18/07/2020

"Logradouros do nosso contentamento" [Público]

OPINIÃO
Logradouros do nosso contentamento O confinamento pode ser uma janela de oportunidade para a cidade. Mas se-lo-á se se recuperarmos algo que foi elemento fundamental da “cidade moderna”: o logradouro, o público, sem dúvida, mas sobretudo o privado.


Quis o destino fazer coincidir em Lisboa este ano, yin-yang da , a escuridão tenebrosa de uma pandemia, que parece não ter fim, com a luz irradiante de um galardão chamado Capital Europeia Verde 2020 que, ao contrário daquela, terminará impreterivelmente no final do ano. Mas o que à primeira vista seria um flop para a cidade, afinal, poderá ser uma oportunidade a não perder. Uma janela de oportunidade para que todos, lisboetas e CML, mudemos esta forma de viver a cidade e o nosso dia-a-dia sem qualidade.

De facto, se descontarmos algumas peripécias dignas de vaudeville (sim, de facto o Parque Mayer acabou) que têm marcado as “iniciativas” decorrentes do prémio alcançado, como foi terem pintado de azul e verde o alcatrão de duas ruas de Lisboa (sim, de facto já havia outra com o alcatrão pintado de rosa) como statement de que ao passarem a ser pedonais passam a ser pró-ambiente, ou aquela outra iniciativa em que uma exposição-homenagem a um eminente paisagista é rotulada pela CML de iniciativa no âmbito do Lisboa Capital Europeia Verde 2020; e se nos esquecermos do novo-paisagismo anti-árvore pré-existente que grassa pela cidade (vis a vis o que se passa na Praça de Espanha), ou se olvidarmos a contabilidade impressionante de árvores decapitadas ao longo do presente ano (década, século) e de como isso é uma afronta ao estatuto referido, pela simples razão de que sem árvores não há
oxigénio e sem oxigénio não há ambiente nem… vida, por mais que nos pintemos de verde; a verdade é que o confinamento a que a cidade e todos nós fomos obrigados como forma de abrandar a escalada do vírus, pode ser uma janela de oportunidade para a cidade.

Mas sê-lo-á, entre outras coisas, se os transportes públicos forem o que ainda não são (a Carris melhorou a olhos vistos mas o Metro continua a ser o pior da Europa), o lisboeta der preferência à mobilidade suave e à perna em vez de esgotar os neurónios em descobrir um lugar para estacionar o seu carro e queimar dinheiro para sentir o traseiro a tremer (sim, os buracos no asfalto não estão ali por acaso…), e, não de somenos, se recuperarmos para a cidade algo que foi elemento fundamental da “cidade moderna” e da qualidade de vida que então desejaram para nós mas que não descansámos enquanto não matámos: o logradouro, o público, sem dúvida, mas sobretudo o privado.

Basta um pequeno passeio pelos bairros residenciais da cidade (e isto é válido para a Lisboa de Ressano Garcia até aos finais dos anos 40-50, porque a partir daí, de um modo geral, se passou a construir na totalidade do lote) para constatarmos o estado dos logradouros que por aí existem. Há-os para todos os gostos e feitios, deixados à vontade do freguês, à frente das moradias, atrás dos prédios, entre prédios ou quarteirões, e o rol não tem fim, vejam-se alguns exemplos paradigmáticos:

No bairro das vivendas do Restelo, gizado por Faria da Costa e então construídas para os lisboetas de baixo rendimento, o popó parece agora ser o membro da família mais privilegiado, uma vez que tem só para si todo o pequeno rectângulo fronteiro à casa, hoje totalmente empedrado ou pior, mas onde já houve e podia haver de novo relva, flores e arbustos ou árvores, pois foi pensado para tal. Mais a norte, no Bairro das Caixas, em Alvalade, são as traseiras dos prédios de 3 pisos que viram objecto de  vazamento de entulho e pasto para construções ilegais as mais variadas (arrumos com telhados em fibrocimento, galinheiros à la Kusturica, etc.) e na melhor das hipóteses, pseudo-hortas urbanas.

Há muito que a nossa “cidade jardim” é uma pálida imagem do modelo alemão que copiou, vai para 100 anos. E é certo que ninguém está à espera que, de um momento para o outro, mais de metade da cidade de Lisboa, aquela onde os edifícios foram pensados com logradouro, vire réplica das casas Eduardianas de Londres, ou que desatemos a ter concursos florais como, ups, Frederico Daupias promovia no jardim em socalcos do seu chalet da Rua do Arco a São Mamede, há mais de 100 anos… Nem sequer se pode imaginar que nas escadas de incêndio e quintais da Lisboa dos anos 30 e 40 se repliquem as coreografias de West Side Story.

Bastará, isso sim, “apenas”, que seja cumprido e feito cumprir pela CML, promovido, premiado e sancionado junto de todos, o estipulado pelo Plano Director Municipal de Lisboa para os logradouros, sem hesitações e contemplações.

E para isso a CML tem que fazer coisas essenciais, desde logo começar por chumbar todo e qualquer projecto de alterações aos prédios que tenham logradouros ocupados por construções ilegais de antanho, que se proponham fazer construção nova agora legal em cima de algo que tem que ser demolido, desmanchado, arrasado. Ao mesmo tempo, a CML tem que promover campanhas de sensibilização, incentivo, etc., aos proprietários e senhorios de prédios e moradias em que se verifique a ocupação ilegal do logradouro ou a sua impermeabilização contra-natura. Depois, tem que garantir escrupulosamente que se respeitam as taxas de ocupação dos logradouros em prédios novos, previstas do PDM, isso é
elementar.

Se o conseguir fazer, terá aproveitado da melhor maneira a janela de oportunidade que foi este tremendo confinamento, e o que ele significou de usufruto de quintais e jardins de cada qual, que nunca deles se deu conta ou soube aproveitar, mas que agora serviu para relaxar, tomar ar, ler o jornal ou tomar o café durante a manhã, fazer ginástica ao som da professora brasileira tirada da Net, garantir o teletrabalho à sombra de uma nespereira ou tomar uma “mine” ao final da tarde, enquanto se cavaqueia no skype com o amigo confinado mais próximo.

Faça a CML isso e terá aproveitado esta oportunidade única, porque irrepetível quando a ciência descobrir forma de derrotar o vírus, terá juntado o útil ao agradável, à margem de qualquer demagogia e acção de propaganda, terá sido consequente com o galardão alcançado, terá conseguido vencer, por uma vez, a escuridão.

Paulo Ferrero
Fundador do Fórum Cidadania Lx

2 comentários:

Anónimo disse...

Caríssimos,
A Natureza, na sua enorme sabedoria, está a enviar-nos um sinal inequívoco de que o nosso comportamento como espécie, que com outras habita o planeta Terra, não está a ser correto e pode levar-nos a um caminho sem retorno.

Enquanto basearmos a nossa atuação no "crescimento económico", feito à base dos recursos naturais, estamos a laborar num erro, porquanto nem o crescimento económico cresce indefinidamente, nem os recursos naturais são inesgotáveis.

Assim, devemos procurar apenas o que é essencial para a vida, e rejeitar o supérfluo que apenas serve os grandes interesses económicos que criam em laboratórios produtos farmacêuticos, pesticidas e fertilizantes, que posteriormente lançam nos mercados, originando muitas vezes o aparecimento de pandemias e pragas disseminadas por virus e outros agentes, e contribuindo também para o aumento de doenças cancerosas resultantes de experiências que têm por base modificações genéticas e são depois introduzidas nas cadeias alimentares.

Devemos assim, aproveitar o momento presente de tréguas nas agressões sobre a Natureza para a criação de um novo paradigma de cidade em equilíbrio com a natureza, incrementando a criação de jardins, embelezando as varandas, plantando árvores nas ruas e praças, recuperando os logradouros, empreendendo em conjunto com as Juntas de Freguesia um verdadeiro trabalho de embelezamento de todos os pequenos espaços abandonados onde possam crescer plantas.

Dizia-me noutro dia um grupo de crianças que brincavam na rua. João, já há muito tempo não ouvíamos o cantar dos pássaros !

João Pinto Soares

Anónimo disse...

O que têm deixado fazer a Lisboa nestes 46 anos de Democracia não tem qualificação.
Em Lisboa foi existindo no planeamento da Cidade espaços de respiração, onde os logradouros desempenhavam um papel fundamental.
Nestes anos de Democracia esqueceu-se o papel dos logradouros, pequenos ou grandes, como se a Cidade "exorbitasse" do Verde, como se houvesse Parques, Jardins, Bosques, Florestas, Corredores Ecológicos em excesso. Procurem comparar os m2 que cada um de nós portugueses têm, com o que têm os cidadãos de outros países do Norte da Europa e não só, como Curitiba. Despreza-se valores científicos e racionais dos mínimos de m2 que deveríamos ter por habitante na Estrutura Verde Urbana primária e secundária, deixámos que não fossem obrigatórios a feitura dos Planos Verdes. A estrutura ecológica não "faz sentido" nos PDMs e as REN e RAN são um empecilho para este caótico urbanismo que "povoámos" Portugal. Temos já edificado para mais de 20 milhões de pessoas, ao mesmo tempo que ainda temos barracas, prédios em ruínas e quarteirões em que continuam a inutilizar os seus logradouros interiores.
Com este Modelo de ordenamento do território e a vontade de quem gere os PDMs só podemos aspirar a mais conflitos sociais, assimetrias regionais e claro mais condições para o surgimento de pandemias. Uma Cidade precisa de respirar e de ter logradouros.
Porque no projecto de antigamente surgia o logradouro?
Hoje no advento das cidades inteligentes eliminam-se e betonizam-se os logradouros.
Só pode vir a dar mau resultado.
A Natureza é inteligente.