Já vão longe (e são já 520 anos) os tempos da fundação da Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia pela Rainha D. Leonor, “por boas causas”, pelo que, compreensivelmente, a estas se terão juntado ao longo dos séculos muitas outras causas, umas melhores, outras piores. Chegados aqui é um facto que as actuais receitas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) provêm essencialmente do jogo, ou seja, de um vício (fortuna e azar), para muitos o pior de todos.
Seria por concessão de outra rainha, D. Maria I, que a SCML passou a deter a exploração da lotaria, primeiro, para já no século XX se lhe juntar uma panóplia de jogos digna dos velhinhos “juegos reunidos“ dos anos 60, mas, ao contrário destes, com efeitos sérios na bolsa dos viciados: totobola, raspadinha, euromilhões (estará eventualmente por contabilizar o número de imóveis pertencentes hoje à SCML, que, ao invés do que aconteceu no passado em que os mesmos lhe eram doados, serão fruto do “confisco” por dívidas de jogo).
É natural, portanto, que a “área de negócio” da SCML seja hoje muito mais do que o Bem Comum, a acção social se quisermos. Consequência disso mesmo é a aposta evidente na reabilitação urbana, não só dos imóveis (imensos) que já eram seus em Lisboa, e que ruíam (e muitos ainda ruem) a olhos vistos, mas dos que passaram e vão passando a ser seus por operações de permuta e até de compra. Uma reabilitação urbana que não se cinge apenas à Economia Social, portanto, mas também alastra ao mercado do imobiliário. É por isso também natural que a SCML surja agora associada a fundos imobiliários fechados e compita, ombro a ombro, em muitas ocasiões, com a Câmara Municipal de Lisboa (CML), por exemplo, em estratégia de reabilitação, em staff, em número de projectos e em volume de negócios.
O mundo mudou e a SCML também tinha que mudar. Não é pecado.
Assim como não é pecado, de modo nenhum, saber recuar.
Vem isto a propósito de um punhado de projectos recentes em que a SCML esteve muitíssimo bem, ao saber reconhecer o erro e ao corrigir a trajectória antes que fosse tarde demais: um prédio na Rua Andrade, o Palácio Portugal da Gama (conhecido agora por “Palácio de São Roque”), o Palácio dos Marqueses de Tomar (ex-Hemeroteca de Lisboa) e o Convento de São Pedro de Alcântara.
Abra-se aqui um parêntesis para elogiar um outro feito recente, aliás ainda em curso: a reabilitação da Quinta Alegre com intuito social e cultural inter-geracional, e que envolve o restauro cuidado do Palácio do Marquês de Alegrete e do jardim apenso, classificados de Interesse Público e situados na Charneca do Lumiar, propriedade da Santa Casa desde 1983 e que, regra geral, eram totalmente desconhecidos do grande público. Só pelo facto de ter passado a haver visitas periódicas, o aplauso à SCML é ainda mais merecido.
Voltando à narrativa, e à coragem da Santa Casa em recuar antes que o mal fosse feito, vale a pena discriminar caso a caso, começando pelo fim da lista referida, agora por ordem da importância de cada um:
Em 2014, vários foram os artigos de imprensa que deram conta da futura transformação do antigo Convento de São Pedro de Alcântara e das meninas órfãs em “ponto focal” da oferta de lazer à noite boémia lisboeta. Temeu-se uma sequela do vizinho Colégio dos Inglesinhos, desta vez não para condomínio, como aconteceu na Rua Nova do Loureiro, mas para um complexo de lojas e restaurantes. Abrir-se-iam vãos, portas e montras para a rua, haveria muito vidro e muita caixilharia em alumínio.
O convento entregue pelos frades de São Francisco à SCML em 1833, passaria a ser assim uma espécie de centro comercial “in”, com esplanadas, comes e bebes, lojas e alguns escritórios da instituição (só para quebrar o impacto negativo). Azulejos, muitos azulejos, muitos deles pombalinos, seriam removidos, nomeadamente de salões e corredores, e da cozinha. Curiosamente, este “projecto” mereceria honras de propaganda em magazine televisivo da especialidade (leia-se do imobiliário).
Pois passados que estão 4 anos sobre as más previsões, e estando as obras a chegar ao fim, o mau presságio ter-se-á dissipado e do “programa de festas” faustosamente anunciado já pouco restará, senão nada, quer por fora quer por dentro. O complexo do antigo convento parece imaculado no seu branco acabadinho de pintar, e não se vislumbra qualquer montra ou novo vão. Do resto só se sabe que o conjunto vai “integrar dois níveis de ocupação: um de utilização mais restrita, com zonas de caráter institucional, designadamente para serviços e realização de eventos; e outro de utilização pública, para possibilitar que todos possam visitar este belíssimo edifício do património histórico lisboeta".
Bravo. Bolinha para a Santa Casa
Algumas centenas de metros mais abaixo, eis os palácios vizinhos colados um ao outro: o dos Marqueses de Tomar, vulgo Hemeroteca de Lisboa, e o Portugal da Gama, comercialmente rebaptizado “Palácio de São Roque” – é já um outro vício muito nosso o darmos novos nomes a quem já os tem.
Independentemente da necessidade evidente de obras no edifício da Hemeroteca de Lisboa, há muito reclamadas (lembremo-nos da “charmosa” cobertura em zinco que o palácio manteve por cima do seu telhado durante anos a fio, pelo menos vinte!), e descontadas as questões laterais sobre o destino a dar àquela hemeroteca, é com bastante regozijo que se regista a informação que dá conta do recuo da SCML na previsível destruição da “sala de fumo” do palácio, que é forrada a couro e brasonada, bem como da escada que liga esta à cozinha e da própria cozinha.
Com efeito, sempre foi evidente que para a instalação do depósito da Biblioteca Brotéria na parte do palácio voltada à Rua do Grémio Lusitano, e ao contrário do que era defendido no projecto apresentado à CML logo após a cedência do palácio, não era necessário destruir nem uma nem outra.
Nova bolinha para a Santa Casa, que terá bem aceitado o protesto feito em 2015.
Passemos ao palácio que lhe está colado, que tem frente para o Largo Trindade Coelho e que era mais conhecido, diga-se de passagem, não tanto pela riqueza patrimonial do seu interior, mas por albergar na então loja do piso térreo o atelier do insigne decorador Lucien Donnat.
Também aqui a Santa Casa recuou e fez bem em recuar. O que foi apresentado, e colocado em telão exterior, até há 2 anos como um projecto de reabilitação do “Palácio de São Roque” para abertura de alojamento local (“short rental”), é agora transformado em espaço museológico, de exposição de parte da colecção de Francisco Capelo, desta vez a sua vertente asiática (será a futura “Casa Ásia”).
Mais uma bolinha para a Santa Casa, por optar pela abertura de um museu em detrimento de mais um albergue sofisticado, a juntar às resmas deles que já existem e se atropelam Chiado adentro.
Mudando de coordenadas e indo até à Almirante Reis pela “street view” da Google, aterra-se no Bairro Andrade e na sua rua mais importante, a Rua Andrade (para quem não se recorde, este bairro situa-se imediatamente abaixo do Bairro das Colónias e deve o seu nome a Manuel Gonçalves Pereira d’Andrade, que o mandou construir em finais do século XIX, tendo depois passado a ser propriedade da CML).
Falo do n.º 2 da Rua Andrade, que faz esquina com a Rua Maria da Fonte e é propriedade da SCML. É um dos mais belos e ainda originais, pormenorizados e mais bem construídos exemplares lisboetas da arquitectura dita de transição, já teve como inquilinos (e proprietário) Anastácio Gonçalves e uma das mais belas lojas históricas de Lisboa (“Cafeteira d’Ouro”), e ostenta desde há pelo menos 15 anos (!) uma placa com aviso prévio de projecto de alterações.
Para este edifício, de grande valia decorativa e construtiva, volto a frisar, a SCML apresentou em 2009 um projecto de alterações bastante intrusivo e que iria descaracterizá-lo por completo, numa palavra: mau. Que foi aceite pela CML. No entanto, de lá para cá tomou a Santa Casa consciência do mal que daí adviria para o património histórico da cidade, e eis que em 2017 apresentou novo projecto à CML, deitando o outro ao lixo. Desta feita mantém-se o edifício praticamente na íntegra, recupera-se tudo, apenas se alterando as casas de banho e alguns detalhes não significativos.
Lisboa reganhará para o seu inventário um edifício que não merece estar como está nem merecia o que se preparavam para lhe fazer. "O prédio manterá o seu uso habitacional e após conclusão das obras, as frações reabilitadas serão para arrendamento".
Nova bolinha para a Santa Casa. Linha. Coluna.
Abra-se aqui novo parêntesis para o estranho caso da construção alienígena (talvez projectada por idólatra de arquitectura brutalista pós-soviética), aprovada pela CML para quatro edifícios centenários sitos no gaveto da Av. Casal Ribeiro com a Rua Actor Taborda, primeiramente apresentada sob a forma de loteamento (de 2007) e depois já sob projecto de alterações, ampliação com demolição.
Imune aos variadíssimos protestos contra a destruição dos quatro prédios, a SCML acabaria por vender os imóveis em Janeiro de 2017 a uma empresa privada, que, eureka, decidiu “manter a identidade histórica dos edifícios, não apenas as fachadas, mas também muito do interior”. Ou seja, o projecto foi para o lixo.
Viva o novo projecto, apesar de estarmos perante mais um daqueles casos em que, provavelmente, o restará no fim serão as fachadas, vide “Desejamos assegurar a manutenção da fachada e reabilitar aquilo que se pode manter no interior, embora haja partes que estão muito degradadas, algumas em colapso estrutural”. Face ao estado geral da cidade, já chegámos a um ponto em que “antes assim do que assado”, ou seja, do mal o menos.
Fechado o parêntesis, e para finalizar, duas reclamações, que a serem aceites pelos destinatários, permitirão à Santa Casa gritar BINGO:
A primeira diz respeito à vontade do arquitecto autor da reabilitação em curso no Palácio Portugal da Gama, em fazer cobrir (!) o magnífico chão de pedra do vestíbulo do edifício, em lajes de pedra, azuis e brancas e com 200 anos de idade. Na verdade, e para espanto geral, é tido como facto adquirido o cobrimento daquele chão lindo com placas de lioz uniformes, daquelas que se vêem nas estações do metropolitano; por baixo levarão as calhas técnicas habituais e adeus ao chão de antanho. Assim, no melhor pano (uma colecção de alguém com inquestionável bom gosto e uma reabilitação cuidada do que se podia recuperar) cairá a nódoa (um hall com chão de w.c). Não dá para acreditar.
Ainda há tempo para reconsiderarem. Recuar não é passar nenhuma vergonha.
A segunda tem que ver com o inenarrável “televisor” de grandes dimensões, perdão, com o futuro auditório da Santa Casa, projectado por arquitecto de renome (e também bom gosto) para junto da antiga lavandaria do complexo da SCML. Trata-se da sublimação de um princípio bem português e que tem o melhor exemplo na tradicional marquise: não importa o efeito de fora para dentro, desde que não se veja de dentro para fora.
O televisor, perdão, a “máquina fotográfica” revisitada, poderá dar “uma vista única sobre a capital” às cerca de 200 pessoas que por lá estiverem sentadas dentro quando se abrir o diafragma - “um palco que privilegia a paisagem” -, mas a quem apenas a mire do lado de fora, desde as colinas que lhe estão opostas (ou desde os Restauradores), dará uma vista surreal, quiçá cómica, mas completamente adequada ao imenso parque temático em que paulatinamente a cidade se vai transformando. Não há forma de arquitecto e Santa Casa pararem para pensar?
Assim, o ursão de peluche fica em casa.
Fundador do Fórum Cidadania Lx
Bem escrito....e aquela esquina ali na Rua Andrade (oxalá não esteja bem enganado) deixa a impressão de que algo está a mudar? É que tudo seria muito facilitado com 10, 20 bons exemplos Lisboa fora. Agora quem é que se atreve a ficar (e ficar bem) para história da cidade?
ResponderEliminarObrigado, Júlio :-) É isso, bastariam 10, 20 bons exemplos como o que está em marcha para o prédio da Rua Andrade, para tudo mudar, desde logo os projectistas-vedeta. Mas não :-(
ResponderEliminar
ResponderEliminarPois, os projectos vedeta ainda são o PIOR.
Excelente crítica, no verdadeiro sentido do termo.