27/04/2009

É a falar verdade que as pessoas se entendem

In Público (27/4/2009)
Por Mafalda Magalhães Barros

«O texto publicado no PÚBLICO de dia 16 "Obras coercivas...desastrosas para as finanças de Lisboa" contém incorrecções que importa corrigir, sob pena de ser transmitida uma imagem que falseia a realidade.
Começa o artigo com uma afirmação do actual presidente da câmara que se queixa das "consequências desastrosas" que tiveram para os munícipes e para as finanças da autarquia as acções de reabilitação urbana desencadeadas num passado recente. Fica no ar a insinuação de que teriam sido apenas executadas obras de fachada com "consequências desastrosas" para aqueles que habitavam os referidos edifícios.

Estas declarações foram proferidas pelo presidente na Freguesia do Castelo, no acto de entrega de casas de um edifício na Rua do Recolhimento, obra agora finalizada, cuja origem remonta a uma empreitada lançada em 2004, pelo executivo de Santana Lopes. A pergunta que aqui coloco é como poderia agora o presidente entregar casas, se as obras então lançadas fossem, como afirma, apenas de fachada?
Para um melhor conhecimento sobre a situação encontrada em 2002 convém esclarecer que existiam, só na referida Freguesia do Castelo, 89 agregados familiares a receberem subsídios para realojamento temporário, em alguns casos desde 1997, aquando da gestão da coligação de esquerda. E que muitos desses subsídios serviram para os beneficiários comprar casa e sair definitivamente da cidade, contribuindo para a sua desertificação. No entanto, entre 2002-05, em consequência das obras de recuperação do edificado levadas a efeito naquele bairro, puderam voltar aos seus fogos de origem 48 famílias, libertando o erário municipal do enorme encargo que suportava com as tais mensalidades.
Continua o artigo com afirmações relativas às "mega-empreitadas" e à dificuldade do município reaver as verbas investidas em obras ditas "coercivas". Ora, aquelas empreitadas, concursos públicos devidamente aprovados pelo Tribunal de Contas, foram lançados tendo como alvo privilegiado os edifícios municipais. Só episodicamente foram incluídos alguns edifícios particulares, sempre que integrados nas zonas abrangidas e que se revelavam em muito mau estado de conservação.
Se o presidente afirma que apenas se reabilitaram 33 edifícios, no âmbito destas empreitadas, no espaço de três anos, esquecendo todas as outras empreitadas lançadas e concluídas naquele período, considerando pouco o trabalho realizado, o que diremos nós se ao fim de quase dois anos de mandato vemos apenas terminadas as obras num edifício... E não é seguramente por falta de qualidade técnica de quantos trabalham na Reabilitação Urbana, pois já deram provas, assim sejam definidas políticas concertadas e haja vontade de as implementar.
Lembro aqui, a título de exemplo, o caso da Rua de S. Bento que beneficiou de uma dessas grandes empreitadas (de cerca de 5 milhões de euros) que envolveu a recuperação de 18 edifícios, sendo 15 municipais, possibilitando que os fogos recuperados no âmbito dessa acção fossem ocupados pelos anteriores locatários, que agora vivem em condições condignas, disponibilizando ainda um considerável número de fogos para outros realojamentos, e que agora tanta utilidade têm tido.
O mesmo tipo de intervenção levado a efeito no Bairro Alto permitiu a recuperação de diversos prédios de habitação, 17 ao todo, sendo 12 municipais, muitos igualmente com fogos devolutos, o que permite agora dispor de uma bolsa de fogos para arrendamento a custos controlados. Lembro ainda as obras de reabilitação da Escola 12, na Rua da Rosa 168, que dotou aquele bairro de uma escola condigna para os seus moradores. E ainda as obras nos edifícios das juntas de freguesia de Santa Catarina (Palácio Cabral, na Calçada do Combro) e de S. Paulo. As obras foram tantas que seria fastidioso enumerar todas...
E se as condições de habitabilidade eram precárias em grande parte destes edifícios, seguramente que as obras não poderiam ser efectuadas com os moradores neles habitando, sobretudo quando se tratava de proceder a consolidações estruturais e de os dotar de condições de salubridade que passavam pela introdução de instalações sanitárias e de renovação total de redes de abastecimento. Fossem as obras só de fachada e tais cuidados não seriam necessários....
Ou será que o presidente considera que se atrai população para as zonas centrais da cidade sem primeiro as dotar de condições dignas de habitabilidade? E não deverá a autarquia dar primeiro o exemplo, conservando o património que é seu e depois exigir aos particulares que também o façam? Ou considera que, em vez de "mega-
empreitadas", é com mega-
assadores de castanhas, como o que colocou no Terreiro do Paço, ou outras acções de carácter populista, como esta, que vai requalificar e atrair moradores para as áreas históricas centrais? A Baixa pombalina merecia melhor...
Lembro apenas que a prioridade atribuída então à Reabilitação Urbana permitiu não só a concentração de meios para a recuperação da habitação nas zonas históricas centrais, como, de igual modo, lançar um programa pioneiro de conservação e valorização do património monumental e artístico que envolveu trabalhos de conservação em 17 igrejas, quatro das quais na zona da Baixa pombalina. É bem o testemunho de uma política que privilegiava a conservação patrimonial como modo de qualificação da cidade, entendida ela própria como portadora de valores estéticos e artísticos, capazes de lhe conferir qualidade e singularidade próprias.
Quanto a uma verdadeira política de reabilitação do edificado que privilegie a conservação em vez da demolição integral, com total perda de interiores e de elementos de interesse patrimonial, estamos certos que bastaria cumprir o que diz o actual PDM, quando define que só se deve proceder a demolições quando os edifícios se encontram em estado de ruína. Não me parece que seja o caso dos edifícios da Rua Rosa Araújo, ou da Av. Duque de Loulé 35, com recentes aprovações para projectos de "obras novas (...) escondidas atrás da manutenção da fachada". Se condena esse procedimento, como é referido no citado artigo, o que até considero louvável, tinha aqui bons casos para pôr em prática essa opção.
Ora, a razia sistemática dos conjuntos urbanos que definiam o perfil da cidade e os modos de construir das suas gentes, a demolição sistemática de interiores, com a consequente perda de valores patrimoniais e o êxodo da população para as áreas periféricas, têm andado a par e foi esse paradigma que combatemos durante três anos.
É que a Reabilitação Urbana entendida como conservação da cidade consolidada constitui uma forma de combater a desertificação dos seus núcleos centrais, de promover a salvaguarda dos valores patrimoniais singulares neles inseridos e um meio de fomentar uma verdadeira política de inclusão social.
E, já agora, porque persistem as incorrecções, a obra do Castelo que o presidente foi inaugurar não estava incluída em nenhuma "megaempreitada" como é referido no artigo do dia 17 p.p. Tratou-se tão-só de uma empreitada lançada para um edifício e, contrariamente ao que o referido autarca diz, tinha projecto de arquitectura, aliás da autoria do então coordenador do gabinete daquela área, funcionário da autarquia. Algum reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pelos funcionários seria seguramente um estímulo ao seu empenho.
Tanta incorrecção revelando tanto desconhecimento sobre estas matérias ou é fruto de desinteresse, ou de simples vontade de intoxicar a opinião pública. É que é a falar verdade que as pessoas se entendem...
Directora municipal da Conservação e Reabilitação Urbana (2002-2005)»

4 comentários:

Anónimo disse...

Reabilitar um imóvel degradado, quando não é o proprietário a fazê-lo, é o "cabo dos trabalhos"; leva tempo (muito), custa dinheiro (muito), obriga a realojamento e a um sem número de procedimentos judiciais que na maioria das vezes não geram resultados visíveis a curto prazo.
Sabendo que os nossos políticos gostam de "obra feita", com "retorno político" rápido, a recuperação das fachadas ("obras de fachada")é muito mais visível e menos dispendioso e permite fazerem um brilharete.
Com o enquadramento existente para a reabilitação, o normal para uma obra de reabilitação (levada a cabo pela Câmara) em um imóvel particular degradado é demorar muito tempo (certamente mais do que um mandato autárquico) e isto não é politicamente vantajoso.
Falando a verdade, a reabilitação urbana deve ser uma opção estratégica (não eleitoreira) e deve ser transversal a vários mandatos e até gerações e não pode ser quantificada pelo número de telas que são estendidas a esconder o aspecto menos estético desses prédios.
É normal que uma obra (coerciva) do tempo do Santana Lopes ainda esteja por fazer e é aceitável se for para fazer bem feito.
Deixo o exemplo do nº 10 da Rua dos Anjos, que ruiu parcialmente no dia 13/12/1995 (salvo erro o Presidente da CML era o Jorge Sampaio), está devoluto desde então e à presente data ainda se encontra entaipado e a aguardar a prometida reabilitação. Serão só constrangimentos legais? Será por falta de dinheiro da CML? É no Intendente, por isso não interessa? Penso que o cidadão nunca irá saber, pois isso é matéria para ser manobrada quando convém.
Luís Rêgo

Anónimo disse...

Um excelente texto da historiadora Mafalda Magalhães Barros, um texto para guardar, estudar e relembrar!
Uma definição de princípios para uma verdadeira política de preservação do património edifificado de Lisboa, e a única que favorece a fixação das populações nos bairros.
CONSERVAR os edifícios e os bairros, não demolir os interiores nem adulterar a identidade estética da paisagem urbana, como desejam os promotores imobiliários e e muitas empresas de arquitectura.
Parabéns, Mafalda Barros, Lisboa deve-lhe muito.

Anónimo disse...

É importante dizer a verdade só é pena vestir a camisola quando lhe convém. Esperomos que alguns erros cometidos no passado e graças a Deus a bom da verdade foram poucos não sejam mais uma vez repetidos.

Anónimo disse...

Além do que disse pelas 6:51, mais dois apontamentos.
A estratégia de salvaguarda do património defendida e aplicada por Mafalda Barros em Lisboa assemelha-se ao notável trabalho desenvolvido pela arquitecta Alexandra Gesta em Guimarães e que conduziu à classificação pela UNESCO. Conservar, Recuperar, Melhorar a habitabilidade sem destruir o interior, para os mesmos moradores.
(quem sabe o seu nome ? tanto uma como outra, ignoradas pela maioria dos Media, cujos heróis são um punhado de arquitectos-gurus)
Obras de Fachada, dizem ´por aí ...
Desde logo se esquecem que as fachadas nesses edifícios são o principal elemento da estrutura. Que essas obras envolveram a recuperação dos telhados, outro elemento estrutural,também a renovação de esgotos e de redes eléctricas,gaz e água, renovação de cozinhas e sanitários, por vezes instalação de ascensores.
Tudo em muito menor tempo e com muito menor custo.
Eu preferia habitar num prédio assim preservado do que noutro com miolo de betão, chão flutuante, fachadas a fingir, modernaço por dentro e máscara antiga por fora, caixilhos de alumínio ou PVC, tudo em em aberrante desarmonia.
E meus caros, casas assim preservadas têm muito melhor habitabilidade (térmica, sonora, disposição), e são até muitas vezes mais seguras (sistema anti-sísmico pombalino, e não fachadas tradicionais apoiadas em betão).
Mas, é claro, darão muito menos lucro aos construtores e empresas de arquitectura ...