24/06/2012

O dia em que Cavaco Silva pediu civismo aos lisboetas.



O estacionamento em cima dos passeios é uma das mais frequentes manifestações de falta de civismo

Por Ana Henriques in Público

"Dos lisboetas reclama-se um maior cuidado na protecção da sua cidade, uma atitude activa na preservação do espaço público, maior civismo na segurança e na limpeza das ruas", disse o Presidente


Arrepiada, a merceeira que abastece a casa de Cavaco Silva afasta uma mão da outra até ter uns bons 20 centímetros de distância entre elas: "Eram deste tamanho e estavam mortas no chão. As ratazanas devem ter ido comer aos sacos de lixo que se acumularam junto à casa do Presidente." A pacata Travessa do Possolo, onde mora Cavaco, não escapou à avalancha de detritos ensacados na via pública, durante a semana que durou, este mês, a greve parcial da recolha do lixo em Lisboa. "Vivo aqui há 50 anos e nunca vi uma coisa assim. Era lixo por todo o lado", descreve uma reformada, Josefa Guedes. "A porteira do prédio do Presidente teve o cuidado de tirar os sacos de lixo que se foram juntando à porta dele e de os levar para ali mais à frente, para aquele intervalo entre as árvores."
Cavaco parece que adivinhava, mas as suas palavras caíram em saco roto. Dois dias antes de a greve começar tinha feito um apelo no âmbito das comemorações do 10 de Junho, este ano celebradas em Lisboa: "Dos lisboetas reclama-se um maior cuidado na protecção da sua cidade. Uma atitude activa na preservação do espaço público e dos equipamentos colectivos, maior civismo na segurança e na limpeza das ruas, um empenhamento esclarecido na salvaguarda do património histórico e arquitectónico. Sem o contributo e o brio dos lisboetas, Lisboa não cumprirá o seu desígnio de grande capital europeia." 
Maior clareza era difícil. No seu discurso, feito na qualidade de lisboeta vindo do Algarve há mais de meio século, o Presidente insistiu no papel fundamental da cidadania. "Não tenhamos dúvidas: sem a participação activa dos lisboetas, sem o envolvimento permanente dos seus moradores, os autarcas desta cidade não poderão construir uma capital de futuro que respeite e defenda a herança do passado."
E se ao longo dos últimos anos se registaram mudanças positivas na relação dos habitantes da cidade com o espaço público, muito falta ainda fazer no que à higiene e ao civismo diz respeito. À frente da pasta da higiene urbana na Câmara de Lisboa durante mais de uma década, nos anos 90, o ex-vereador Rui Godinho fala da necessidade de construir um sentimento de pertença dos cidadãos ao local onde vivem e trabalham. "Se não deixamos dejectos caninos no chão de casa por que razão os deixamos na rua, que é a casa de todos?", interroga.
Mais do que o lixo fora do sítio onde devia ser colocado, os dejectos caninos são uma das pragas que causa mais irritação a quem tem ou teve responsabilidades na autarquia. "Beatas, dejectos dos cães e graffiti são três coisas que dão à cidade um aspecto miserável", observa o vereador responsável pelos espaços públicos e pela recolha do lixo, José Sá Fernandes. "Todos os dias interpelo cidadãos que atiram cigarros para o chão. É uma coisa inacreditável, feita por todo o tipo de pessoas." No caso dos tags e outro graffiti considerados poluição visual, a única maneira de acabar com o problema é fazer limpezas diárias, advoga o autarca. Só que isso custa dinheiro. Em 2012 vão ser gastos 200 mil euros em operações de remoção das pichagens. "Seria necessário à volta de um milhão e tal", estima Sá Fernandes. "O Presidente tem razão, mas as coisas não se resolvem de um dia para o outro", resume, elogiando o comportamento dos lisboetas durante a greve do lixo: "Muitos guardaram lixo em casa; outros acondicionaram-no da melhor maneira que puderam na rua", à espera de serem bafejados pelo escasso pessoal da recolha que não aderira à paralisação.
"A maior demonstração de falta de civismo de muitos lisboetas é levarem os cães a fazer as necessidades aos jardins onde brincam crianças", aponta o vereador social-democrata Victor Gonçalves. "O que a Câmara de Lisboa devia fazer era vedá-los com gradeamentos e colocar lá placas proibindo a entrada de cães, à semelhança do que acontece em muitas cidades europeias."
Especialista em planeamento regional e urbano, Pedro Costa, do Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa, pensa que a civilidade dos lisboetas é fundamental para o dinamismo e a qualidade de vida na cidade. "Mas não pode ser vista de forma cega e preconceituosa, nem partindo de uma retórica demasiado simplista", avisa. "Será fácil acusar o graffiter que se expressa ilegalmente numa parede da cidade. Mas se calhar o seu contributo para o ambiente cosmopolita, a qualidade de vida urbana e a integração social na cidade será bem mais importante que muitas outras "incivilidades" frequentes dos lisboetas - a do automobilista que deixa o carro estacionado em cima do passeio ou da passadeira; ou a do que pára o carro com quatro piscas no meio da rua e vai comprar o jornal; ou a do condutor do autocarro de turistas que pára no meio da rua a descarregar os passageiros e impede o trânsito na mesma rua todas as noites; ou a dos taxistas que se apropriam de uma faixa na via pública quando a praça de táxis está cheia."
São poucas as vezes em que o comportamento dos automobilistas não vem à baila quando se fala de civismo na cidade. Mas será a responsabilidade exclusivamente de quem se senta ao volante? Ex-presidente da Câmara de Cascais e antigo conselheiro de Estado, António Capucho justifica a "rebaldaria completa do estacionamento em Lisboa", os problemas de limpeza e outras maleitas com os milhares de pessoas que todos os dias chegam à cidade para trabalhar, regressando depois aos arrabaldes. "Às vezes é a própria câmara que dá os piores exemplos", acusa Fernando Jorge, da associação Forum Cidadania, para quem o discurso de Cavaco Silva peca por ilibar o poder autárquico. Explica melhor: "A EMEL [Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa] criou lugares de estacionamento numa zona de calçada à portuguesa da Alameda Afonso Henriques, quando no subsolo existe um estacionamento subterrâneo quase sempre vazio." Para o activista, o "desprezo dos portugueses pelo espaço colectivo" radica numa excessiva valorização da propriedade privada. "Ocupados por estacionamento privado, os largos da cidade são retratos perfeitos da falta de civismo", considera. "E o Presidente da República vem falar em civismo quando fez duas marquises em casa! Ora como cidadão tenho direito a não ver a arquitectura da minha cidade desfigurada. Atribuem este tipo de relação com o espaço público à Europa do Sul, mas a verdade é que em Atenas não encontrei uma única marquise. O desprezo pelo espaço público está ligado ao nível civilizacional da sociedade."
Costuma dizer-se que de pequenino é que se torce o pepino. E o desaparecimento da disciplina de Educação Cívica dos currículos escolares pode ter sido uma oportunidade perdida. Membro do Conselho Nacional de Educação, Emília Brederode Santos lamenta-o. "A aprendizagem do "civismo" é tanto melhor - mais eficaz, mais genuína, mais sentida - quanto mais resultar de uma verdadeira participação de quem aprende nas decisões que lhe digam respeito, directa ou indirectamente. Pode e deve começar muito cedo" na vida de cada sujeito, preconiza, ressalvando, no entanto, que a falta de civismo em Lisboa não será com certeza maior do que no resto do país. António Capucho conta como a Câmara de Cascais passou a contar com a ajuda dos chamados tutores de bairro - uma espécie de interlocutores privilegiados da autarquia para os problemas das zonas residenciais no que concerne à recolha de resíduos e à manutenção dos espaços verdes. Também Rui Godinho fala numa partilha de responsabilidades que envolva os responsáveis políticos aos mais diversos níveis, incluindo autarcas, organizações formais e informais da sociedade civil e cidadãos individuais.
A noite foi de arromba na Bica, como sucede sempre que Santo António inspira os festejos. Da avalancha de copos e garrafas com que a escadaria do bairro ficou pejada, nem sombra na tarde seguinte, apesar da greve: os cantoneiros ao serviço foram mobilizados para os bairros onde os arraiais duraram até ser dia. Ficou tudo num brinquinho. Foi já depois de terem varrido a porcaria toda que um punhado de habitantes reivindicou uma vez mais o seu direito a conspurcar o fundo da escadaria. Voltaram a amontoar os seus sacos de lixo a poucos metros do elevador em que todos os dias centenas de turistas sobem ao Bairro Alto.
No talude verdejante que separa a Travessa do Possolo das traseiras da Infante Santo o chilrear dos pássaros à hora de almoço é acompanhado por um pesado cheiro a fezes. O local é usado por homens e animais para urinar e defecar, aponta uma cliente da mercearia de Cavaco Silva. No impasse entre os prédios através do qual se acede à Infante Santo as moscas volteiam em redor dos excrementos de cão. O cartaz de venda de um prédio acabado de construir anuncia uma Lapa "cosmopolita e tranquila". Mas nem por isso mais limpa que o resto da cidade.

2 comentários:

Julio Amorim disse...

Muitas verdades ditas aqui....mas talvez tirando a história da greve, tudo isto poderia ter sido escrito já em 1982 !?
Desculpem mas já não vamos lá só com palavras...

Xico205 disse...

Os lisboetas tambem pedem civismo ao presidente e pedem para que ele pare de arrotar postas de pescada.

Tanto pede sacrificios e depois fez um estardalhaço com a reforma e disse que 10 mil euros por mês não lhe chegam para viver.

Cambada de hipocritas.

Se não aprovares este comentario é porque tambem tens uma reforma milionária e comes do mesmo prato.