrâneo de apoio
ao hospital, foi aprovado em Novembro, sem qualquer condição desse tipo. As
obras começaram em Fevereiro, estando agora quase concluídas.
Questionada pelo PÚBLICO
acerca dos motivos que a levaram a condicionar parte das obras interiores do
hospital à entrada em vigor do novo plano, sem fazer o mesmo em relação à
construção do parque, a câmara respondeu que isso se deveu ao facto de as
primeiras, ao contrário da segunda, dependerem da alteração do plano.
Perante novas perguntas
sobre o entendimento de que a possibilidade de construir o parque num lote
criado para o efeito, o nº 41, resulta das alterações ao plano agora
publicadas — as quais justificaram também o lançamento da hasta pública
através da qual a ESUS adquiriu o direito de ali construir o parque —, a câmara
respondeu assim: “A localização de um parque de estacionamento sob a via
pública, não alterando o seu traçado e considerando que a sua área de
construção não é contabilizada para efeito dos índices do plano, não constitui
numa alteração do plano de pormenor. Nestes termos procedeu-se à aprovação do
projecto de arquitectura do parque de estacionamento.”
Ou seja, segundo a
autarquia, o parque foi aprovado, e em grande parte construído, antes da
entrada em vigor do novo plano, porque a sua construção já era possível à luz
do plano anterior.
Confrontado com esta
tese, o anterior Director-geral do Ordenamento do Território, Paulo Correia,
não hesitou em a contrariar frontalmente. “Autorizar uma obra com essas
características sem o plano de pormenor estar alterado constitui uma violação
do plano que estava em vigor.”
Na opinião deste
professor de Urbanismo do Instituto Superior Técnico, o parque só poderia ser
licenciado se o plano em vigor definisse o local da sua implantação no subsolo,
os acessos e a área de construção, coisa que não sucedia. Por isso mesmo,
acrescentou, é que ele foi incluído na revisão do plano.
Leitura semelhante faz o
ex-presidente da Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo,
Fonseca Ferreira, que foi um dos “pais” do Plano Director Municipal de Lisboa
de 1994. Com base nos dados que lhe foram fornecidos pelo PÚBLICO, a sua
primeira reacção foi esta: “Então se o parque não tinha de estar no plano por
que é que o foram lá meter na revisão?” A questão “é muito clara”, sublinhou.
“A construção do parque sob a via pública só seria possível se o regulamento do
plano o dissesse.”
Do lado da câmara, a
explicação para o novo plano ter integrado esta infra-estrutura é a seguinte:
“No âmbito da revisão do plano, estando já constituído o direito de superfície
e aprovado o projecto do parque de estacionamento, entendeu-se incluir esta
realidade”.
Só que o direito de
superfície que originou “esta realidade” foi constituído precisamente com o
fundamento de que os documentos preparatórios da revisão do plano já a
contemplavam.
A hasta pública e a
revisão do plano
No início do ano passado, tendo em conta que estes documentos já preconizavam a construção de um parque de estacionamento atrás do Hospital da Luz, por baixo da Av. dos Condes de Carnide, a câmara aprovou o lançamento de uma hasta pública destinada a torná-lo possível. O objecto do leilão consistia na venda do direito de ali construir e explorar, durante “99 anos improrrogáveis”, um parque com as características exactas daquele que os estudos para a alteração do PPEULB para ali previam: 596 lugares, quatro pisos subterrâneos e 15.480 m2 de área total de construção.
No início do ano passado, tendo em conta que estes documentos já preconizavam a construção de um parque de estacionamento atrás do Hospital da Luz, por baixo da Av. dos Condes de Carnide, a câmara aprovou o lançamento de uma hasta pública destinada a torná-lo possível. O objecto do leilão consistia na venda do direito de ali construir e explorar, durante “99 anos improrrogáveis”, um parque com as características exactas daquele que os estudos para a alteração do PPEULB para ali previam: 596 lugares, quatro pisos subterrâneos e 15.480 m2 de área total de construção.
Embora a obra não
estivesse prevista no plano então em vigor, a decisão foi tomada com base no
facto de ela vir a ser consagrado na revisão em curso. A hasta pública,
divulgada nos termos da lei, realizou-se em Março de 2013, sendo entregue
apenas uma proposta subscrita pela ESUS. O valor oferecido ao município foi de
1.760.001 euros, um euro acima da base de licitação fixada.
Antes de entregar a
proposta, que foi aceite, a ESUS pediu e obteve da câmara a garantia escrita,
também ela divulgada publicamente, de que, em caso de aquisição, poderia
construir “ligações viárias e pedonais de nível entre este parque e o parque
actualmente existente no Hospital da Luz”. A condição posta pela autarquia foi
a de que o novo parque teria de constituir uma “unidade funcional autónoma”,
que “em qualquer altura” pudesse ser desligada do parque que já existia mesmo
ao lado.
Feita a escritura de
cedência do direito de superfície a 11 de Julho do mesmo ano, 2013, a ESUS
submeteu, seis dias depois, dois projectos à câmara: Um, de “alteração interior
e ampliação” do hospital, contemplava “a necessidade de adequar a circulação e
os acessos pedonais entre os pisos de estacionamento e os pisos” da unidade de
saúde, em função da construção do parque; o outro tinha a ver apenas com este
último empreendimento.
O primeiro foi aprovado
logo a 30 de Agosto por António Costa, com base num parecer de Jorge Catarino,
director municipal de Gestão Urbanística, que propõe a separação das duas
componentes do projecto — ligação entre o parque novo e o antigo, por um lado,
e, por outro, obras interiores que implicam um acréscimo de 361 m2 na área
construída do hospital, que “não se enquadra” no plano então em vigor.
O director municipal
propunha essa separação “caso se verifique que os prazos de entrada em vigor
das alterações ao PPEULB não se ajustam aos prazos pretendidos para o
presente processo”. Catarino não diz quais são os “prazos pretendidos”, nem
quem os pretende, mas avança com a proposta de aprovação do projecto nos termos
depois subscritos por António Costa: a primeira componente da obra é aprovada
de imediato, enquanto que a segunda fica condicionada à entrada em vigor do
novo plano.
Logo no início da
apreciação técnica do projecto, a Divisão de Projectos Estruturantes pedira já
ao sector do planeamento que informasse sobre as alterações propostas para
aquele local no âmbito da revisão do plano, “face à urgência da análise do
processo”.
O segundo projecto, o do
parque, teve um percurso mais complexo. Foi alvo de numerosas objecções nas
informações dos serviços, mas foi aprovado por António Costa a 14 de Novembro,
sem qualquer condição relacionada com a entrada em vigor do novo plano. As propostas
de alteração do mesmo, no sentido de o parque passar a ser incluído nele,
serviram no entanto de justificação para o lançamento da hasta pública.
O despacho de aprovação
do presidente da câmara refere o facto de ter sido levantado “um conjunto de
questões” pelos técnicos que apreciaram o projecto. A essas questões, escreve
António Costa, foi todavia “dada integral resposta pelos dirigentes da Direcção
Municipal em causa” [que rebateram as objecções suscitadas] e por um dos seus
assessores jurídicos. “Assim”, conclui, “aprovo o projecto apresentado pela
Espírito Santo - Unidades de Saúde e de Apoio à Terceira Idade SA”, nos termos
propostos pelo director municipal.
A única ressalva colocada
por Jorge Catarino, e aprovada por Costa, foi a de que “a emissão do alvará de
construção ficará condicionada à adequação dos limites do direito de
superfície” constantes da escritura efectuada aos limites que o projecto impõe
e que implicam a cedência de uma área superior, devendo ser pago pela ESUS o
respectivo acréscimo.
Passados três meses, em
Fevereiro deste ano, a câmara deferiu um pedido de autorização para a
realização de “obras antecipadas de escavação e contenção periférica”
apresentado pela ESUS. Foi graças a essa autorização que as obras foram
iniciadas e é graças a ela, segundo a câmara informou o PÚBLICO na passada
quarta-feira, por escrito, que a estrutura do novo parque está neste momento
concluída.
Para justificar o facto
de todo miolo da obra ter sido feito com uma licença que previa apenas a
escavação e a contenção periférica, sem ter sido emitido o alvará de
construção, a câmara diz agora que “no âmbito do projecto autorizado está
prevista a execução de partes da estrutura dos pisos por forma a conferir o
necessário travamento estrutural das paredes periféricas”. Este procedimento,
acrescenta, “é comum em praticamente todos os processo de licenciamento com
execução de caves”.
Quanto à realização da
escritura de acerto da área cedida, que condiciona a emissão do alvará
definitivo, a autarquia responde que ela “será celebrada após a entrega dos
desenhos definitivos”, que são feitos após a conclusão da obra.
Projectos do Risco
Os projectos de ambas as intervenções aprovadas no ano passado são da responsabilidade do atelier Risco, propriedade da família de Manuel Salgado. Este arquitecto, que foi o autor do projecto do Hospital da Luz em 2001, desempenha as funções de vereador do Urbanismo na Câmara de Lisboa desde 2007 e assumiu, nessa altura, o compromisso público de que aquele atelier não submeteria qualquer projecto à apreciação da autarquia enquanto ele ali exercesse funções.
Os projectos de ambas as intervenções aprovadas no ano passado são da responsabilidade do atelier Risco, propriedade da família de Manuel Salgado. Este arquitecto, que foi o autor do projecto do Hospital da Luz em 2001, desempenha as funções de vereador do Urbanismo na Câmara de Lisboa desde 2007 e assumiu, nessa altura, o compromisso público de que aquele atelier não submeteria qualquer projecto à apreciação da autarquia enquanto ele ali exercesse funções.
Em resposta ao PÚBLICO,
Salgado, que é primo direito do antigo patrão do BES, Ricardo Salgado, negou
contudo haver qualquer contradição entre este compromisso e o facto de os dois
projectos terem origem no Risco. Isto porque, afirmou, “o projecto do
estacionamento, tal como o da alteração do hospital, constituem ampliações ao
projecto inicial e não um novo projecto”.
Quatro anos antes de
submeter à câmara estes dois projectos, a ESUS já lhe apresentara, em 2009, um
pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construir mais um piso no
hospital, com um total de 4.591 m2. Contrariamente aos dois projectos do ano
passado, o estudo prévio de 2009 não é da autoria do Risco.
A avaliação dos técnicos
camarários foi então taxativa: o acrescento de um piso contrariava o disposto
no PPEULB, pelo que foi proposto o indeferimento do pedido. Reagindo a essa
intenção, no exercício do seu direito de audiência prévia, a ESUS dirigiu uma
exposição ao presidente da câmara, afirmando que, ao apresentar o pedido de
ampliação, “estava plenamente consciente que, no presente contexto de
regulamentação urbanística, o projecto só poderia ser aprovado com determinados
pressupostos de verificação futura”.
Isto é, a empresa
reconhecia a desconformidade da ampliação com as regras do plano, mas defendia
a sua aprovação, condicionada à futura alteração daquelas regras. E na mesma
exposição pediu que se desse “início ao procedimento de revisão do PPEUL (...)
de modo a acautelar a superfície de pavimento necessária à aprovação do
projecto preconizado [aumento de um piso]”.
Apesar disso, Costa
indeferiu o pedido de informação prévia, em Dezembro de 2009, depois de Manuel
Salgado se ter considerado impedido de se pronunciar sobre ele. Todavia, o
autarca determinou, conforme proposto por Jorge Catarino, o encaminhamento da
exposição da ESUS para o Departamento de Planeamento.
O pedido da empresa para
que a revisão do plano fosse iniciada tem data de 17 de Outubro de 2009. O
processo, porém, já estava a ser preparado há muito tempo. Para 25 de Novembro
desse ano esteve, aliás, agendada a aprovação dos respectivos termos de
referência — que são o enunciado dos objectivos visados pelo município com a
revisão.
Nesse documento e na
proposta, que acabou por não ser levada à reunião de câmara, referem-se com
algum detalhe as mudanças a introduzir no plano. Mas não há lá qualquer alusão
ao Hospital da Luz, nem ao novo parque de estacionamento que este já então
pretendia construir.
Quatro meses depois, no
fim de Março de 2010, a câmara aprova uma nova versão da proposta e dos termos
de referência. No entanto, a ampliação do hospital e a criação do novo parque
continuam a não figurar nesses documentos.
É então que tem início o
procedimento formal da alteração do plano, que incluiu, já em Junho, a abertura
de um período de três semanas, previsto na lei, “para formulação de sugestões
por qualquer interessado”.
Conforme requerido pela
ESUS em 2009, as suas pretensões de construir mais um piso — bem como as de
erguer um novo parque de estacionamento subterrâneo num lote municipal e ainda
a de ampliar o hospital para o espaço contíguo do quartel dos bombeiros
municipais — acabam por ser integralmente transpostas para os documentos
preparatórios da revisão do PPEULB.
A nova versão do plano
acabou por só ser aprovada pela assembleia municipal no fim de Julho deste ano,
no meio de uma enorme controvérsia. Por imposição da sua presidente, Helena
Roseta, a câmara viu-se obrigada a suprimir do plano, antes da sua aprovação,
as numerosas disposições que reservavam o terreno do quartel dos bombeiros para
uma ampliação do Hospital da Luz.
Além de viabilizar as
obras já aprovadas, o novo plano passou a contemplar expressamente a ampliação
do hospital com mais um piso até 5000 m2, tal como a ESUS pedira em 2009.
O PÚBLICO perguntou à
câmara se esta sucessão de factos, juntamente com outros ligados à própria
construção do hospital, entre 2005 e 2007, significa que o planeamento daquela
área da cidade tem sido feito pela câmara em função do grupo económico
proprietário do hospital. “A CML não vai emitir posição perante as apreciações/opiniões
descritas”, foi a resposta transmitida pelo gabinete de imprensa da autarquia.
Uiiii....os contornos da burocracia lusitana são um paraíso para trapalhões e aldrabões. O resto não percebe....mas paga.
ResponderEliminarRespeitar a lei é só para alguns. Outros autarcas deparam-se com advogados-vedeta que embargam de tudo para ter protagonismo, custando milhões ao contribuinte, esse que paga por todas as festas.
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