02/11/2016

E a casa veio abaixo: abriu-se um buraco na Rua da Lapa que é "uma dor de alma"


Imagem do street view do Google com a casa ainda de pé GOOGLE

In Público (1.11.2016)
Por Jéssica Rocha «Um imóvel do século XVIII foi demolido com o aval da Câmara Municipal de Lisboa e da Direcção-Geral do Património Cultural, por “falta de valor arquitectónico e cultural”. Mas as críticas não tardaram: foi abaixo um dos edifícios mais emblemáticos da Lapa.

Quem passar agora pelo Bairro da Lapa, em Lisboa, vai notar uma diferença flagrante: a casa cor-de-rosa, de janelas de guilhotina, que ficava na esquina da Rua da Lapa com a Rua S. de João da Mata, já não está onde esteve desde o final do século XVIII. Os proprietários demoliram-na para construírem um edifício maior, de forma a vários irmãos lá viverem juntos. Aqueles que consideravam a moradia um ex-líbris da zona não se conformam com o monte de escombros. Sem qualquer estatuto de protecção, a casa veio mesmo abaixo.

O Fórum Cidadania LX foi quem primeiro chamou a atenção para o sucedido. Pedro Cassiano Neves, um dos administradores da página do Facebook, mostrou-se revoltado com a demolição da casa, que era “a mais icónica da rua e uma das mais icónicas do bairro” e que se encontrava em bom estado. E mostrou-se convencido que o edifício estaria protegido: “Há um raio de protecção em que os edifícios à volta (de monumentos reconhecidos), embora não estejam classificados, estão abrangidos pela protecção e não podem ser estragados”. No caso desta moradia, os monumentos em questão seriam a Basílica da Estrela e o Museu Nacional de Arte Antiga.

Fernando Jorge, arquitecto e também membro do Fórum, é da mesma opinião. “Eticamente, claro que a câmara não podia ter aprovado a destruição daquele edifício porque faz parte de um arruamento e uma rua urbana que está consagrada, que todos associamos a um bairro histórico. Isso é indiscutível. Ninguém vai dizer que a Lapa não é um bairro histórico!”. Além disso, aponta o dedo à “progressiva desvalorização do património existente”, argumentando que, na maior parte dos casos, as remodelações apenas mantêm as fachadas dos edifícios e não os interiores, também este com elementos patrimoniais interessantes.

Também Raquel Henriques da Silva, responsável pelo Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa, olha para a situação como “uma dor de alma”. “É uma barbárie que devia provocar a indignação de todos os cidadãos. Para lá do seu valor intrínseco (exemplar raro do pombalino adaptado à dimensão unifamiliar), era uma âncora da imagem do sítio capaz de travar pretensões de alteração na envolvência. Matou-se a peça-âncora para que o caminho fique livre para próximos episódios”. O que, na opinião dos três, não deveria acontecer.

Porém, segundo a Câmara de Lisboa, a casa não se encontrava abrangida por qualquer estatuto de protecção, podendo, dessa forma, ser demolida. A autarquia socorreu-se de uma alínea do Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa que diz que é permitida a demolição nos casos dos "edifícios existentes que não constituam elementos com interesse urbanístico, arquitectónico ou cultural, tanto individualmente como para o conjunto em que se integram, e o projecto apresentado para a sua substituição contribua para a valorização arquitectónica, urbanística e ambiental da área e do conjunto edificado em que se integra". A Direcção-Geral do Património Cultural também emitiu um parecer favorável à intervenção, sublinha o município.

Mas nem essa fundamentação gera consenso. “É completamente subjectiva! É preciso explicar o valor urbanístico e arquitectónico de cada edifício, não dar uma justificação geral e subjectiva como essa. É um parecer extremamente pobre”, acusa Fernando Jorge. “A Câmara de Lisboa tem sido muito permissiva com estas ambições imobiliárias e especulativas. E de cada vez que se faz isso, estamos a dar mais sinais de que, afinal, o património não é assim tão importante”.

Raquel Henriques da Silva completou: “O Departamento do Património Cultural deveria ter competências claras nesta matéria, como se fosse uma espécie de ‘DGPC do Departamento de Urbanismo’: autónomo e guiando-se pelos interesses culturais e patrimoniais e cujos pareceres deveriam ser de cumprimento obrigatório!” [...]»

4 comentários:

  1. Eles querem, podem e mandam!!!

    ResponderEliminar

  2. Já era tempo de o Público retomar notícias sobre a salvaguarda do património da cidade de Lisboa, alvo de permanente destruição.

    ResponderEliminar
  3. A questão não se resume à defesa do património...quando virem o contributo excepcional para a valorização arquitectónica, urbanística e ambiental da área (PDML) do novo projecto que lá irá surgir até choram...há gente presa em Portugal por menos...mas quando o arq. é um nome "conceituado" e "respeitado" pelos seus pares "génios", tudo se permite, mesmo projectos "de autor" sem qualquer tipo de enquadramento urbanístico e/ou arquitectónico como a excrescência que ia vem...
    Quando o arq. vai jogar Golf é uma chatice...caso típico de negligência profissional...e de desonestidade intelectual ainda mais...e a "ORDEM" dos Arquitectos?? Nada faz ao autor e aos seus pares que negligenciam o interesse público??? Provedor de Justiça??? Inspecção Geral do Território??? Presidente da República?? Nahh...Talvez o Pato Donald resolva...

    ResponderEliminar
  4. A mais completa desonestidade intelectual. Os fundamentos utilizados para a demolição não se aplicam ao caso concreto. Pois nem o edifício demolido é desprovido de interesse arquitectónico, nem o edifício a demolir é uma evidente mais valia e requalificação urbanística. Aqui o interesse foi outro, claro e subserviente serviço à especulação imobiliária. Na verdade eles não podem, isto é abuso do poder que lhes foi atribuído. Há muito que averiguar. Este caso é verdadeiramente inadmissível. Não há lugar apenas à subjectividade, à evidências que foram ultrapassadas. Vai-se deixar edificar este aberrante conjunto de irregularidades urbanísticas? Apenas para prestar serviço aos valores da especulação imobiliária?

    ResponderEliminar