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18/07/2020

"Logradouros do nosso contentamento" [Público]

OPINIÃO
Logradouros do nosso contentamento O confinamento pode ser uma janela de oportunidade para a cidade. Mas se-lo-á se se recuperarmos algo que foi elemento fundamental da “cidade moderna”: o logradouro, o público, sem dúvida, mas sobretudo o privado.


Quis o destino fazer coincidir em Lisboa este ano, yin-yang da , a escuridão tenebrosa de uma pandemia, que parece não ter fim, com a luz irradiante de um galardão chamado Capital Europeia Verde 2020 que, ao contrário daquela, terminará impreterivelmente no final do ano. Mas o que à primeira vista seria um flop para a cidade, afinal, poderá ser uma oportunidade a não perder. Uma janela de oportunidade para que todos, lisboetas e CML, mudemos esta forma de viver a cidade e o nosso dia-a-dia sem qualidade.

De facto, se descontarmos algumas peripécias dignas de vaudeville (sim, de facto o Parque Mayer acabou) que têm marcado as “iniciativas” decorrentes do prémio alcançado, como foi terem pintado de azul e verde o alcatrão de duas ruas de Lisboa (sim, de facto já havia outra com o alcatrão pintado de rosa) como statement de que ao passarem a ser pedonais passam a ser pró-ambiente, ou aquela outra iniciativa em que uma exposição-homenagem a um eminente paisagista é rotulada pela CML de iniciativa no âmbito do Lisboa Capital Europeia Verde 2020; e se nos esquecermos do novo-paisagismo anti-árvore pré-existente que grassa pela cidade (vis a vis o que se passa na Praça de Espanha), ou se olvidarmos a contabilidade impressionante de árvores decapitadas ao longo do presente ano (década, século) e de como isso é uma afronta ao estatuto referido, pela simples razão de que sem árvores não há
oxigénio e sem oxigénio não há ambiente nem… vida, por mais que nos pintemos de verde; a verdade é que o confinamento a que a cidade e todos nós fomos obrigados como forma de abrandar a escalada do vírus, pode ser uma janela de oportunidade para a cidade.

Mas sê-lo-á, entre outras coisas, se os transportes públicos forem o que ainda não são (a Carris melhorou a olhos vistos mas o Metro continua a ser o pior da Europa), o lisboeta der preferência à mobilidade suave e à perna em vez de esgotar os neurónios em descobrir um lugar para estacionar o seu carro e queimar dinheiro para sentir o traseiro a tremer (sim, os buracos no asfalto não estão ali por acaso…), e, não de somenos, se recuperarmos para a cidade algo que foi elemento fundamental da “cidade moderna” e da qualidade de vida que então desejaram para nós mas que não descansámos enquanto não matámos: o logradouro, o público, sem dúvida, mas sobretudo o privado.

Basta um pequeno passeio pelos bairros residenciais da cidade (e isto é válido para a Lisboa de Ressano Garcia até aos finais dos anos 40-50, porque a partir daí, de um modo geral, se passou a construir na totalidade do lote) para constatarmos o estado dos logradouros que por aí existem. Há-os para todos os gostos e feitios, deixados à vontade do freguês, à frente das moradias, atrás dos prédios, entre prédios ou quarteirões, e o rol não tem fim, vejam-se alguns exemplos paradigmáticos:

No bairro das vivendas do Restelo, gizado por Faria da Costa e então construídas para os lisboetas de baixo rendimento, o popó parece agora ser o membro da família mais privilegiado, uma vez que tem só para si todo o pequeno rectângulo fronteiro à casa, hoje totalmente empedrado ou pior, mas onde já houve e podia haver de novo relva, flores e arbustos ou árvores, pois foi pensado para tal. Mais a norte, no Bairro das Caixas, em Alvalade, são as traseiras dos prédios de 3 pisos que viram objecto de  vazamento de entulho e pasto para construções ilegais as mais variadas (arrumos com telhados em fibrocimento, galinheiros à la Kusturica, etc.) e na melhor das hipóteses, pseudo-hortas urbanas.

Há muito que a nossa “cidade jardim” é uma pálida imagem do modelo alemão que copiou, vai para 100 anos. E é certo que ninguém está à espera que, de um momento para o outro, mais de metade da cidade de Lisboa, aquela onde os edifícios foram pensados com logradouro, vire réplica das casas Eduardianas de Londres, ou que desatemos a ter concursos florais como, ups, Frederico Daupias promovia no jardim em socalcos do seu chalet da Rua do Arco a São Mamede, há mais de 100 anos… Nem sequer se pode imaginar que nas escadas de incêndio e quintais da Lisboa dos anos 30 e 40 se repliquem as coreografias de West Side Story.

Bastará, isso sim, “apenas”, que seja cumprido e feito cumprir pela CML, promovido, premiado e sancionado junto de todos, o estipulado pelo Plano Director Municipal de Lisboa para os logradouros, sem hesitações e contemplações.

E para isso a CML tem que fazer coisas essenciais, desde logo começar por chumbar todo e qualquer projecto de alterações aos prédios que tenham logradouros ocupados por construções ilegais de antanho, que se proponham fazer construção nova agora legal em cima de algo que tem que ser demolido, desmanchado, arrasado. Ao mesmo tempo, a CML tem que promover campanhas de sensibilização, incentivo, etc., aos proprietários e senhorios de prédios e moradias em que se verifique a ocupação ilegal do logradouro ou a sua impermeabilização contra-natura. Depois, tem que garantir escrupulosamente que se respeitam as taxas de ocupação dos logradouros em prédios novos, previstas do PDM, isso é
elementar.

Se o conseguir fazer, terá aproveitado da melhor maneira a janela de oportunidade que foi este tremendo confinamento, e o que ele significou de usufruto de quintais e jardins de cada qual, que nunca deles se deu conta ou soube aproveitar, mas que agora serviu para relaxar, tomar ar, ler o jornal ou tomar o café durante a manhã, fazer ginástica ao som da professora brasileira tirada da Net, garantir o teletrabalho à sombra de uma nespereira ou tomar uma “mine” ao final da tarde, enquanto se cavaqueia no skype com o amigo confinado mais próximo.

Faça a CML isso e terá aproveitado esta oportunidade única, porque irrepetível quando a ciência descobrir forma de derrotar o vírus, terá juntado o útil ao agradável, à margem de qualquer demagogia e acção de propaganda, terá sido consequente com o galardão alcançado, terá conseguido vencer, por uma vez, a escuridão.

Paulo Ferrero
Fundador do Fórum Cidadania Lx

22/02/2020

"Tapada, não havia necessidade" [Público]



Tapada, não havia necessidade

Ainda bem que Manet terá pintado o seu Déjeuner sur l’herbe com base no que sentiu aquando da sua passagem pelas Necessidades em 1859, porque se fosse hoje, das duas uma, ou bem que “abria garrafa” no bar mais próximo ou bem que teria de partilhar o atelier em regime de “cowork”.

22 de Fevereiro de 2020, 4:15

A história da Tapada das Necessidades dos últimos 30-40 anos é fácil de resumir pela lengalenga da Primária de antanho, em que se cantava aquele macaco que “de rabo fez navalha, de navalha fez sardinha, de sardinha fez farinha, de farinha fez menina, de menina fez camisa, de camisa fez viola, tum, tum, tum, que…” e hoje é banana.
Parêntesis: daqui se pede desculpa aos ilustres nacionais e estrangeiros que pensaram e fizeram como que nos chegasse até hoje a pequena maravilha que é a Tapada das Necessidades, lindíssimo espaço verde cercado por muro (daí a Cerca inicial), pela resenha sumaríssima de indispensáveis agradecimentos e elogios a O Magnânimo, que a pensou barroca à italiana, a D. Maria II e D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gota (quem mais?), que a mandaram reformar segundo o paisagismo da época e ali fundaram viveiros e uma escola de jardineiros (!), a D. Pedro V, que lhe erigiu a belíssima estufa, e a D. Carlos e D. Amélia, que viriam a fazer a “casa do regalo”, o atelier de pintura da rainha. Uma herança valiosíssima que merecia outros herdeiros, convenhamos.


Não esquecer, também, o Palácio homónimo, então Real, onde reza muita História, entre os reis e altos dignitários dos sete cantos do mundo, que por ali residiram, uns, pernoitaram, outros. E curiosidades as mais diversas, desde logo o bombardeamento republicano que desde o rio tentou acertar em D. Manuel II, que escaparia aos petardos em jogo de gato e do rato, ou, mais recente, a da inexplicável classificação de imóvel de interesse público, quando na realidade todo o conjunto merece ser monumento nacional. Pelo meio, a destruição do Picadeiro Real, em 1974, para as instalações do Instituto da Defesa Nacional. E há poucos meses deram cabo das vistas que do magnífico miradouro fronteiro se usufruía para o Tejo, graças aos dois pisos a mais do novo hospital da CUF, aprovados por engano pela CML. Atente-se ainda no estado deplorável da igreja do palácio e estamos conversados.
Seja como for, a Tapada das Necessidades chegou até nós em relativa autenticidade e não merecia o tratamento à “macaco de rabo pelado” que lhe temos dado.

Com efeito, a memória colectiva pouco ou nada reteve sobre a estima, salvaguarda e conservação que o Estado lhe tem dedicado desde 1979, altura em que o Governo decidiu afectá-la à Estação Florestal Nacional, que a abandonou em 2002 sem que tenha produzido qualquer mais-valia em prol do bem herdado por via administrativa.

De 2002 para cá houve um enxotar de responsabilidades entre entidades públicas, no já tão português “deixa andar”, e os resultados foram: vandalismo, pilhagem, árvores secas, arquitectura da água estropiada, etc. Ou seja, aquilo que já todos vimos em locais idênticos, ex. Paço Real de Caxias, Parque do Monteiro-Mor, Jardim Botânico, Casa da Pesca e por aí fora: esculturas mutiladas, edifícios destelhados, vidros partidos, pedras soltas, azulejos roubados, árvores tombadas, edifícios estropiados, caminhos esburacados, chumbo roubado, mármores quebrados, lagos secos, enfim, só faltava mesmo delinquência e crime, o que viria até a acontecer há poucos anos, com a detenção em 2013 de assaltante-violador a uma jovem que fazia “jogging” junto à entrada norte da Tapada, aliás, uma entrada que não devia existir – por sinal, a única “autoridade” digna de nota no local é não a presença da guarda republicana do palácio vizinho, mas a senhora de idade que, a expensas da Junta de Freguesia, serve de porteira naquela espécie de portaria terceiro-mundista que existe no portão principal da Tapada, no Largo das Necessidades.

Em 2005, contudo, com a afectação da Casa do Regalo pelo Estado à Secretaria-Geral da Presidência da República para nela se instalar o gabinete do ex-presidente da República dr. Jorge Sampaio, chegou-se a pensar que as malfeitorias parariam e a Tapada ressuscitaria. Puro equívoco. Nem fonte nem lago junto ao edifício foram restaurados, água nem vê-la, quanto mais o resto. A única coisa efectiva foi a ampliação do pequeno edifício (projecto do arq.Pedro Vaz, da DGEMN), que, basicamente, deu cabo do encanto daquela pequena jóia.

Nova esperança aquando da assinatura em 2008, pelo então Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e Câmara Municipal de Lisboa, do protocolo de cedência sobre a “Gestão, Reabilitação, Manutenção e Utilização da Tapada das Necessidades”, através do qual o Governo se comprometia a atribuir 300 mil euros à CML como comparticipação nos custos de reparação dos pavimentos e sistema de drenagem da Tapada e limpeza da mata. A CML assumia a responsabilidade de instalar e proceder à manutenção do mobiliário urbano (mesas, bancos, papeleiras e bebedouros); risos. Em 2009, por sua vez, anunciaram-se mundos e fundos via EPAL, para a reabilitação do aqueduto das Necessidades; gargalhadas.

Mas a coisa é séria: até agora o que se vê a olho nu é quase nada, apesar de terem sido gastos entre 2009-2015, pela CML, 337.106 euros (fonte: IMPIC/Base: Contratos Público Online) em ajustes directos com a limpeza da vegetação (38 mil euros à “Parques e Jardins”), obras de conservação e pavimentos (93 mil euros à “Vibeiras”), conservação e restauro do lago circular (38 mil euros à “Marmofixa”), restauro dos elementos pétreos na casa de fresco e estufa (34.700 euros também à “Marmofixa”, obra aparentemente por terminar) e restauro da cúpula da estufa circular (66 mil euros à Soc. Lisbonense de Metalização).

Infelizmente, passados 12 anos sobre o protocolo, é muito pouco, para não dizer que é nada. Mesmo a única obra visível de facto – o restauro da estufa circular – soube a pouco pois logo depois de ser restaurada, já estava com os vidros estilhaçados – pérolas a porcos.

O pio, contudo, estaria para vir:

Aproveitando a oportunidade deixada em aberto no clausulado (alíneas c) e d) da Cláusula Segunda - quem as terá escrito?) do protocolo CML-Ministério da Agricultura, e fazendo ao mesmo tempo letra morta das várias recomendações em sentido contrário produzidas na Assembleia Municipal de Lisboa, a CML aprovou em 2011 (supõe-se que a própria AML o tenha anuído) a abertura de um concurso público para cedência a terceiros do edificado existente na Tapada, com vista à sua reabilitação e exploração, e daí poder retirar a CML receitas para reinvestir na valorização do espaço.

O concurso ficou deserto (eureka!) e avançou-se para uma hasta pública. Desta para a contratualização da empresa Banana Café Emporium, que explora um sem-número de quiosques em Lisboa (Avenida da Liberdade, Parque Eduardo VII/R. Joaquim António de Aguiar, Jardim da Estrela, etc., etc.), mais conhecidos pelos decibéis que emitem e pelas esplanadas abusadoras que implantam do que propriamente com a qualidade do restauro e boa vizinhança que promovem nos edifícios e locais que a CML lhe concede.

Acresce que no caso da Tapada se trata de um jardim muito especial, um jardim de encantamentos, que nada tem que ver com os acima referidos onde o que está a dar é “bombar” som e álcool, porque a Tapada é um espaço para fruição da Natureza, da calma, do silêncio e não com start-ups aos berros, paralelepípedos espelhados pelo terreno ou carros a macularem o espaço e o ar que ali se respira.

Ficam por compreender as razões que levaram a CML a abrir concurso para uma coisa que não precisa de ser concessionada, esse é o ponto. E que por essa concessão se permitam demolições, construções novas, quiosques, “marcas de autor”, multiusos, anfiteatro, centro interpretativo e… ruído, “movida”, muita.

Por que não pode a CML pegar em alguns dos milhões que arrecada anualmente com as receitas das taxas turísticas, por exemplo, e aplicá-los no restauro integral de todo o edificado existente na Tapada? Na recuperação de toda a arquitectura da água ali existente? Na abertura de uma pequena cafetaria, sim, no antigo zoo? Na utilização por ela própria do resto do edificado para as mil e uma oportunidades de espaços didácticos, lúdicos e culturais que ali se podem fazer?

Não havia necessidade de prostituir a Tapada.

Por último, é de registar o actual silêncio e a aparente e estranha resignação das associações dos amigos da Tapada, dos paisagistas, dos jardins históricos, esta última que, por sinal, anunciava em 2004 “o primeiro passo para o regresso da Tapada à glória do passado”.

Ainda bem que Manet terá pintado o seu Déjeuner sur l’herbe com base no que sentiu aquando da sua passagem pelas Necessidades em 1859, porque se fosse hoje, das duas uma, ou bem que “abria garrafa” no bar mais próximo ou bem que teria de partilhar o atelier em regime de “cowork”.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

https://www.publico.pt/2020/02/22/local/opiniao/tapada-nao-necessidade-1904183

05/09/2019

"Tabaqueira: porque descartou Piano a sua reabilitação?" [Público]

Foto: Daniel Rocha

Faz espécie, sim, a lenta agonia por que tem passado aquela estrutura majestosa, aquela majestosa estrutura de ferro e tijolo, aquela que é hoje um dos raros exemplares da arquitectura industrial ainda de pé na cidade de Lisboa.

5 de Setembro de 2019, 6:09


Verdade seja dita que, para muitos, é indiferente o legado arquitectónico, muito menos o histórico, daquela magnífica estrutura, marca indelével da nossa arquitectura do ferro, erguida na década de 20 para a então fábrica de tabaco do magnate industrial Alfredo da Silva (um verdadeiro empreendedor à luz do conceito de Karl Schumpeter), e uma das primeiras unidades industriais do pós-monopólio estatal, que ali laborou até 1963 (nesse ano havia de rumar a Albarraque, nos arredores de Sintra, onde acabou por encerrar passados alguns anos) e que foi responsável pelos “Tabacos da Tabaqueira, Os Melhores do Mundo”, entre eles os célebres “Definitivos”, hoje política e cientificamente incorrectos, e com razão.

Dentro em breve, inclusive, não será de estranhar que a toponímia local (Rua da Tabaqueira, Largo do Tabaco) seja substituída por algo como “silver street” ou “river plate square”, designações mais consentâneas com o espírito da época em que vivemos e prontas a servir a qualquer visto dourado que ali pretenda lavar alguma coisa que não folha de tabaco. Faz espécie, sim, a lenta agonia por que tem passado aquela estrutura majestosa, aquela majestosa estrutura de ferro e tijolo, aquela que é hoje um dos raros exemplares da arquitectura industrial ainda de pé na cidade de Lisboa (recorde-se a destruição massiva de património industrial que ocorreu em Alcântara e na Boavista há coisa de 20 anos, com a demolição completa de vários edifícios e o desaparecimento de máquinas e utensílios os mais variados, alguns autênticas relíquias, realidade que inviabilizará, por certo, a constituição de um hipotético Museu da Indústria; e fique aqui o aviso de que a recente mudança de mãos do complexo hoje conhecido por “Lx Factory” também não augura nada de bom para aquele conjunto de edifícios).

Faz espécie e revolta, mesmo, quando se sabe que os “Jardins de Braço de Prata” foram projectados pelo mundialmente famoso arquitecto genovês Renzo Piano, e que a Tabaqueira estava incluída no seu “projecto global” inicial, digamos assim, embora sendo então entregue especificamente à arquitecta Grazia Repetto, também ela genovesa.

Não se compreende, pois, como é que um arquitecto do prestígio mundial de Piano deixou cair o projecto de reabilitação da sua colega Repetto, de 2002, que é simplesmente magnífico (vide aqui o projecto), para abraçar, recentemente, um novel projecto, aparentemente, do atelier STC, que apenas projecta mais do mesmo: construção e betão.

De facto, pelo projecto magnífico de Repetto, pretendia-se (pretende-se) reabilitar todo o edifício da Tabaqueira como espaço cultural e gastronómico (“La Tabaqueira - Museo del Património Cultural Gastronomico Nazionale Portoghese-Lisbona”), pelo que tudo, mesmo tudo, seria restaurado e reinventado, com gosto e bom senso: espaços comerciais, restauração, jardins, estufas, etc., numa palavra: algo de que vão precisar e muito, os futuros moradores dos “n” condomínios que vão nascer para aquelas bandas (Beato, Poço do Bispo, Braço de Prata, Matinha).

Que se terá passado, então?

Só se sabe que pelo meio houve mudança de proprietário do lote onde se encontra o que resta da Tabaqueira, sendo que durante vários anos, e até há bem pouco tempo, marcou presença na sua ainda lindíssima fachada principal um cartaz com “Vende-se” (na altura era propriedade da EDP…). Sabe-se agora que a CML fez sempre questão em fazer de conta que não via, quiçá contando com a tradicional apatia dos lisboetas para mais tarde declarar como facto consumado o seu desaparecimento total e assim permitir a viabilização do novo projecto já citado.

Pior, em 2010, por exemplo, há registos fotográficos que são inquestionáveis: o edifício estava em muito melhor estado do que está hoje e a sua recuperação teria sido muito menos custosa. Hoje, os vidros das fachadas estão praticamente todos partidos e está corroído ou roubado todo o metal que era possível roubar e corroer, por fora e por dentro.

Pergunta-se: então, não era suposto a CML da 2ª década do século XXI comportar-se de forma mais civilizada do que a das décadas precedentes, em que permitiu que se construísse, sabe-se agora, em terrenos contaminados (por exemplo, a escola da Expo)?

Todos julgávamos enterrado esse período negro camarário de anti-património industrial (vulgo arqueologia industrial), em que edifícios emblemáticos (desde logo a Favorita, em Sapadores) e boqueirões inteiros, becos e travessas onde se localizavam as antigas fábricas de Lisboa, viraram aterros de gravilha, terrenos expectantes de betão e construção, mas nem por isso de melhor qualidade de vida. Enganámo-nos. Redonda e duplamente.

Em primeiro lugar com a CML, porque esta não só perdeu a oportunidade de adquirir para o domínio público o edifício da Tabaqueira enquanto este estava à venda, dando assim bom uso a alguns dos milhares de euros, dos milhões, as receitas da taxa turística cobrada por cada turista que por cá dormita, como ainda não mostrou qualquer simpatia para com o projecto de reabilitação de 2002, projecto esse que, a ser abraçado pela CML, podia fazer a diferença em termos de política urbanística da CML doravante.

Em segundo lugar, e bem mais surpreendente, convenhamos, com Renzo Piano.

Porque ninguém está à espera que um arquitecto do seu gabarito, uma daquelas estrelas da Arquitectura que habitualmente contamos com os dedos de uma só mão, seja indiferente ao Património pré-existente, no caso, seja completamente indiferente ao pequeno mas majestoso e histórico edifício da antiga Tabaqueira, deixando cair no esquecimento o belo projecto de reabilitação que a sua conterrânea fez para ele, e para Lisboa, em Dezembro de 2002. Mais a mais um projecto que complementaria os seus “Jardins de Braço de Prata” de uma forma espectacular.

Signor Arch. Dott. Renzo Piano, a Tabaqueira de Braço de Prata pode ser salva.

Ajude-nos!

Fundador do Fórum Cidadania Lx

12/07/2019

"O futuro do Hospital Miguel Bombarda escreve-se direito por linhas tortas"

A urbanização, o estudo prévio-projecto de seis torres e vários arruamentos que o arquitecto Belém Lima concebeu para aqueles 4,4 hectares, e que a CML apadrinhou oficiosamente, diga-se, terá ido para o … l-i-x-o


Ninguém terá ainda percebido na realidade qual a estratégia de médio e longo prazo, o critério também, que levou a que, de repente, não mais do que repente, o senhor Ministro das Infraestruturas e Habitação, primeiro, em conferência de imprensa e sem muito mais desenvolver, e o senhor Primeiro-Ministro e o mesmo ministro, dias depois e em visita ao complexo do antigo Hospital Miguel Bombarda, anunciassem, a pouco tempo do final do mandato, o compromisso do Governo em colocar um conjunto específico de edifícios abandonados (porquê aqueles e só aqueles?), propriedade do Estado, no mercado de arrendamento, a rendas acessíveis.

Mas, independentemente desses detalhes, há que realçar a prenda, subliminar, que este anúncio representa para todos quantos se importam com o futuro do morro de Rilhafoles, que coroa a chamada Colina de Sant’Ana, e, portanto, com a silhueta de Lisboa, e que é esta:

A urbanização, o estudo prévio-projecto de seis torres e vários arruamentos que o arquitecto Belém Lima concebeu para aqueles 4,4 hectares, depois de o Governo vender o antigo hospital à Estamo, em 2009, por 25 milhões, concedendo-lhe a possibilidade de nele promover uma urbanização, e que a CML apadrinhou oficiosamente, diga-se, terá ido para o … l-i-x-o.

Aleluia!

Que alívio para a vila toscana de San Gimignano, a “Manhattan do medievo”, com a qual o arquitecto teimava em comparar as suas futuras torres, algo só compreensível se se tiver em conta a antiga designação do dito: “hospital de alienados”.

E que boa, excelente, notícia é para todos os que lutaram desde a primeira hora contra essa urbanização, por entenderem que estava em causa a História e o Património da cidade, que seriam assim irremediavelmente amputados.

Desde logo o então o ex-director do Museu de Arte Outsider, a quem a voz nunca doeu nem dói. E o punhado de estóicos e vertebrados sábios de História da Arte, que sempre comungaram das mesmas preocupações, ajudando a espalhar a indignação, que se tornou viral. E a incansável, e até há pouco tempo, responsável pelo núcleo do património cultural do Centro Hospitalar de Lisboa Central.

Mas também os que na Direcção-Geral do Património Cultural souberam e puderam, em boa hora (2010), aceitar classificar como Conjunto de Interesse Público o Pavilhão de Segurança (“panóptico”) e o Balneário D. Maria II, e, em 2014, estender essa mesma classificação ao edifício central do antigo convento, à antiga Casa da Congregação da Missão de São Vicente de Paulo.

E, já agora, a Assembleia Municipal de Lisboa e, certamente, a sua Presidente que, organizando em 2014 uma série de debates sobre o futuro da Colina, trouxe a nu os erros, as omissões e tudo o mais que gravitava em torno do “mega-loteamento” que se cozinhava para os antigos Hospitais Civis de Lisboa a Santana: São José, Capuchos, São Lázaro, Santa Marta e, claro, Miguel Bombarda.

Virou-se a página. Que bom.

Importa agora saber o que se segue e, sobretudo, “como” segue e “quando”, já agora. Ou seja, resta saber:

Quem vai pagar a quem (imagina-se que à Estamo), e quanto, pela encomenda já paga (supõe-se) do estudo prévio da urbanização agora enterrada? E a compensação/indemnização à Estamo pelo facto de já não haver essa urbanização, será feita unicamente por via das rendas que serão pagas por quem vier a arrendar os futuros apartamentos? A sério?

E o arrendamento agora anunciado será implementado em que edifícios do antigo hospital psiquiátrico? No corpo central e nas enfermarias em “poste telefónico” e em “U”? E quais serão os apartamentos para renda acessível? O senhor Ministro disse em entrevista à RTP, em 10 de Julho, que haverá sempre lugar a apartamentos a preços de mercado para compensarem os outros. Resta a saber qual a percentagem de cada qual.

E a CML? Vai deixar de lado o seu propósito geral para toda aquela zona, o denominado Projeto Urbano da Colina de Santana, entregue o atelier Inês Lobo, Arquitetos Lda.? Há um novo mega-plano? Qual? Feito por quem? Pressupõe discussão pública, aquela que não houve antes da AML o ter feito, e bem, por sua própria iniciativa? Vai deixar de ser uma “colina da saúde” para ser uma “colina da habitação”?

E o futuro do Bombarda, implicará demolições? Haverá novas construções, onde? Será escrupulosamente respeitada a classificação da DGPC? Será desta a recuperação e dignificação do Balneário D. Maria II, cujo estado de conservação continua uma vergonha apesar das múltiplas promessas feitas pela Estamo desde há 10 anos a esta parte? E no edifício principal? No salão nobre, no gabinete do dr. Miguel Bombarda?

E o Museu de Arte Outsider? Será autónomo do tal futuro Museu da Saúde (o actual é risível)? Ocupará apenas o “panóptico”?

E a antiga cerca do convento, será esburacada (talvez a experiência na Sé vire moda). E o telheiro, a que ninguém liga? E a belíssima antiga cozinha?

E as oliveiras centenárias, que a CML ignorou classificar, e as outras árvores de grande porte? Vão ser abatidas?

Finalmente, os acessos.

Vai voltar a haver eléctrico? Mais carreiras bus? É que a CML nunca aceitou a proposta que vários lhe fizeram no sentido de fazer no Bombarda o Arquivo Municipal de Lisboa (todo!), acabando-se com a situação a todos os títulos deplorável de Campolide e/ou Alto da Eira.

A CML invocou sempre que, além de não caberem (!) no Bombarda os necessários quilómetros de prateleiras do Arquivo, os acessos seriam sempre péssimos.

Seja como for, o futuro do antigo Hospital Miguel Bombarda escrever-se-á direito por linhas tortas, e isso faz toda a diferença.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

11/01/2019

"O Cais que caiu que nem ginjas" [Paulo Ferrero no Público]

OPINIÃO

O Cais que caiu que nem ginjas

Apelidar de “regeneração” e “qualificação” a algo que se resume a, basicamente, construir em todo o lado onde houver espaço vago neste cais que é hoje de memórias e memoriais à era industrial, é teatro do absurdo.

10 de Janeiro de 2019, 8:31


Onde não estamos é que estamos bem. Já não estamos no passado, e então ele parece-nos belíssimo. (O Ginjal, Anton Tchékov)


O excelso dramaturgo russo autor de O Ginjal (também conhecido por Jardim das Cerejeiras) que me perdoe por o invocar em vão (talvez), assim, sem mais, mas há um drama em fase de ensaio final para o Cais do Ginjal, aqui defronte a Lisboa, ainda que o encenem como uma história de amor redentor, perdão, como “elemento regenerador e qualificador do Património Industrial”.

A peça, intitulada Plano de Pormenor do Cais do Ginjal, é da co-autoria moral e material da Câmara Municipal de Almada, do promotor imobiliário madeirense AFA e do atelier de Samuel Torres de Carvalho, com os primeiros escritos a remontarem há mais de 10 anos, e está quase a estrear em palco, sem ponto, e, que se saiba, com cenários contemporâneos, mas nem por isso minimalistas.

Não que se esperasse que dessem agora em recriar os tempos imemoriais da acostagem dos navios contendores em plena crise de 1383-85, ou as marés cheias, ou vazias, do pós-Terramoto e do milagre que salvou Cacilhas das águas então revoltosas. Mas apelidar de “regeneração” e “qualificação” a algo que se resume a, basicamente, construir em todo o lado onde houver espaço vago neste cais que é hoje de memórias e memoriais à era industrial, é teatro do absurdo, quiçá stand-up comedy.

Sem mais comédias e em pouco palavreado, para quem não esteja a ver muito bem com o que se vai deparar se não houver correcções ao texto e aos números defendidos neste plano, e decidir avançar Rua do Ginjal adentro chegado que esteja ao apeadeiro fluvial, é o seguinte:

A rua estreita e empedrada, a espaços, do cais propriamente dito, onde até há 50-60 anos havia verdadeiras multidões a circular por entre guinchos e postos de amarração, e outras tantas caldeiradas; vai ter o dobro da largura e o paredão será reforçado substancialmente de modo a permitir a circulação automóvel em dois sentidos, e a assegurar a boa circulação dos estimados “1850 veículos/dia”. Pasme-se.

Portanto, no que toca ao primado do peão e das mobilidades suaves sobre o popó, não se vislumbra século XXI neste plano dito de pormenor, antes pelo contrário, até porque ainda se quer construir um silo monumental ao cimo da arriba, com sistema elevatório, de modo a também por aí se escoarem devidamente as estimativas automóveis.

Por outro lado, pensar-se-ia que o essencial do plano fosse a reabilitação dos pavilhões, armazéns e ruínas (muitas, imensas) do longo do cais de cerca de 1km de extensão, quiçá por meio de uma replicação do modelo de sucesso (até ver) da outra margem, um mix entre a Lx Factory e as Docas de Alcântara.

Contudo o que se constata é que a habitação é o mote de toda a operação urbanística para os mais de 80 mil m2 de implantação da área a intervir, e habitação em 2.ª linha, o que implica, obviamente, construção em altura para que todos os novos habitantes possam usufruir de vistas para o rio e para a outra margem. Vai daí, toca a ampliar tudo o que lá existe, esteja de pé ou em ruína.

Por isso, do que se trata de facto é de operação imobiliária em grande escala. E de demolições em barda. Novos arruamentos e muitos prédios novos.

É verdade que também estão previstas áreas para as indústrias criativas, outras para artes e outras ainda para memoriais aos tempos de antanho daquele cais, de fábricas, indústrias, armazéns, barcos, bacalhoeiros ou não, e trabalhadores, muitos trabalhadores. Mas sabe a pouco, muito pouco, e a modas, uma vez que o fulcral do empreendimento é adaptar-se o que existe e construir de raiz para habitação com vista.

Duvida-se, inclusive, que a silhueta e as fachadas dos edifícios de 1.ª linha, em cima do cais, se mantenham como estão, quanto mais as coberturas e acabamentos.

O que não se entende é que a mesma câmara municipal tenha reabilitado sem mácula outra área de Cacilhas, ali bem perto, escassas dezenas de metros por detrás do cais.

O que nunca se entendeu é como o Cais do Ginjal não está classificado de Interesse Público ou Municipal, porque em vez deste que se diz plano de pormenor e não passa de uma urbanização, teríamos, isso sim, um Plano de Pormenor e Salvaguarda, que é disso que se trata: salvaguardar o cais, recuperando-o e re-utilizando-o, mas sem lhe matar a alma ou travestir o corpo. A gula imobiliária não seria a mesma e o cais já não cairia que nem ginjas? Talvez não.

Por falar em sabores e digestões, haverá, por certo, novos e muitos sabores no futuro cais, e por isso mesmo, bastante concorrência aos agora celebérrimos e incontornáveis “Atira-te ao Rio” e “Ponto Final”, pelo que nunca é demais prevenirem-se estes dois na eventualidade de lhes poder vir a acontecer o que sucedeu ao outrora célebre “Floresta do Ginjal” e às suas festas de casamento, que se finaram, ambos.

No horizonte do plano há ainda lugar a mais uma cena, a da “praia do Ginjal”, sobre a qual há-de cair o pano.

Do lado de lá da península, na antiga Lisnave, está também já em ensaios finais a grande urbanização da Margueira, mas não se vê do lado de cá.


Fundador do Fórum Cidadania Lx

27/11/2018

"Uma questão de ponto(s) de vista" [Público]

O PDM de Lisboa faz de conta que salvaguarda intransigentemente as vistas de Lisboa e que pune quem as viola, mas é apenas no papel. Na realidade tudo depende da excepcionalidade, materialidade e oportunidade do momento.

27 de Novembro de 2018, 8:53

Fossem do tempo presente os armadores portugueses de antanho que, a acreditar nas lendas e narrativas, ficavam pespegados no alto de Santa Catarina, em Lisboa, a aguardar pela chegada das naus que d’além-mar traziam as preciosidades e as histórias que alimentavam o país de então, ou, quiçá mais provável, ali estivessem hoje os que durante anos a fio esperaram inutilmente por que D. Sebastião chegasse são e salvo de Alcácer-Quibir, ou, talvez mais verosímil ainda, ali permanecessem os que esperavam pelo regresso da família real portuguesa fugida aquando da ocupação dos invasores franceses liderados por Junot, ou, porque não, ainda mais verdadeiro, ali se aglomerassem as tropas daquele, ficando a ver, incapazes de os alcançarem, D. João VI e a sua corte rumarem mar adentro em direcção ao Brasil; fossem todos eles deste tempo e estariam hoje não a ver paquetes, perdão, navios mas torres de betão, pois nem o Tejo mirariam.

A introdução acima peca obviamente por excessiva (também) no que toca ao próprio miradouro de Santa Catarina, dado que com a altitude deste as vistas que dele se gozam só serão afectadas seriamente se alguém deixar que um dia se construa na Boavista e em São Paulo verdadeiros arranha-céus, porque os prédios recentes da EDP, sendo altos para a frente-rio, e intrusivos no que toca à vista desde o rio para colina, não o são para quem observa o rio desde a colina.

Contudo, noutros locais de Lisboa a situação começa a ser dramática dado as ameaças de facto.

Começando pelo princípio, fiquemos com a definição inscrita em sede de Plano Director Municipal (PDM), que todos juram a pés juntos ser a “Constituição da cidade de Lisboa”: «O sistema de vistas é formado pelas panorâmicas e pelos enfiamentos de vistas que, a partir dos espaços públicos, nomeadamente os miradouros, jardins públicos, largos e praças e arruamentos existentes, proporcionam a fruição das paisagens e ambientes urbanos da cidade de Lisboa.» (artigo 17º).

Mais à frente: «O sistema de vistas tem por objetivos salvaguardar e valorizar as relações visuais que, devido à fisiografia da cidade, se estabelecem entre os espaços públicos e os elementos característicos (….) do a) Subsistema da frente ribeirinha (…); b) Subsistema de pontos dominantes, subsistema de ângulos de visão e subsistema de cumeadas principais, (…); c) Subsistema de vales, onde se estabelecem relações visuais com as encostas e as zonas baixas da cidade (…).»

Mais: «As intervenções urbanísticas localizadas nas áreas abrangidas pelos ângulos de visão dos pontos dominantes, identificados na Planta do sistema de vistas, não podem obstruir os ângulos de visão a partir desses pontos. É exigida a realização de estudos de impacte visual que permitam avaliar e estabelecer condicionamentos relativamente a novas construções, ampliações, alterações de coberturas e outras intervenções suscetíveis de prejudicar este sistema, nomeadamente nas situações em que estão em causa infraestruturas da atividade ou exploração portuária, quando não se dispõe de alternativas de localização (…)».

O texto é imaculado, ou talvez não (por exemplo, nunca são quantificados em graus os ângulos de visão dos pontos de vista, nem nunca se refere mais pontos de vista para lá dos miradouros mais conhecidos…), e não parece haver razões para alarme.

Contudo, também aqui o que parece não é. O legislador municipal esqueceu-se de referir duas coisas: discricionariedade e casuística.

Porque não é verdade, ou melhor, é pura mentira que «As intervenções urbanísticas localizadas nas áreas abrangidas pelos ângulos de visão dos pontos dominantes, identificados na Planta do sistema de vistas, não podem obstruir os ângulos de visão a partir desses pontos.». Tal como não é verdade que seja «exigida a realização de estudos de impacte visual (…)»

Não se entende se para a Câmara Municipal de Lisboa (CML) o sistema de vistas se “resume” às vistas dos miradouros oficiais (Santa Catarina, São Pedro de Alcântara, Nossa Senhora do Monte, etc.), ou se o seu sistema também inclui todos os pontos de vista que se tem desde este ou aquele local, para o rio, para o vale X ou colina Y.

Também não se compreende a existência de facto e presente de tantos atentados às vistas de Lisboa, que resultam de empreendimentos de promotores substancialmente poderosos, assinados por ateliers uns mais conceituados do que outros, mas sempre homologados sem o mínimo pestanejar da tutela.

Começando por uma ponta, e deixando de fora algumas vistas tapadas há já alguns anos (ex. as vistas da esquina da R. Antónia Maria Cardoso com a Vítor Cordon tapadas incrivelmente pelos “Terraços de Bragança”, de Siza Vieira; as agências europeias do Sodré, projectadas pelo arq. Manuel Taínha; o novel Câmara Pestana, do arq. Byrne, mono incontornável das vistas das colinas opostas), vale a pena referir alguns casos ainda em fase de arranque, uns, outros já em velocidade cruzeiro, todos passíveis de correcção:

1. O novo hospital da CUF em Alcântara (projecto de Frederico Valsassina), e que está em avançada fase de construção. Como se pode aceitar que o novo hospital, já de si polémico por mil e uma razões, impossibilite neste preciso momento a vista que se tem para o rio e a Ponte 25 de Abril desde o miradouro Olavo Bilac (Largo das Necessidades)? Um miradouro inscrito no PDM? Diz-se agora que o promotor já terá pago uma coima de 100.000 euros por causa dos andares a mais que terá construído em desrespeito pelo projecto pela CML, mas não se vislumbra qualquer intenção demolição desses pisos a mais.

2. O “muro da Senhora do Monte”, que tem pedido de informação prévia com “homologue-se”. Como é que se pode aceitar que os serviços da CML tenham proposto para homologação um projecto (do atelier ARX) em lote non-aedificandi desde, crê-se, 1931, que aniquila em cerca de 30% o ângulo de visão daquele que talvez seja o miradouro de Lisboa com melhor vista de todas, violando grosseiramente não só o sistema de vistas referido no PDM mas o próprio raio de protecção da Capela de São Gens, classificada de Interesse Público?

3. Os trampolins do Monte, perdão, os “Terraços do Monte”, com projecto do mesmo atelier, que sendo na Rua Damasceno Monteiro, referem-se à Senhora Monte e bem, porque também aqui (obsessão?) se irá dar cabo da vista do miradouro da quota imediatamente acima, desta vez acabando quase totalmente com as vistas para o Martim Moniz, se se alinhar a cércea dos futuros “edifícios miradouros”, como são designados pelos autores, com a do malfadado “Via Graça” (que devia já ter sido cortado, evidentemente, como mau exemplo e caso a não replicar). O caso aqui é também estranho no que toca ao próprio terreno, porque, aparentemente, terá sido doado à CML por privado, ao que julga com fins de benfeitoria, passou à EPUL para futuro estacionamento automóvel nunca realizado, e agora aparece na carteira de propriedades de promotor francês bem conhecido em Lisboa.

Por falar em investidores franceses e em pontos de vista em vias de serem estragados, um 2x1: as obras de ampliação em curso no Palácio de Santa Helena e em vias de começarem para o antigo Hospital da Marinha, e ambos com projectos de arquitectura do atelier STC-Arquitectura, ou seja, e respectivamente:

Quem passar a pé pelo Largo do Siqueira deixará de poder ver o rio como via, pois o muro lateral nascente do empreendimento em curso, que, basicamente, desfigurou o palácio e o seu pátio (mais isso é outro assunto…), subiu e agora só um “homem com 3 metros de altura” é que o poderá fazer.

Da mesma maneira, se for avante o que a CML aprovou para o local do antigo cemitério da capela do Paraíso, mesmo ao lado do mono que “Faz Figura” (basicamente, alinhará as cérceas deste com o edifício de transição onde funcionou até há poucos meses uma escola), não só a Rua do Paraíso virará inferno, como quem subir ao miradouro da cúpula de Santa Engrácia encontrará uma série de estanhos prédios novos a taparem a vista para Santa Apolónia, e vice-versa, bem entendido.

E, last but not least, o tal anfiteatro em forma de televisor panorâmico que a Santa Casa encomendou a Souto Moura para as traseiras da Misericórdia. Um “brinquedo” que desfigurará as vistas que de toda a cidade a nascente da Avenida da Liberdade se disfruta actualmente para a colina de São Roque.

Resumindo e concluindo, o PDM de Lisboa faz de conta que salvaguarda intransigentemente as vistas de Lisboa e que pune quem as viola, mas é apenas no papel. Na realidade tudo depende da excepcionalidade, materialidade e oportunidade do momento, e dos vários actores em presença, o que em nada abona à pretensão camarária de classificar “Lisboa Histórica, Cidade Global” como património UNESCO.

No que concerne aos pontos de vistas, bom, “é giro, pá” avistar-se um paquete ao fundo da Rua do Alecrim.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

in https://www.publico.pt/2018/11/27/local/opiniao/questao-pontos-vista-1852562

27/10/2018

"Reabilitação à Santa Casa: 5 aplausos, 1 “nim” e 2 reclamações" (Paulo Ferrero no Público)

Paulo Ferrero



Já vão longe (e são já 520 anos) os tempos da fundação da Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia pela Rainha D. Leonor, “por boas causas”, pelo que, compreensivelmente, a estas se terão juntado ao longo dos séculos muitas outras causas, umas melhores, outras piores. Chegados aqui é um facto que as actuais receitas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) provêm essencialmente do jogo, ou seja, de um vício (fortuna e azar), para muitos o pior de todos.

Seria por concessão de outra rainha, D. Maria I, que a SCML passou a deter a exploração da lotaria, primeiro, para já no século XX se lhe juntar uma panóplia de jogos digna dos velhinhos “juegos reunidos“ dos anos 60, mas, ao contrário destes, com efeitos sérios na bolsa dos viciados: totobola, raspadinha, euromilhões (estará eventualmente por contabilizar o número de imóveis pertencentes hoje à SCML, que, ao invés do que aconteceu no passado em que os mesmos lhe eram doados, serão fruto do “confisco” por dívidas de jogo).

É natural, portanto, que a “área de negócio” da SCML seja hoje muito mais do que o Bem Comum, a acção social se quisermos. Consequência disso mesmo é a aposta evidente na reabilitação urbana, não só dos imóveis (imensos) que já eram seus em Lisboa, e que ruíam (e muitos ainda ruem) a olhos vistos, mas dos que passaram e vão passando a ser seus por operações de permuta e até de compra. Uma reabilitação urbana que não se cinge apenas à Economia Social, portanto, mas também alastra ao mercado do imobiliário. É por isso também natural que a SCML surja agora associada a fundos imobiliários fechados e compita, ombro a ombro, em muitas ocasiões, com a Câmara Municipal de Lisboa (CML), por exemplo, em estratégia de reabilitação, em staff, em número de projectos e em volume de negócios.

O mundo mudou e a SCML também tinha que mudar. Não é pecado.

Assim como não é pecado, de modo nenhum, saber recuar.

Vem isto a propósito de um punhado de projectos recentes em que a SCML esteve muitíssimo bem, ao saber reconhecer o erro e ao corrigir a trajectória antes que fosse tarde demais: um prédio na Rua Andrade, o Palácio Portugal da Gama (conhecido agora por “Palácio de São Roque”), o Palácio dos Marqueses de Tomar (ex-Hemeroteca de Lisboa) e o Convento de São Pedro de Alcântara.



Abra-se aqui um parêntesis para elogiar um outro feito recente, aliás ainda em curso: a reabilitação da Quinta Alegre com intuito social e cultural inter-geracional, e que envolve o restauro cuidado do Palácio do Marquês de Alegrete e do jardim apenso, classificados de Interesse Público e situados na Charneca do Lumiar, propriedade da Santa Casa desde 1983 e que, regra geral, eram totalmente desconhecidos do grande público. Só pelo facto de ter passado a haver visitas periódicas, o aplauso à SCML é ainda mais merecido.

Voltando à narrativa, e à coragem da Santa Casa em recuar antes que o mal fosse feito, vale a pena discriminar caso a caso, começando pelo fim da lista referida, agora por ordem da importância de cada um:

Em 2014, vários foram os artigos de imprensa que deram conta da futura transformação do antigo Convento de São Pedro de Alcântara e das meninas órfãs em “ponto focal” da oferta de lazer à noite boémia lisboeta. Temeu-se uma sequela do vizinho Colégio dos Inglesinhos, desta vez não para condomínio, como aconteceu na Rua Nova do Loureiro, mas para um complexo de lojas e restaurantes. Abrir-se-iam vãos, portas e montras para a rua, haveria muito vidro e muita caixilharia em alumínio.

O convento entregue pelos frades de São Francisco à SCML em 1833, passaria a ser assim uma espécie de centro comercial “in”, com esplanadas, comes e bebes, lojas e alguns escritórios da instituição (só para quebrar o impacto negativo). Azulejos, muitos azulejos, muitos deles pombalinos, seriam removidos, nomeadamente de salões e corredores, e da cozinha. Curiosamente, este “projecto” mereceria honras de propaganda em magazine televisivo da especialidade (leia-se do imobiliário).

Pois passados que estão 4 anos sobre as más previsões, e estando as obras a chegar ao fim, o mau presságio ter-se-á dissipado e do “programa de festas” faustosamente anunciado já pouco restará, senão nada, quer por fora quer por dentro. O complexo do antigo convento parece imaculado no seu branco acabadinho de pintar, e não se vislumbra qualquer montra ou novo vão. Do resto só se sabe que o conjunto vai “integrar dois níveis de ocupação: um de utilização mais restrita, com zonas de caráter institucional, designadamente para serviços e realização de eventos; e outro de utilização pública, para possibilitar que todos possam visitar este belíssimo edifício do património histórico lisboeta".

Bravo. Bolinha para a Santa Casa

Algumas centenas de metros mais abaixo, eis os palácios vizinhos colados um ao outro: o dos Marqueses de Tomar, vulgo Hemeroteca de Lisboa, e o Portugal da Gama, comercialmente rebaptizado “Palácio de São Roque” – é já um outro vício muito nosso o darmos novos nomes a quem já os tem.

Independentemente da necessidade evidente de obras no edifício da Hemeroteca de Lisboa, há muito reclamadas (lembremo-nos da “charmosa” cobertura em zinco que o palácio manteve por cima do seu telhado durante anos a fio, pelo menos vinte!), e descontadas as questões laterais sobre o destino a dar àquela hemeroteca, é com bastante regozijo que se regista a informação que dá conta do recuo da SCML na previsível destruição da “sala de fumo” do palácio, que é forrada a couro e brasonada, bem como da escada que liga esta à cozinha e da própria cozinha.

Com efeito, sempre foi evidente que para a instalação do depósito da Biblioteca Brotéria na parte do palácio voltada à Rua do Grémio Lusitano, e ao contrário do que era defendido no projecto apresentado à CML logo após a cedência do palácio, não era necessário destruir nem uma nem outra.

Nova bolinha para a Santa Casa, que terá bem aceitado o protesto feito em 2015.

Passemos ao palácio que lhe está colado, que tem frente para o Largo Trindade Coelho e que era mais conhecido, diga-se de passagem, não tanto pela riqueza patrimonial do seu interior, mas por albergar na então loja do piso térreo o atelier do insigne decorador Lucien Donnat.

Também aqui a Santa Casa recuou e fez bem em recuar. O que foi apresentado, e colocado em telão exterior, até há 2 anos como um projecto de reabilitação do “Palácio de São Roque” para abertura de alojamento local (“short rental”), é agora transformado em espaço museológico, de exposição de parte da colecção de Francisco Capelo, desta vez a sua vertente asiática (será a futura “Casa Ásia”).

Mais uma bolinha para a Santa Casa, por optar pela abertura de um museu em detrimento de mais um albergue sofisticado, a juntar às resmas deles que já existem e se atropelam Chiado adentro.

Mudando de coordenadas e indo até à Almirante Reis pela “street view” da Google, aterra-se no Bairro Andrade e na sua rua mais importante, a Rua Andrade (para quem não se recorde, este bairro situa-se imediatamente abaixo do Bairro das Colónias e deve o seu nome a Manuel Gonçalves Pereira d’Andrade, que o mandou construir em finais do século XIX, tendo depois passado a ser propriedade da CML).

Falo do n.º 2 da Rua Andrade, que faz esquina com a Rua Maria da Fonte e é propriedade da SCML. É um dos mais belos e ainda originais, pormenorizados e mais bem construídos exemplares lisboetas da arquitectura dita de transição, já teve como inquilinos (e proprietário) Anastácio Gonçalves e uma das mais belas lojas históricas de Lisboa (“Cafeteira d’Ouro”), e ostenta desde há pelo menos 15 anos (!) uma placa com aviso prévio de projecto de alterações.

Para este edifício, de grande valia decorativa e construtiva, volto a frisar, a SCML apresentou em 2009 um projecto de alterações bastante intrusivo e que iria descaracterizá-lo por completo, numa palavra: mau. Que foi aceite pela CML. No entanto, de lá para cá tomou a Santa Casa consciência do mal que daí adviria para o património histórico da cidade, e eis que em 2017 apresentou novo projecto à CML, deitando o outro ao lixo. Desta feita mantém-se o edifício praticamente na íntegra, recupera-se tudo, apenas se alterando as casas de banho e alguns detalhes não significativos.

Lisboa reganhará para o seu inventário um edifício que não merece estar como está nem merecia o que se preparavam para lhe fazer. "O prédio manterá o seu uso habitacional e após conclusão das obras, as frações reabilitadas serão para arrendamento".

Nova bolinha para a Santa Casa. Linha. Coluna.

Abra-se aqui novo parêntesis para o estranho caso da construção alienígena (talvez projectada por idólatra de arquitectura brutalista pós-soviética), aprovada pela CML para quatro edifícios centenários sitos no gaveto da Av. Casal Ribeiro com a Rua Actor Taborda, primeiramente apresentada sob a forma de loteamento (de 2007) e depois já sob projecto de alterações, ampliação com demolição.

Imune aos variadíssimos protestos contra a destruição dos quatro prédios, a SCML acabaria por vender os imóveis em Janeiro de 2017 a uma empresa privada, que, eureka, decidiu “manter a identidade histórica dos edifícios, não apenas as fachadas, mas também muito do interior”. Ou seja, o projecto foi para o lixo.

Viva o novo projecto, apesar de estarmos perante mais um daqueles casos em que, provavelmente, o restará no fim serão as fachadas, vide “Desejamos assegurar a manutenção da fachada e reabilitar aquilo que se pode manter no interior, embora haja partes que estão muito degradadas, algumas em colapso estrutural”. Face ao estado geral da cidade, já chegámos a um ponto em que “antes assim do que assado”, ou seja, do mal o menos.

Fechado o parêntesis, e para finalizar, duas reclamações, que a serem aceites pelos destinatários, permitirão à Santa Casa gritar BINGO:

A primeira diz respeito à vontade do arquitecto autor da reabilitação em curso no Palácio Portugal da Gama, em fazer cobrir (!) o magnífico chão de pedra do vestíbulo do edifício, em lajes de pedra, azuis e brancas e com 200 anos de idade. Na verdade, e para espanto geral, é tido como facto adquirido o cobrimento daquele chão lindo com placas de lioz uniformes, daquelas que se vêem nas estações do metropolitano; por baixo levarão as calhas técnicas habituais e adeus ao chão de antanho. Assim, no melhor pano (uma colecção de alguém com inquestionável bom gosto e uma reabilitação cuidada do que se podia recuperar) cairá a nódoa (um hall com chão de w.c). Não dá para acreditar.

Ainda há tempo para reconsiderarem. Recuar não é passar nenhuma vergonha.

A segunda tem que ver com o inenarrável “televisor” de grandes dimensões, perdão, com o futuro auditório da Santa Casa, projectado por arquitecto de renome (e também bom gosto) para junto da antiga lavandaria do complexo da SCML. Trata-se da sublimação de um princípio bem português e que tem o melhor exemplo na tradicional marquise: não importa o efeito de fora para dentro, desde que não se veja de dentro para fora.

O televisor, perdão, a “máquina fotográfica” revisitada, poderá dar “uma vista única sobre a capital” às cerca de 200 pessoas que por lá estiverem sentadas dentro quando se abrir o diafragma - “um palco que privilegia a paisagem” -, mas a quem apenas a mire do lado de fora, desde as colinas que lhe estão opostas (ou desde os Restauradores), dará uma vista surreal, quiçá cómica, mas completamente adequada ao imenso parque temático em que paulatinamente a cidade se vai transformando. Não há forma de arquitecto e Santa Casa pararem para pensar?

Assim, o ursão de peluche fica em casa.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

10/10/2018

"Era uma vez um pombalino à UNESCO" [Jornal Público]

OPINIÃO

Era uma vez um pombalino à UNESCO



A breve trecho, pelo que se vê e mais virá, a Baixa será um imenso pombal de prédios híbridos, plastificados, colorizados, brilhantes, falsos, com figurantes e bonecos, de fazer inveja ao mais infantil dos parques da Disney.


A história da candidatura da Baixa Pombalina à UNESCO parece uma novela “para inglês ver”, um soap ao melhor jeito de “EastEnders”, por exemplo, tal o imenso rol de produtores, argumentistas e protagonistas que já teve ao longo dos últimos 15 anos, desde que, em Janeiro de 2004, foi feito pela CML de Santana Lopes o pedido de inclusão da dita na lista indicativa nacional para candidatura a património mundial, elaborada em propositura tentativa e preliminar a partir das preocupações genuínas (de muitos) e materializadas em reflexão, digamos assim, nas Jornadas Públicas organizadas pela mesma CML em Outubro de 2003.

Relendo o documento de 2004, saltam à vista curiosidades as mais variadas, como, por exemplo:

O que andaram a fazer à época, e até à sua futura extinção, coisas como a SRU Baixa-Chiado ou a Unidade de Projecto da Baixa Chiado?


Como é possível escrever-se que está “garantida a protecção e a salvaguarda” do Terreiro do Paço e da quase totalidade da Baixa, só porque o primeiro é Monumento Nacional desde 1910, e a segunda Imóvel de Interesse Público desde 1966 (convertida em Conjunto de Interesse Público em 2012), com as sucessivas alterações, ampliações, demolições, adaptações que foram sendo feitas a um sem-número de edifícios pombalinos, desde logo pela mão dos bancos que foram fazendo o que bem quiseram aos mais variados prédios. Quantas gaiolas pombalinas foram desfeitas? Quantas abóbodas? Quantas escadas? Quantos saguões? Quantos azulejos? Quantas mansardas? Quantos corta-fogos?

E como é possível dizer-se isso do Terreiro do Paço quando foi (e é) o próprio Estado (CML incluída) a dar o mau exemplo ao longo de anos e anos? Nas janelas abertas pela própria DGEMN no telhado do edifício do Martinho, nos inenarráveis anexos e na destruição de interiores nos corpos do Ministério do Ambiente e da ATL?

Ou, ainda, que o Animatógrafo do Rossio estava protegido porque classificado, quando o que dele restava já em 2003 era uma fachada, alterada, por sinal, pouco tempo depois …

Chegados a Dezembro de 2011, foi então anunciada pela CML, já com António Costa, uma nova temporada da série: “a Câmara vai retomar candidatura da Baixa Pombalina à UNESCO”. Adiantava o então vice-presidente Manuel Salgado que o processo iniciado em 2005 não avançara porque era necessário garantir "uma proposta muito forte", que só então poderia avançar, musculado que fora pelo Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina, formalmente aprovado em Março do mesmo ano e fundeado nas conclusões do Comissariado da Baixa Chiado (não confundir com a estação de metropolitano Baixa-Chiado) criado pela CML em 2006, com Carmona Rodrigues, com o objectivo de pôr gente capaz a discutir e concertar o futuro da dita, a qual, pobrezinha, deixou de estar preservada pela autorização legal de apenas se autorizarem obras de conservação e restauro nos edifícios (uma preservação em clorofórmio, diga-se, porque a CML nunca foi capaz de obrigar os proprietários a cumpri-la) para poder ser mexida e remexida, por dentro e fora, desde que se adaptasse aos projectos urbanísticos e não estes a ela. Disse ainda na altura que a candidatura surgia no âmbito da “estratégia de reabilitação urbana” aprovada pela CML e posta a “sufrágio universal”, em mais uma daquelas fases de discussão pública obrigados por Lei mas que no fim se resumem, do lado dos serviços, a reunir em relatórios de ponderação as participações do público, rebatendo-as uma a uma, para que nada de importante chegue a ser alterado ou corrigido, conforme os ingénuos do costume pensaram que podia ser.

Uma estratégia de reabilitação urbana assente, como já se imaginava, na contaminação do modelo em grande força até aí no Chiado, assente em duas premissas: a reabilitação sob a forma de alteração de uso para hotel, e a reabilitação sinónimo de construção nova com manutenção de fachadas (principais). Foi engraçado, mas nem por isso objecto de oposição por quem de direito, por exemplo, ouvir-se em Fevereiro de 2014, do então já só vereador Manuel Salgado, a consideração de que “era uma hipótese interessante” a inclusão de Bairro Alto, Bica, Alfama, Castelo e Mouraria na candidatura da Baixa, quando na altura decorria já a aprovação das alterações significativas aos planos de urbanização daqueles Bairros Históricos (perdão, graças ao PDM de 2012, toda a cidade é “cidade histórica” …), permitindo, mais uma vez, a contaminação do “modelo Chiado”, hoje à vista de todos de forma generalizada.

Novos episódios se seguiriam até 2016, uns mais picantes do que outros, altura em que o Comité do Património Mundial da UNESCO validou a candidatura “Lisboa Histórica, Cidade Global” à Lista Indicativa de Portugal a Património Mundial na 41.ª reunião que decorreu na Polónia, na cidade de Cracóvia, e com ela a candidatura da Baixa Pombalina (agora pomposamente apelidada de Lisboa Pombalina, acrescida que foi de uns pozinhos do lado poente, São Paulo acima) que por ela foi engolida. De lá para cá, silêncio. Talvez esse silêncio se resuma a uma coisa: trata-se de um “soap”, como tal é pura ficção televisiva.

A realidade é outra e está ao virar da esquina:

Ruas em que é hotel, prédio sim, prédio sim. Adeus interiores pombalinos, adeus Mardel, olá fachadas com azulejos reluzentes e portas e janelas em alumínio, olá pisos em mansardas de zinco e coberturas sem telha ou terraço. Adeus comércio antigo, que a vida não está para artes novas, mas sim para novas artes, como a de enganar o próximo, ou de como lucrar milhões com taxas e receitas no mais curto prazo possível, recorrendo ao mercado dos autores de prestígio e a comissões técnicas de apreciação.

Grave, porque pela Lei seriam nulos todos os actos administrativos que infringem o disposto da Lei de Bases do Património (n.º 107/2001) e o Plano de Salvaguarda, ou seja, seria nulo tudo quanto de intrusivo foi aprovado em prédios que não estavam em ruína iminente, sendo apenas permitidas alterações pontuais. Mas não é isso que acontece desde há anos.

E não nos enganemos: está por um fio o Pombalino que resta em Lisboa.

Senão veja-se:

O quarteirão pombalino quase intacto, e ainda com vestígios pré-pombalinos (segundo os arqueólogos), da Praça de São Paulo, passeio poente e com frente para o Sodré, e já apenas com alguns locatários, tem sobre ele o cutelo de um projecto de alterações conducentes a hotel (Proc. n.º 941/EDI/2018), do arq. Samuel Torres de Carvalho, que, a ser aprovado, implicará, para lá da destruição dos espaços comerciais pós-pombalinos, já iniciada, a destruição da actual compartimentação interior dos apartamentos, a alteração significativa das mansardas, corta-ventos incluídos, por via da reformulação da cobertura para abertura de restaurante panorâmico e criação da recepção do hotel no último piso (uma inovação digna da web summit).

Outro quarteirão pombalino, mas não tanto como o anterior, o “quarteirão da Suíça”, que já teve vários projectos e vários promotores, qual deles o pior, mas todos eles travados por qualquer razão (o projecto de hotel dos anteriores donos este em tribunal vários anos por via dos inquilinos, por exemplo), aparece agora com obra iminente, não se percebe muito bem para quê nem como, mas já temos como adquiridos dois factos: aqueles azulejos dignos de w.c., que foram colocados do lado da Praça da Figueira e da Rua da Betesga vieram para ficar (apesar de violarem grosseiramente o tal Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa…), e vamos ficar sem várias lojas das mais antigas de Lisboa (espera-se que estejam a salvo, pelo menos, a Pérola do Rossio e a Ourivesaria Portugal, agora que se perdeu, não a pastelaria, mas a “marca” Suíça).

Falando ainda de quarteirões, idem idem, aspas aspas, no caso do edifício pombalino da Rua da Conceição dos n.ºs 79-91, edifício constante do celebérrimo Cartulário Pombalino, mas que é mais conhecido por albergar “só” as retrosarias Arqui Chique, Bijou e Nardo (todas Lojas com História) e a perfumaria antiquíssima Alceste, um edifício de valor inquestionável, com belos interiores, registados por técnicos da CML, o que para o autor do projecto (arq. José Saraiva) vale zero, segundo se depreende da memória descritiva e justificativa do mesmo.

Se a isto juntarmos o que se anda a preparar no Palácio Pombal, na casa onde o próprio nasceu, na Rua do Século, bom, estamos conversados sobre o interesse e o reconhecimento em vigor por quem de direito pelo legado de Sebastião de Carvalho e Melo a esta cidade. Neste caso, não só se apupa a falta de empenho da CML (e do Estado já agora) para com a evidentemente mais do que justa compra da totalidade do imóvel que nunca aconteceu (recorde-se que o palácio está “dividido” em três: a principal e mais conhecida é propriedade da CML, por legado da família, e nela estiveram já vários inquilinos, e nem por isso deixou de ser saqueada e de apresentar carência urgente em obras de conservação e restauro, mas também estruturais; a segunda estava adstrita à Escola Superior de Dança, mas foi recentemente comprada por quem tinha já comprado a terceira parte do palácio, que dá para a Rua da Academia das Ciências), e com ela a evidente incapacidade estratégica para com o futuro do palácio como se protesta pela recorrente tentativa da CML em querer vender o mesmo sempre que pode, hipótese que a todos deve merecer veemente repúdio.

A desolação é generalizada e quase total por toda a Lisboa (e não só … em Oeiras, a famosa Casa da Pesca, inscrita no conjunto classificado de Monumento Nacional e propriedade do Ministério da Agricultura, está a cair aos bocados!), e muita coisa desapareceu recentemente e está em vias de desaparecer fora da Baixa, nas imediações da Avenida da Liberdade, no Bairro Alto e na Lapa (veja-se o que estão em vias de fazer ao edifício da Rua do Meio à Lapa, nº 50-58: é aterrador pensar que o querem demolir, um edifício que é um dos originais do aforamento setecentista que ocorreu no interior da cerca do convento das Trinas do Mocambo!).

De facto, dá vontade de rir sempre que alguém com responsabilidades vem falar em candidatura da Baixa Pombalina à Unesco.


A breve trecho, pelo que se vê e mais virá, a Baixa será um imenso pombal de prédios híbridos, plastificados, colorizados, brilhantes, falsos, com figurantes e bonecos, de fazer inveja ao mais infantil dos parques da Disney.

Pombalina é que não será de modo nenhum e, portanto, andam a entreter-nos com uma candidatura de faz-de-conta, há demasiado tempo.

Ah, de acordo, estamos a falar de “EastEnders”.

Fundador do Fórum Cidadania Lx

https://www.publico.pt/2018/10/10/local/opiniao/era-uma-vez-um-pombalino-a-unesco-1846795












24/09/2018

Paulo Ferrero: "Arquivo Municipal de Lisboa, ainda sem eira nem beira" (Público)

Paulo Ferrero

"O Arquivo Municipal de Lisboa “tem como missão recolher, guardar, tratar e preservar a documentação relativa à memória da cidade; promover a gestão integrada dos documentos produzidos pela Câmara Municipal de Lisboa desenvolvendo produtos e serviços de informação com o objetivo de satisfazer as necessidades das partes interessadas” e “é um organismo de excelência na promoção e implementação de boas práticas de gestão documental integrada”, diz, e bem, a CML.

Diz ainda, mas aqui já não dá para acreditar, que o Arquivo “ambiciona ser uma referência para organismos da mesma natureza”. E a culpa de não se acreditar não reside na falta de competência(s) ou de entrega ao serviço público dos técnicos e chefias que compõem a Divisão de Arquivo Municipal, o Departamento de Património Cultural ou a Direcção Municipal de Cultura; as sucessivas tutelas imediatamente abaixo do vereador respectivo, no caso a vereadora da Cultura, e, em última instância, do próprio presidente da CML. Não será por eles – técnicos e chefias intermédias – que o Arquivo Municipal continua a ser o que é: um tesouro sem eira nem beira, esquartejado que está administrativa e burocraticamente (arquivos intermédio, histórico e fotográfico, hemeroteca), e apesar dos muitos procedimentos organizativos e ferramentas de trabalho empregues pela CML na sua modernização, e que ajudarão, não se duvida, a manter e a recuperar (espera-se) os milhões de documentos que aquele tem à sua guarda (e que constituem a prova real do que tem sido Lisboa a nível urbanístico, designadamente pelo valioso espólio a nível fotográfico e documental, em papel e digitalizado, de plantas, alçados e projectos os mais variados e referentes a edifícios, espaço público, mobiliário urbano, etc., etc.

Não se compreende, por isso, que o Arquivo Municipal de Lisboa continue por centralizar e dignificar em termos de espaço físico e local, ou seja, edifício e centralidade, ou seja, continue a ser um parente pobre, uma não prioridade em termos das grandes opções de quem dirige os destinos da cidade tendo por horizonte temporal o médio e longo prazo.

A situação é ainda mais revoltante quando se vai até ao lado de lá da estação de comboios de Campolide, nas caves de um edifício do Bairro da Liberdade, para se consultar determinado volume de obra do Arquivo Intermédio (arriscando levar com chuva na sala de leitura...), ou quando se ia ao arquivo liliputiano e sem condições no Bairro do Arco do Cego.


Ou quando se soube do despejo da Hemeroteca do Palácio dos Marqueses de Tomar, só porque sim (no caso para que o edifício ficasse livre para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), e vai daí a Hemeroteca foi de bolandas “provisoriamente” para umas instalações da CML nas Laranjeiras.

Pior se fica agora quando se ouve dizer que a CML pretende fazer regressar o Arquivo Municipal às torres do Alto da Eira, às célebres torres que há muito deviam ter sido implodidas e os seus moradores realojados em edifícios de que Lisboa se orgulhasse. Inacreditável.

É tempo de a CML no seu conjunto, mas acima dos demais o seu presidente, assumir como prioridade do seu mandato o Arquivo Municipal de Lisboa, tal como o fez no aumento de áreas pedonais e na criação de ciclovias no “eixo central” que vai da Avenida da República ao Marquês de Pombal, por exemplo, ou na aposta da retoma dos eléctricos como meio de transporte público de eleição e na efectivação do Lojas com História.

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De preferência, evitando-se a tentação de novas construções, como foi o caso da megalomania que em tempos se gizou para o Vale de Chelas, que iria dar mau resultado e de que se abdicou na hora certa.

De preferência, aproveitando-se edifícios, ou complexos de edifícios, que sejam propriedade da CML ou do Estado (Parpública e Estamo incluídos).

E que sejam edifícios notáveis e por todos conhecidos, com corpo e alma suficientes para a dignidade que a missão, o serviço e a funcionalidade exigem. Edifícios com dimensão mais do que suficiente para os quilómetros de prateleiras necessários, que se localizem na Lisboa central e sejam de fácil acesso.

E, tão importante quanto o que já foi dito, edifícios que pelo seu novo uso signifiquem boas práticas da reabilitação urbana que se deseja em Lisboa, e que permitam externalidades positivas em toda a vizinhança, recuperando habitantes, resgatando comerciantes, atraindo serviços e, porque não, turistas.

Não se precisa de inventar nada, apenas copiar o que de bom já outros fizeram com os seus arquivos municipais: recorde-se o que fizeram em Valladolid, instalando o arquivo num antigo mosteiro; em Madrid, aquando da reconversão de uma fábrica de cerveja; ou em Amesterdão com a antiga sede de um banco.

Dito isto, pergunta-se: em termos de edifícios públicos, haverá melhor solução do que o antigo Hospital Miguel Bombarda?

Trata-se de um complexo de edifícios que pertencem ao Estado, designadamente à Estamo, estão devolutos e a degradar-se ano após ano, sobre os quais paira a especulação imobiliária pura e dura, estando esta à espera da concretização de uma operação de loteamento anunciada há tempos aos quatro ventos, mas que convém anular, sob pena de vermos aquela colina ser coroada de torres imensas a imitar San Gimignano (!), com arruamentos interiores, automóveis em barda, etc.

Trata-se de um conjunto de edifícios notáveis na sua esmagadora maioria, mas em risco de sofrerem alterações profundas, pese embora a protecção administrativa de que alguns deles usufruem por força da classificação de interesse público em boa hora assegurada pela Direcção-Geral do Património Cultural (edifício do antigo convento, pavilhão de segurança e balneário D. Maria II).

São edifícios que toda a gente conhece. Estão bem localizados. Na cidade histórica. Numa zona (a chamada Colina de Santana) muito degradada, crescentemente despovoada e com cada vez menos comércio. Uma zona que importa reabilitar!

E só os edifícios das antigas enfermarias em “poste telefónico” e em “U” chegam e sobram para albergar toda a documentação do Arquivo Municipal de Lisboa, além de que este poderia ainda utilizar parte do edifício do convento.

Acresce que o Arquivo, ao instalar-se ali, juntamente com o Museu de Arte Outsider (actualmente circunscrito ao Pavilhão de Segurança, mas que pode e deve ser futuramente alargado a algumas zonas do antigo convento), o fabuloso Balneário D. Maria II), será um polo cultural e cívico de interesse mais que municipal, nacional.

Espaço livre não falta, ar puro e árvores também não. Há ainda outros edifícios de interesse patrimonial à espera de reabilitação e fruição, como o telheiro da autoria de José Nepomuceno (autor do celebérrimo Pavilhão de Segurança), o pequeno e curioso edifício da antiga morgue e imponente e invulgar cozinha, que dará um espaço de cafetaria de fazer inveja aos museus da Rede Nacional de Museus.
E que bom seria que a par disto se apostasse na reabertura da linha de eléctrico entre o Martim Moniz e Campo dos Mártires da Pátria...

Dito isto, fica um último apelo à Câmara Municipal de Lisboa e ao seu presidente: é tempo de tomar a peito a questão do Arquivo Municipal de Lisboa e fazer dele uma causa de um ou dois mandatos!"

https://www.publico.pt/2018/09/23/local/opiniao/arquivo-municipal-de-lisboa-ainda-sem-eira-nem-beira-1844921