26/08/2012

Câmara em risco de pagar milhões por apropiação ilegal de terreno.


Câmara em risco de pagar milhões por apropriação ilegal de terreno
Por José António Cerejo in Público
Dois hectares onde a Câmara de Lisboa fez nó rodoviário são de particulares que os registaram por usucapião. Tribunal pode determinar indemnização de 10 a 20 milhões de euros

Há 20 anos, a Câmara de Lisboa avançou com máquinas pesadas sobre um terreno particular situado junto à Segunda Circular e demoliu as instalações de diversas empresas que aí funcionavam. O espaço tornara-se imprescindível para construir o Eixo Norte-Sul e a autarquia considerou que o seu registo em nome dos particulares era nulo, sustentando que se tratava de propriedade municipal. No final de 2010, passados 18 anos, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu precisamente o contrário: a propriedade é dos titulares do registo e não da autarquia.

Dando seguimento a essa decisão, um outro tribunal ordenou ao município, em Fevereiro deste ano, que devolva aos proprietários os mais de dois hectares de que se apoderou e que têm agora o Eixo Norte-Sul em cima. A câmara lisboeta recorreu entretanto para o Tribunal da Relação, que deverá pronunciar-se nos próximos meses.

A notícia foi dada pelo PÚBLICO em meados de 1990. Em Março desse ano, o empresário Ilídio Ribeiro havia registado por usucapião - forma de aquisição que resulta da ocupação prolongada, pública e pacífica de um bem móvel ou imóvel -, em seu nome e da mulher, um total de 21.395 metros quadrados de terrenos localizados na Azinhaga dos Barros. A parcela, por ele delimitada com um muro e ocupada por uma central de betão e várias empresas de construção civil, fazia parte de uma propriedade com cerca de 56 mil metros quadrados que o município comprara em 1954, mas da qual, por incúria, nunca havia feito o registo definitivo.

Já em 1989, a câmara começou a tentar desocupar toda a zona, para aí erguer o nó de ligação entre o Eixo Norte-Sul e a Segunda Circular, do lado contrário a Telheiras. Porém, as empresas de que Ilídio Ribeiro era directa ou indirectamente proprietário recusavam-se sair, impedindo assim a execução das obras. Em 1992, quase dois anos depois de saber que o empresário registara a parcela em seu nome, alegando que a ocupava há mais de 20 anos sem oposição de quem quer que fosse, a câmara, então dirigida pelo socialista Jorge Sampaio, decidiu desalojar as empresas à força.

A justificação, para lá dos avultados prejuízos inerentes ao facto de as obras estarem paradas há meses, prendia-se com a convicção, expressa pelo então vereador Vasco Franco, de que a escritura que serviu de base ao registo tinha sido feita com recurso a falsas declarações. Isto porque a câmara dizia ter cedido a parcela em 1970, a título precário e para instalação de um estaleiro, a uma empresa de que Ilídio Ribeiro era um dos sócios. Estes, explicava Vasco Franco, tinham mesmo assinado o compromisso de que abandonariam o local, sem direito a qualquer indemnização, logo que a câmara o desejasse.

Foi assim que, em Março de 1992, depois de muitas hesitações e muita ponderação jurídica, a autarquia resolveu tomar conta do terreno e demolir as construções clandestinas aí existentes. Em poucas horas, as máquinas arrasaram a central de betão, a carpintaria e as instalações em que estavam a ser construídas 300 casas prefabricadas encomendadas a Ilídio Ribeiro pelo Governo de Angola. "Agora demolimos e dentro de dias esperamos uma declaração de utilidade pública para o local, que permitirá a continuação da obra", afirmou o vereador.

Câmara perdeu sempre

O problema é que essa declaração de utilidade pública nunca foi emitida pelo Governo e o Eixo-Norte Sul foi aí construído em cima de um terreno que legalmente pertencia ao empresário. Para resolver a situação, a câmara pôs em tribunal uma acção de reivindicação da propriedade. Entre os seus argumentos avultava o de que o registo dos 21.395 metros quadrados era nulo por serem falsas as declarações constantes da escritura de usucapião, mas também o facto de o notário ter permitido a sua celebração sem que os anteriores proprietários fossem notificados, e ainda a alegada aceitação ilegal do registo na conservatória respectiva.

Para lá do reconhecimento de que parcela era sua, o município pedia ao tribunal que Ilídio Ribeiro e a empresa Urbiglobo, por ele detida indirectamente e à qual tinha vendido o terreno quatro meses depois de o ter registado em seu nome, fossem condenados a pagar-lhe uma indemnização não inferior a 50 mil contos (cerca de 250 mil euros), pelos atrasos causados nas obras do Eixo Norte-Sul.

Em resposta, o empresário defendeu a legalidade da aquisição da parcela por usucapião, garantindo que ela era contígua ao terreno camarário cedido em 1970 à empresa de que ele era sócio, mas que não se tratava do mesmo terreno. E exigiu que fosse o município a indemnizá-lo pelos prejuízos causados com a demolição das instalações.

Após um longo julgamento, 18 anos depois, o tribunal decidiu, em primeira instância, que quem tinha razão era Ilídio Ribeiro e que a parcela pertencia à Urbiglobo, uma empresa que não tinha nem tem qualquer actividade ou património. Quanto às indemnizações por danos, nem a um nem a outro elas eram devidas, sendo que, no caso das que foram pedidas pelo empresário, o tribunal entendeu ser justificada a "ilicitude do comportamento" do município ao demolir construções que não estavam licenciadas.

Inconformados, tanto a câmara como os donos do terreno (estes por não lhes ter sido reconhecido o direito à indemnização por danos) recorreram para a Relação de Lisboa, que confirmou a sentença inicial há perto de três anos. O caso acabou por ser decidido, em Novembro de 2010, no Supremo Tribunal de Justiça, com a manutenção do acórdão da Relação e o reconhecimento definitivo de que a parcela onde está o nó do Eixo Norte-Sul é propriedade da Urbiglobo.

Herdeiros em guerra

Uma vez transitado em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a Urbiglobo desencadeou uma acção cível para que o município fosse condenado a entregar-lhe os 21.395 metros quadrados em questão. A 27 de Fevereiro deste ano, a 8.ª Vara Cível de Lisboa decidiu a causa a seu favor, encontrando-se agora o processo à espera de mais uma decisão da Relação de Lisboa, para a qual o município interpôs novo recurso.

Dando como certo que a Relação e o Supremo Tribunal de Justiça virão a manter a sentença da primeira instância, os herdeiros de Ilídio Ribeiro, que faleceu em Fevereiro passado, já fazem contas ao valor da indemnização que a câmara poderá ter de lhes pagar - uma vez que não pode devolver-lhe o terreno agora ocupado pelo Eixo Norte-Sul. Atendendo à sua dimensão, ao local em que está situado e à avaliação das Finanças para efeitos de Imposto Municipal sobre Imóveis, o valor a desembolsar pela câmara poderá situar-se entre os dez e os 20 milhões de euros.

A Câmara Municipal de Lisboa, solicitada pelo PÚBLICO desde Maio a esclarecer a sua posição neste caso, nunca forneceu qualquer resposta. As perguntas que lhe foram dirigidas por escrito há três semanas, nomeadamente sobre a estimativa do valor da indemnização que poderá vir a ter que pagar, também ficaram por responder.

Quem receberá a indemnização, se esta vier a ser paga, é o que falta saber. Os herdeiros de Ilídio Ribeiro desentenderam-se entretanto e nos tribunais já correm várias acções em que as partes disputam, antecipadamente, os milhões que a Urbiglobo vier a receber.
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Um empresário de "toda a espécie de esquemas"
Condenado por oferecer um livro com envelope contendo 2500 euros

Ilídio Ribeiro, o homem que em 1990 registou em seu nome os terrenos da Segunda Circular, que sabia terem sido comprados pela Câmara de Lisboa 35 anos antes, não era propriamente um empresário com boa fama no sector da construção civil. Pelas suas mãos tinham passado, até falecer em Fevereiro deste ano, numerosas empresas que eram formalmente detidas por colaboradores seus, muitas delas sem qualquer actividade, e quase todas actualmente falidas. Serviam apenas, segundo quem o conheceu de perto, para "toda a espécie de esquemas" do verdadeiro proprietário.

A única que se mantém, embora inactiva e sem bens, é a Urbiglobo. Há dois anos chegou a ser administrativamente dissolvida, por iniciativa das Finanças, por não ter entregue declarações fiscais nos dois anos anteriores. A expectativa de ver os tribunais reconhecerem-lhe a propriedade dos terrenos da Segunda Circular, como veio a acontecer, levou todavia Ilídio Ribeiro a regularizar a situação. Várias vezes condenado, nomeadamente por falsificação de documentos e falsas declarações, o empresário foi o protagonista, em 2005, de um caso que levou o Tribunal da Relação de Lisboa a condená-lo a dois anos de prisão, com pena suspensa, por corrupção activa. Motivo? Ofereceu um livro a uma funcionária de uma empresa municipal de Sintra a quem pedira para desbloquear um pagamento devido a uma das suas empresas. O problema é que dentro do livro estava um envelope com 2500 euros e a funcionária denunciou-o por tentativa de suborno. J.A.C.
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Novo registo por usucapião a caminho?
António Costa foi avisado em Maio, mas não se sabe se a câmara já tomou alguma medida

O presidente da Câmara de Lisboa foi alertado por escrito, em Maio deste ano, para o risco de o município vir a ficar sem uma outra propriedade que cedeu em 1983 a uma outra empresa que depois foi adquirida por Ilídio Ribeiro.

A denúncia, que não teve até agora qualquer resposta de António Costa, refere que o terreno em causa se situa na Rua Jorge de Sena n.º 124, na Ameixoeira, e foi cedido precária e gratuitamente pela câmara à Sociedade Portuguesa de Obras de Construção (SPOC), para esta aí "instalar serviços administrativos e secção comercial", no quadro de uma permuta realizada com o município.

O contrato, celebrado no notário privativo do município em Junho de 1983, refere que a câmara autoriza que a empresa "detenha a posse, precária e gratuita" do terreno "pelo prazo de 20 anos". No local, situado nas traseiras do lar da associação Inválidos do Comércio, existem actualmente vários pavilhões prefabricados onde têm sede a SPOC e mais algumas empresas, todas estas sem actividade, que eram igualmente controladas por Ilídio Ribeiro e dependem agora dos seus herdeiros.

A queixa enviada a António Costa lembra que o contrato através do qual o município cedeu o terreno à empresa terminou em 2003, faltando apenas mais alguns anos para que os seus actuais ocupantes o possam registar em seu nome, graças à figura de usucapião. A parcela tem uma frente de uma centena de metros e situa-se junto à estação do metropolitano na Ameixoeira, numa zona cara da freguesia.

A carta enviada a António Costa em Maio termina com uma pergunta: "Permitirá a Câmara de Lisboa e V. Exª que a representa, que sejam exercidos direitos decorrentes da posse prolongada só porque aquela e o sr. presidente não estiveram atentos à situação nem aos interesses dos munícipes?"

O PÚBLICO tentou contactar os herdeiros de Ilídio Ribeiro, mas dos vários escritórios das empresas ninguém responde. O presidente da Câmara de Lisboa, a cujo gabinete foram dirigidas várias perguntas sobre este assunto, também nada disse. J.A.C.

3 comentários:

Julio Amorim disse...

Quanto é que esta embrulhada derivada de leis (oportunidades) da treta....já custou nestes 20 anos ?

Anónimo disse...

Mas são sempre os ladrões que saem a lucrar de esquemas e mais esquemas?

Anónimo disse...

por acaso esta historia dos terrenos do eixo norte sul eu sei que foi tudo um esquema para retirar dinheiro a câmara,cheguei a trabalhar nesse processo a mando do ilidio ribeiro,todas as provas e testemunhas foram forjadas. Mais 10 ou 20 milhoes dados de bandeja...