08/04/2009

Dêem uma esmolinha ao peão

A história resume-se rapidamente. A Carla Castelo da SIC, uma jornalista muito empenhada na causa de uma mobilidade mais humana, fez uma reportagem sobre o martírio dos peões em zonas centrais de Lisboa. Um dos casos envolvia um percurso onde os peões são obrigados a atravessar uma via-rápida (oficialmente a saída da "avenida" dos Combatentes para a "avenida" das Forças Armadas, daquelas onde se buzina quem anda a menos de 70km/h) onde não havia passadeira nem semáforos. O departamento de tráfego da CML não gostou do que viu, e apesar de não haver alternativas pedonais não esteve com meias medidas, e fez pagar o justo pelo pecador: proibiu a passagem de peões. Nova reportagem sobre a insistência dos peões em andar a pé, e pimba! a CML coloca um muro de betão para tentar bloquear os peões.
O ridículo arrasta-se há 3 meses, e esta é a reportagem mais recente:



O que mais me confrange não é não haver passadeira, nem a reacção arrogante da câmara*, é toda aquela zona da cidade e a própria reportagem. Quem vê a reportagem e não conhece o local, nem percebe que se trata de uma zona muito central de Lisboa. O percurso pedonal em causa é o único ao longo da "avenida" que liga Sete-Rios e Entrecampos, locais tão centrais ao ponto de terem feito parte das 11 estações iniciais de Metro há 50 anos. O local está transformado em cruzamento de auto-estradas - perdão avenidas, cheio de viadutos uns em cima dos outros. Não existem quaisquer zonas de passagens para peões, excepto a que foi agora encerrada. Do outro lado da via-rápida não há sequer passeio ou passadeiras. As alternativas mais próximas para peões são a centenas de metros. Toda a zona parece que foi montada de propósito a impedir a passagem de peões e a matar qualquer ideia de cidade humana.

Posto isto e descontando a primeira reportagem onde este caso era apenas mais um exemplo, todas as reportagens seguintes (as quais eu não deixo de aplaudir) resumem-se a um pedido de migalhas para um sem-abrigo faminto. Obviamente que a Carla Castelo tem a melhor das intenções, tal como vários leitores que me chamaram a atenção desta série de reportagens (obrigado!), mas para mim trata-se de um claro sinal da aceitação social da inferioridade do peão na cidade.

*A câmara poderia simplesmente pôr lombas antes do cruzamento. Bem sei que aquela estrada tem perfil de saída de auto-estrada, e as velocidades chegam aos 80, 90. Mas a velocidade máxima permitida ali é 50, o abuso frequente da lei não pode ser usado como argumento para impedir a colocação de lombas que façam ela ser cumprida.

adaptado do Menos Um Carro

6 comentários:

  1. De facto, a cidade retalhada ás postas por estas vias-rápidas; a cidade entregue ao uso exclusivo do automóvel; a cidade adaptada ao banditismo e ao assalto; a cidade descaracterizada e desumanizada; a cidade sem escala humana; a cidade sem poder fazer face á invasão maciça dos automóveis; a cidade que começa pela necessidade de inter ajuda entre as pessoas, completamente desvirtualizada e despida dessa função primeira.
    O estertor da cidade!

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  2. Infelizmente isto não é um caso isolado. Faz parte de uma certa "cultura" de cidade de quem manda. Tão ridículo que até dói.

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  3. É uma chatice isto de haver pessoas que insistem em andar a pé na cidade, é que é má vontade da parte delas!

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  4. basta saber quem é que está como assessor do Salgado... o inefável Reis, que acorda a sonhar com carros, carros, carros, e que só sabe falar de carros, carros, carros...

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  5. É completamente inqualificável esta subserviencia das cidades aos carros.
    Será que a CML acha que repovoar a cidade é trazer carros para Lisboa, é permitir o estacionamento abusivo e a escravidão do peão? Então o trabalho já está feito!
    Em tempos, reclamei junto da CML/Polícia Municipal sobre um conjunto de passadeiras na Rua dos Anjos (junto ao Lisboa Ginásio) que mais não eram que meros lugares de estacionamento e a pronta resposta da CML/Polícia Municipal foi a de que tendo constatado a existência de carros estacionados em cima das referidas passadeiras, verificou-se que não prejudicavam a circulação dos peões, fechando com o comentário brilhante que em Lisboa é habitual isso acontecer.
    Palavras para quê?!
    Luís Rêgo

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  6. Caro Luís Rêgo,
    mais uma triste e lamentável história da inoperância da PM.
    Não quer ter amabilidade de partilhar o parágrafo original da resposta? Acho que vou começar a fazer uma colecção.

    Obrigado

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