04/04/2017

Salvaguardar o Bairro de Alfama


Miguel de Sepúlveda Velloso, in Público (4.4.2017)

«Há cidades que já passaram pela onda de demolições que assola Lisboa e que se empenham agora em contê-la.


Esther Mucznik, num recente artigo no jornal Público, considera que o projecto arquitectónico do Museu Judaico de Lisboa deva ser concretizado, bem no centro de Alfama, num dos seus mais belos largos, o de S. Miguel.

Para fundamentar a sua tese apresenta argumentos discutíveis. Envolvidos numa roupagem moderna, algo paternalista, pretendem legitimar e relativizar o impacto de uma irreversível violação no tecido urbano de Alfama.

1 - A autora afirma que a população teria sido envolvida, mas não houve uma verdadeira consulta pública. Uma tela com imagens do futuro museu nas fachadas dos prédios a demolir não pode ser considerado como o envolvimento da população. Quantas telas desse género se habituaram a ver, os lisboetas? Com desenhos e fotografias dos muito conhecidos autores, amarelecidas pelo tempo, de tão vistas, já ninguém se lembrava das obras prometidas e nunca feitas. Uma tela pendurada, não pressupõe uma população informada.

2 – Lembra ainda que o projecto foi aprovado por unanimidade em reunião de Câmara Municipal de Lisboa (CML) e aplaudido na Direcção Geral do Património Cultural (DGPC). Ora, como é sabido, estas duas entidades, por desígnios que os restantes lisboetas desconhecem, tendem a aprovar projectos que desfiguram para sempre largos, ruas, monumentos da cidade. A lista, de tão longa, chega a ser enfadonha, para além de escandalosa. Referirei, contudo, os casos mais recentes: o Palácio da Anunciada, a casa na Praça das Flores, a devastadora ampliação do Bairro Alto Hotel, a que se acrescentam demolições de palacetes, casas populares, edifícios de 1900. Prédios pombalinos são esventrados por toda a Baixa. E desaparece tudo, azulejos, átrios, jardins, mansardas, frescos.

Sempre com o selo da CML e da DGPC. Com a ajuda da sempre facilitadora Comissão de Acompanhamento que aprova tudo o que a ela chega sem acautelar o pleno respeito de dezenas de normas, estabelecidas, pese a ironia, pelas mesmíssimas DGPC e CML, verdadeiros cata-ventos em matéria de património.

Para muitos, este esmagar do património lisboeta até à sua ínfima expressão, não traz qualquer problema desde que a substituição tenha um toque de contemporaneidade, porque as cidades não são estáticas, mas dinâmicas. São-no, de facto, se atropelos deste tipo não condenarem o dinamismo já existente num conjunto urbano secular, vivo e, com toda a evidência, único.

3 - Esther Mucznik acha, ainda, que o diálogo entre contemporâneo e antigo é de saudar e defender. Nada a objectar.

Menciona, entre outros, o CCB, a Torre Eiffel, o Centro Georges Pompidou em Paris, como exemplos imbatíveis da lógica que faz da rejeição passada uma aprovação no presente. A isto chama-se a política do dado adquirido, a qual obrigaria os eventuais opositores a sair de mansinho e sem barulho.

Só que a autora omite os contextos em que essas obras foram surgindo, a Revolução Industrial, ou circunstâncias políticas em que governos pretenderam deixar a sua marca na cidade.

Falando em Paris, lembremos a polémica à volta da demolição, nos anos ’70, dos magníficos pavilhões da arquitectura do ferro, de Baltard, conhecidos como “Les Halles de Paris”, o mercado abastecedor da capital francesa. Fotografados por Robert Doisneau, foram sempre muito caros aos parisienses. No local construíram-se interfaces de transportes e um centro comercial. Em 2002 Delanoe, então presidente da Câmara, referia-se ao complexo como uma selva de betão sem alma. Em 2017, Paris ainda não “digeriu” esse vasto plano visionário que é hoje uma ferida no seu centro.

Há cidades que já passaram pela onda de demolições que assola Lisboa e que se empenham agora em contê-la. Um cuidado que parece alheio às chefias e a tantos que olham para Lisboa como um cenário em branco para a expressão de uma veia autoral que, demasiadas vezes, confunde o acessório com o fundamental.

Neste caso concreto, o fundamental é, claramente, salvaguardar na íntegra o Bairro de Alfama e o acessório é o programa arquitectónico que aí se pretende injectar. Esta é a realidade.»

3 comentários:

J A disse...

Assim é....as demolições em Estocolmo por exemplo são hoje uma raridade. Assim não foi nos anos 50 e 60 onde vastos quarteirões no centro (Klara) foram completamente demolidos. Tudo isso mudou, o que não é o caso de Lisboa. As demolições da década de 60 nas Avenidas Novas...continuam a um bom ritmo. Passados 50-60 anos, por o mesmo caminho vamos.

Anónimo disse...


Muito Bem!

Este projecto do Museu Judaico é um ATENTADO cultural a Alfama e a Lisboa.

Convidamos a Comunidade Judaica a não cometer este erro.

Exigimos à CML que enfrente a realidade, e DESISTA deste projecto e neste local, sem prejuízos financeiros para a Comunidade Judaica.

Anónimo disse...


Já este, infelizmente, já avançou..

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