Mercearia que existe no bairro da Sé desde tempos longínquos e está nas mãos da mesma família há quase 60 anos recebeu ordem de despejo para os próximos meses.
Tarde atípica no bairro lisboeta da Sé. Está um calor estranho para uma quinta-feira do final de novembro, há muitos tuk-tuks sem turistas parados junto à catedral e as ruas estão praticamente desertas. Na Casa Alves, o rádio passa Shakira. O número 112 da Rua São João da Praça é há muitos anos uma das mais typical mercearias de Lisboa, mas está em risco de desaparecer. A meio de novembro, o dono da Casa Alves foi notificado de que tem de se ir embora no prazo de seis meses.
A história que José Luís Alves tem para contar é igual a tantas outras que se encontram por Lisboa. O prédio de azulejos azuis e verdes onde funciona a mercearia era pertença de duas “senhoras de muita idade”. Com a morte delas, os herdeiros venderam o imóvel e o novo proprietário, uma empresa de investimentos imobiliários, quer fazer obras. Atualmente, a Casa Alves é a única ocupante do prédio, que está devoluto do rés-do-chão para cima. Quando as obras estiverem feitas, a localização privilegiada é um dos atrativos para a instalação de um hotel ou de apartamentos para turismo.
Enquanto o futuro não chega, José Luís Alves, filho do fundador da casa, fala do passado. Os pais nasceram em Melgaço e mudaram-se para as ruas estreitas da Sé na década de 1950. “Isto já era uma mercearia”, de um tal sr. Leitão, que só deixou o espaço quando já tinha uns 80 e muitos anos. Foi em 1957 — há 58 anos, portanto. O pai de José Luís ficou com a casa, ele serviu de moço de recados por lá e, anos mais tarde, quando a vida deu as voltas normais, acabou por lá ficar definitivamente. “Quando vim para aqui fiz obras e quis manter a mesma traça”, diz o Alves atual, explicando que parte das prateleiras em madeira de cor creme são acrescentos posteriores à fundação da casa.
Antigamente, na zona onde hoje estão os cestos de fruta, havia um balcão em mármore e a mercearia tinha cerca de metade do tamanho atual. José Luís esticou-a para a área onde existia o armazém, mas não quis desfazer-se dos armários em madeira, dos cartazes a promover o vinho da casa, o café moído na hora e os géneros “de primeira qualidade”. Tudo isso ainda lá está e, se a Casa Alves fechar mesmo, lá não fica. “Se é para destruir, levo tudo”, diz José Luís, para quem “o maior problema é estragarem isto”, não respeitarem “o essencial das coisas antigas”.
Porque é que eu guardo o sacana do moinho de café e a medida antiga de azeite? Porque acho que tenho de preservar isto”
Um candeeiro a petróleo, cestos, medidas de cereais, o “sacana” do moinho e a medida de azeite adornam a montra
Na carta que recebeu a anunciar que tem de se ir embora, os novos senhorios “nem falam” do pagamento de uma indemnização, diz José Luís, que entrou em contacto com um advogado e com a União de Associações de Comércio e Serviços de Lisboa (UACS) para tentar travar o fim da loja. O Observador tentou contactar o novo proprietário do imóvel, a empresa Átrio das Glicínias, mas nem sequer conseguiu obter um número de telefone.
Foi a presidente da UACS que chamou a atenção para o caso da Casa Alves e o de outras lojas históricas em risco na reunião pública da Câmara Municipal de Lisboa esta quarta-feira. Prevendo que o prédio venha a ter um fim turístico, Carla Salsinha apelou à autarquia para que proteja o comércio típico e as lojas com tradição da cidade, refreando “a euforia de hotéis” em Lisboa. A câmara lançou em setembro o programa “Lojas com História”, uma iniciativa da ex-vereadora da Economia, Graça Fonseca (agora secretária de Estado da Modernização Administrativa), que pode ajudar à preservação do património de centenas de espaços comerciais.
Se ainda há salvação para a Casa Alves parece que só o tempo dirá. José Luís, que há trinta anos tem “uma vida escrava” à custa da mercearia, quer reformar-se. “Um gajo levanta-se às seis da manhã e deita-se às dez da noite. Praticamente não tem sábado e ao domingo é para dormir.” Isso não quer dizer que não queira defender a casa que a família criou e manteve durante anos. “Eu vou resistir o mais que possa. Doa a quem doer. Vai doer-me a mim, se calhar…”
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Esta mercearia é a ultima casa original nesta rua, todas as outras sucumbiram à nova moda do pseudo-vintage o que não deixa de ser irónico: trocar o original por uma imitação do original.
ResponderEliminarLisboa está a ficar toda igual, troca-se o bom pela imitação, mais uma catrafada de lojas/restaurantes/pastelarias franchisadas e é a capital que temos hoje. O Chiado é bem exemplo disso e mais umas toneladas de tuk-tuks que não respeitam nem semáforos, nem passadeiras.
ResponderEliminarMiguel
Que pena.
ResponderEliminarInterrogo-me:
O que é feito do Circulo das Lojas com Carácter e Tradição? Que soluções efectivas terá para esta situação?
Ou o Programa da CML Lojas com História?
Serão impotentes ou indiferentes a esta situação??
Se for o primeiro caso, parar que foram criados?
Se for o segundo... para que foram criados?
Enfim, palavras para quê, é um artista Português.
Este tipo de comércio merecia melhor. Lisboa merecia melhor.
Mas não, lá vem mais um Hostel, lá se vai mais um pouco de Lisboa.
Sim, o original é melhor, mas a imitação é mais barata. E tem menos mofo. Não se pode culpar os clientes por não entrarem em lojas que combatem ferozmente qualquer noção de modernidade. Sucede com esta e com muitas outras, que culpa somente o progresso e nada mais pela falta de clientes de que se queixam, impreterivelmente, há décadas. Este não é o melhor exemplo, mas mercearias "típicas" há onde, por mais tradição que tenham, a falta de condições de higiene e a desconfiança de quem atende é lei. Lamentamos, mas seria altura de ensinar alguma da velha guarda a captar novos públicos.
ResponderEliminarCaro António SRC, não sabia que tinha sido rebaptizado. Aleluia! Abraços and keep the good spirit ;-)
ResponderEliminarEssas lojas só sobreviviam porque pagavam 20 euros de renda. Com o fim da mama acabou-se o negócio, que em qualquer lugar do mundo já teria falido há muito, incluindo Coreia do Norte.
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ResponderEliminarO anónimo das 11:43 já disse tudo. Mas o anónimo das 1:03 também tem a sua razão. Muito atendimento nestas lojas antigas continua do tipo "mais um que vem para aqui chatear"....e claro, a clientela dos nosso dias não paga para ser mal atendida.
Tomei há muito pouco tempo conhecimento desta situação. Vivi neste prédio até aos meus 5 anos de idade, no último andar com uma maravilhosa vista para o rio tejo, eram inúmeras as horas que passava à janela a ver os navios a passar e a ver aquele céu maravilhoso. Momentos muito felizes que não esqueço.
ResponderEliminarDa janela, não foram raras as vezes em que um saquinho descia, até ao Sr. José Luís que nos colocava algumas compras no saco com riscas azuis. As línguas de gato embrulhadas num canudo de papel faziam as minhas delícias...
Tivémos de sair dessa maravilhosa casa, pequena em área é certo mas feliz porque estará lá sempre o amor dos avós.
A casa nunca recebeu obras desde os anos 60, sendo um último andar precisava de obras urgentes no telhado. Foram feitos vários pedidos quer ao senhorio que nunca fez nada de relevante, bem como intenções como projetos recria que nunca andaram para a frente. Entretanto este prédio onde num 1.º andar funcionava uma cresce, via todo o seu revestimento em azulejo dentro das escadas a ser roubado, dia após dia, por fim apenas existiam lances de escada com buracos, até a campainha roubaram. Independentemente de as rendas serem baixas, seriam de certeza, o valor do património arquitectónico era imenso, o valor histórico, o valor emocional daquele edifício tão especial. O tecto da cozinha ruiu, o senhorio nada fez, a minha avó acabou por ir para um lar antes deste acontecimento pois achámos que as condições de segurança e o stress causado pelo medo do que eventualmente poderia acontecer lhe faziam muito mal. Infelizmente não houve outra hipótese.
É com muita pena que vejo o fim deste ciclo, espero que a Casa Alves consiga sobreviver, pelos serviço que presta a todos os que vivem e passam na Rua São joão da Praça, pela memória dos alfacinhas, pelo sorriso e saudade. A cidade de Lisboa, os bairros típicos de Lisboa não são o turismo, são as pessoas que nascem, vivem e morrem, haja contençam e respeito pelo que é nosso e não pelo gourmet importado.