21/11/2005

A cidade das ideias mortas

É domingo de manhã, domingo de eleições, e, com a Solveig Nordlund, acabo por ir parar aos Coruchéus, aquele simpático jardinzinho mesmo por trás do Vává, entre a Estados Unidos e a Avenida da Igreja, jardim, palácio, ateliers de artista, um café no meio da praça.

A relva está a monte, os espelhos de água sujos, lixo um pouco por todo o lado, cócó de cão, embalagens perdidas, um rapaz aquece a heroína sentado nos degraus do palacete onde pomposa lápide indica “Divisão do Património Municipal”.

Há mais de uma década que não passava pelos Coruchéus, ouvira os rumores de como aquilo se transformara em local de transacção de droga, queixas de moradores, a galeria foi murchando e eu deixei de passar por lá. E, no entanto, ainda antes da Revolução de 1974, o Município ( liderado por França Borges) lançara ali uma ideia ( francesa, à la Malraux) que era bonita e era interessante: um canto da cidade reservado para ateliers de artista, uma cantina comum. E lá estão, formando um L, os belos prédios desenhados por Fernando Peres para 50 ateliers, práticos, bauhausianos, riscados no bairro de casas económicas de salazarenta modéstia e os lagos, e o jardim e um solitária estátua que parece abandonada ali no meio, esquecida. A cantina transformou-se em Galeria e Dulce d´Agro aí inaugurou a Quadrum, que nos anos 70, tantas vezes me fez ir aos Coruchéus, galeria activa, interveniente, provocatória, modelar na sua especificidade, com os melhores dos nossos artistas, o Angelo de Sousa ( foi ali que o descobri, ou não?), o Alberto Carneiro, o Palolo com expoislção admirável, papéis enormes,pendões e uma instalação crucial na sua obra, também foi ali que vi a sempre inquietante, tão feroz Ana Vieira, não foi? Vejam o catálogo de artistas, entre 1973 e 94, 20 anos.

Depois a galeria foi definhando, ao que percebo, na net, (www.galeriaquadrum.com) é agora Cerveira Pinto e a Aula do Risco quem se ocupa daquele espaço. Mas, no domingo 9 de Outubro, o pendão camarário que o vento agitava anunciava uma exposição ( “O Grande Estuário”) que teria fechado em Março passado – e que, ao que suponho, ainda lá está dentro, tanto quanto pude ver.

Um escultor saiu, entretanto, do seu atelier atulhado ( gosto de espreitar o que as portas revelam das vidas) e veio dar migalhas de pão às aves – nenhuma desceu para receber a dádiva. Talvez depois. Quem usa os Coruchéus?

Quem está naqueles ateliers práticos, modestos, rápidos, modernos? Como se tem acesso àqueles espaços camarários? São 50 ateliers. Quem frequenta o café instalado no centro do jardim, local de convívio, espaçoso, luminoso? Quem pinta ao ar livre no pátio onde a relva, desalinhada, cresce e que deveria estar ajardinado, mesmo por trás? Quem deixa esta água podre nos lagos?

Não há crianças que venham brincar neste jardim tão calmo? Nem estátuas para instalarem? Nem festas anuais para visitarmos os ateliers de porta aberta? Nem bailes de belas-artes em Junho, noite fora? Nem conversas?

Os edifícios mostram o desgaste dos anos, a pobreza, a tinta caiu, um ou outro ainda tenta arrebicar-se com umas plantas, a impressão é de desolação, ferrugem, de arrabalde, de abandono, de mistério, desleixo público, porcaria.

E no centro, pimpão, retocado de branco, o palacete ( do século XIX mas fingindo classicismo renascentista numa loggia engraçadinha) onde funciona a Divisão do Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, ironia, maldade, que ideia, com o património ali mesmo, esquecido.

Porque é que Lisboa esquece?

Porque é que este gesto que foi interessante, este projecto de instalar um quarteirão de artistas não avançou, se perdeu, se esqueceu, se deteriorou, se abandonou? Porque é que Lisboa vai deitando para trás tudo aquilo de que em dia bom alguém ( até o França Borges da ditadura!) se foi lembrando?

Estes Coruchéus são uma ideia boa e simples – podiam viver de vida sua, iluminando o bairro, dando luz à cidade. Mas, como sempre, “estão para ali”, ideia abandonada que irá morrer de morte natural perante a indignação de uns quantos – ou continuar a sua modorra sem responder aos desafios que são os seus, entre privilégios adquiridos e desleixo.

Estamos perto do Campo Grande, chove ligeiramente e vamos ver o museu Bordalo que a CML restaurou e reabriu em vésperas de eleições com exposição temporária e tudo.

Sim senhores, bom trabalho.

É bonita a recuperação do edifício, interessante a exposição organizada por João Pinharanda ( que bom voltar a ver estes papéis recentes do Eduardo Batarda, eu gosto cada vez mais do seu lugar singular neste país insensato), o museu tem preocupações didácticas evidentes, vocaciona-se para visitas escolares, cheio de multimédia, computadores, videos – não seria a minha escolha um tão obvio esvaziamento do artístico em troca do informativo, mas está bem e está bem feito.

Por uma bela porta-janela entrevê-se o Jardim do Campo Grande, tão bonito.

Nem se diria que também ele é jardim-lixeira, esgoto da cidade, parece campo, e lembramo-nos das hortas do século XIX.

E saímos intranquilos do Museu Bordalo Pinheiro, com esta pergunta: quanto tempo ficará assim?

Voltam-me à memória os primeiros anos dos Coruchéus, lembro-me de ter pensado bem da ideia, da modernização, da vida insuflada a bairro de residências. Lembro-me de conversas no jardim com a Dulce d´Agro, com artistas, o Joâo Vieira, o Alberto Carneiro, o Alvaro Lapa, era bom ir fumar um cigarro no jardim com o Rui Mário Gonçalves.

Mas Lisboa abandonou, esqueceu, passou a outra. Será sempre, sempre assim? Terá de ser assim?

E caminharemos sempre por esta cidade como se fosse por cemitério de ideias que a vida foi matando, esquecendo?


Jorge Silva Melo

4 comentários:

Anónimo disse...

Ler esta tenebrosa descrição e saber que infelizmente é bem real, foi um murro no estômago. Porque regressei há poucas horas de Barcelona e ainda esta impregnada de beleza, arte, vivacidade que vim aqui perder.
Como disse no meu blogue, antes de partir, vou andar por ali entre janelas que riem e prédios que dançam, numa bebedeira louca de beleza, cultura e arte ...

Anónimo disse...

Ah!, Barcelona!

Anónimo disse...

É verdade mas é preciso saber pq. A inércia da cml é agravada por alguns utentes q conhecem bem a máquina... o enrola enrola vai bem em + de 20 anos p/a alguns artistas que fazem dos ateliers arrecadação, q ñ saem nem dão lugar aos novos, q ñ comparecem às vistorias... e os mandatos são só de 4 anos... Vão lá agora e vejam... Talvez seja desta. Ajudem a denunciar o q p/a ali vai...

Anónimo disse...

Bem, a verdade é que no ano passado me andei a informar para saber como conseguir um atelier nos Coruchéus, para tentar não deixar as minhas vocações para trás (Há já mais de 4 meses que não crio nada...). Necessito de um espaço e devido à restrição dos meus horários, ali seria o local ideal.

Voltas e voltas, contactei a Divisão de Galerias e Ateliers da CML, onde me explicaram que era necessário fazer uma carta, com curriculum e algumas fotos com exemplos do meu trabalho, para me "candidatar" a um espaço. Assim o fiz.

O tempo passou... passou... passou e voltei a contactá-los, onde desta vez me explicaram que a coisa estava demorada, pois estavam a rever o regulamento e outras burocracias mais... ora mais coisa, menos coisa para demorar mais de um ano, talvez dois. Mas, felizmente para mim, vão-me contactar nessa altura quando tudo estiver concluído. Espero nessa altura ainda saber pegar num pincel ou num martelo... Desejo-me sorte.

Peço desculpa pela ironia, mas como não sabiam qual era o processo para se obter um atelier lá, resolvi contar-vos.

P.S. - Também já reparei que há lá muito "artista" que utiliza os ateliers como armazém. - Resta-me chuchar no dedo.