30/06/2012

Noites regadas. Portas abertas a excessos dos jovens .




O acesso fácil ao álcool, a “cegueira inconsciente” dos pais e a conivência dos empresários da noite levam os jovens ao limite.


Noites regadas. Portas abertas a excessos dos jovens
Por Pedro Rainho, publicado em 30 Jun 2012 in (jornal) i online
O acesso fácil ao álcool, a “cegueira inconsciente” dos pais e a conivência dos empresários da noite levam os jovens ao limite

A última enchente no Cais do Sodré, Lisboa, foi há poucas horas. Depois de uma multidão concluir a rotina semanal, rumo ao comboio, metro e barcos para chegar a casa, agora, perto de meia-noite de sexta-feira, a circulação faz-se em sentido contrário. Alguns jovens vêm sozinhos, mas muitos chegam em grupo à noite da capital, nos mesmos barcos, comboio e metro. E procuram quase todos o mesmo: álcool. Muito e depressa.

Rui segue pelas ruas de Santos com seis amigos, todos de “litrosa” na mão, ainda envolta em sacos de plástico e com o gargalo à vista, destapado. Têm entre 17 e 18 anos e saem à noite desde os 14. Aprenderam cedo o ditado de pescadores, mas, aqui, aviarem-se em terra significa comprar as garrafas de cerveja em supermercados. Não interessa qual, porque tendo 14 ou 15 anos, nunca lhes foi perguntada a idade ou pedida qualquer identificação. Outras vezes consomem em bares: “É muito mais caro, mas também nunca nos chatearam”, admite Rui, depois de um trago na bebida e antes de seguir pelo passeio para os bares de Santos. Outra alternativa são as lojas de conveniência disfarçadas de pronto-a-vestir, nas zonas mais movimentadas. Legalmente, têm um “bar de apoio”, explica Aurora Dantier, da primeira divisão da PSP em Lisboa e responsável pelas fiscalizações em espaços de diversão nocturna. Mas cai a noite e trocam-se os tecidos pelas “frescas”.

Liberdade
 “Putos bêbedos é cena que se vê com frequência”, garante Ricardo, iniciado há quatro anos nas saídas à noite, na altura com 14. Sentado num banco de madeira de tinta verde gasta pelo uso, o estudante do secundário tem a irmã e o namorado como companhia. Ao lado, pousada no chão, uma litrosa já vazia. Dos bares, lá atrás, chega uma música electrizante que dificulta o raciocínio. Ricardo conhece estas andanças e garante que antes das duas da manhã há jovens completamente alcoolizados na rua. “Nas duas últimas décadas, os adolescentes começaram a beber cada vez mais cedo, mas também se é adolescente mais cedo”, diz ao i o psicólogo Samuel Pombo. “A adolescência precoce pode explicar estes consumos, também eles precoces, que se estendem a outras drogas”, explica o clínico, residente das consultas de alcoologia e toxicodependências do Hospital de Santa Maria.

Esta noite tinha um festival em Lisboa e por isso não haverá tantos excessos na rua. Ainda assim, mais à frente, Miguel desabafa: “Acho estúpido que os miúdos comecem a sair com 12 anos”. Perto de entrar para a faculdade já se mentalizou de que o ritmo semanal de saídas tem de abrandar. Não gosta do que vê na noite, mas admite que “entre os 14 e os 16 anos costumava abusar” e que, no grupo de amigos, os abstémios não se livravam dos rótulos. Miguel sai sem restrições porque os pais têm “confiança” em si. O argumento é recorrente nos jovens interpelados, mas Samuel Pombo fala numa “cegueira inconsciente” dos adultos, que preferem não abordar estas questões e acabam por desconhecer a realidade em que os filhos se movimentam. Ambientes em que se adoptam comportamentos que, para o clínico, representam uma “clivagem comportamental” em relação ao ambiente familiar.

Tudo e Agora
 Há muito que João Nunes deixou de impressionar-se com o cenário que encontra. “Antes, se alguém fosse parar ao hospital por excesso de consumo de álcool era ridicularizado pelos amigos, o que levava a uma certa moderação. Hoje é quase o contrário”, admite o técnico de ambulância de emergência do INEM, depois de oito anos a deparar-se com jovens inconscientes, abandonados pelos amigos e, em alguns casos, deitados sobre o próprio vómito. Pensar nas consequências do consumo excessivo fica para outra altura. Mas as estatísticas dizem quem “20% das pessoas que bebem álcool em excesso têm problemas graves de fígado, o que acontece ao fim de dez ou 20 anos de consumo diário ou, como hoje é frequente, de um modo pesado aos fins de semana”. Armando Carvalho preside à Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado e defende a proibição da publicidade ao álcool, à imagem do tabaco. O problema, sublinha, é que “o nível de impostos que resulta da venda de álcool e do negócio da noite não é despiciente”.

Para Aurora Dantier, alterar a idade mínima para consumo de álcool – intenção expressa pelo governo – é importante, mas “não basta mudar a legislação para alterar esta realidade. Os estabelecimentos e a sociedade civil também se devem mobilizar”, defende. A lei impede a entrada em espaços de diversão nocturna e o consumo de álcool a menores de 16, mas a subcomissária aponta a “conivência” dos responsáveis de bares, discotecas e restaurantes. Samuel Pombo reclama a fiscalização e exorta os pais a abandonar a “relação mais confortável” em que se colocam, para passarem a adoptar uma postura pedagógica. “A utopia de erradicar o consumo não vai acontecer. É no contexto familiar que se aprendem as noções de controlo”, explica.

Fiscalizações
Quando partiu para o terreno, com operações conjuntas entre a PSP e a delegação de Lisboa Centro da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, Aurora Dantier encontrou “muitos jovens alcoolizados e completamente sozinhos, sem qualquer supervisão adulta. Temos um grupo de jovens que não querem saber de escola nem de regras, e sobre quem os pais não têm controlo, e outro grupo, pertencente a uma classe média alta, de menores que estudam em colégios particulares e escolas muito boas, mas que por terem poder de compra consomem grandes quantidades de álcool e partilham com outros”.

A subcomissária reconhece que “há discotecas que se especializaram em abrir para os jovens” e Filipe é disso exemplo. Aos 17 anos é relações públicas numa casa em Santos. Aproveitou a folga para sair com um grupo de amigos e rapidamente admite que no seu turno entram “miúdas de 14 anos e menos”. Dos superiores, a atitude é a de um “fechar de olhos”, porque “as menores podem entrar, mas sem direito a bebidas”. A opção escapa à legalidade, e nem sequer evita o consumo porque, “lá dentro”, garante, “elas compram à mesma”. “Se os pais deixam”, atira, “eu é que vou impedir?”

1 comentário:

Anónimo disse...

O futuro deste país é radioso.