A alternativa-mãe de todas as
propostas está na mudança de paradigma.
Artigo de Opinião – J.Delgado Rodrigues, Público de 10
Abril 2014
No final da sessão de debate realizada na Sociedade de Geografia
no passado dia 29, um dos assistentes apontou aos organizadores a necessidade
de preparar alternativas para rebater a política oficial que se está a montar
na Colina de Santana, em Lisboa. A mesa respondeu, com algum espanto, que não
entendia a questão, pois muitas tinham sido as propostas apresentadas durante
aquela sessão. Mas esta questão alertou-me para o que aí vem, no que vai ser a
luta dos cidadãos de Lisboa para preservar o património cultural desta área da
cidade.
Quando
as massas se ousam opor à corrente dominante, elas recebem sempre a mesma
provocação: e que alternativas têm para apresentar? E, quando se apresentam, o
tratamento segue sempre um padrão comum: se forem variantes sobre as propostas
oficiais, podemos conversar; se são verdadeiras alternativas, então serão
classificadas como propostas irrealistas. E como vai ser assim na Colina de
Santana, precisamos de estar preparados para destrinçar entre “variantes” e
“propostas alternativas”.
Na Colina de Santana, a corrente oficial é protagonizada pela
Estamo, que se propõe desmembrar as antigas cercas conventuais, hoje
estabelecimentos hospitalares, para delas fazer espaços de loteamentos a serem
urbanizados para apartamentos de luxo. As propostas de loteamento submetidas a
parecer prévio da CML têm como objectivo a criação de habitações em imóveis
construídos de raiz, para o que necessitam de programas extensivos de demolição
de todas as construções ali existentes, poupando apenas as poucas que já têm
estatuto de património classificado. As cercas, que são unidades territoriais
com um passado histórico muito relevante, começam por ser desqualificadas para
meras “unidades cadastrais” no documento de estratégia da Estamo, para em
seguida serem desmembradas e retalhadas nas propostas elaboradas pelos
gabinetes de loteamento e urbanização.
E isto é feito, apesar de os documentos elaborados a pedido da
própria Estamo conterem páginas e páginas a demonstrar o relevante património
cultural que está materializado naquelas cercas conventuais/hospitais, e de
serem inúmeros os estudos independentes que listam valores estéticos,
históricos, científicos e sociais/espirituais associados àqueles lugares.
Neste contexto, assim sumariamente descrito, o que são
“variantes” e o que serão “alternativas”?
Variantes – que a Estamo agradecerá – podem incluir a retirada
de um andar ou dois em cada lote, no limite mesmo a perda de um lote completo,
deixar mais um museu, se for feita muita força para isso; prescindir do
estatuto de luxo num certo número de fogos (os tais 25% que a assembleia municipal
exige) vai ser argumentado contra, mas no final será aceite. Com um pouco de
imaginação, encontraremos um bom punhado de outras variantes “realistas”,
verdadeiras propostas construtivas, no sentido literal e figurativo da palavra.
E onde estão as alternativas? A alternativa-mãe de todas as
propostas está na mudança de paradigma. Em vez de uma estratégia de
loteamento/urbanização, precisamos de uma estratégia de preservação da
significância cultural das cercas conventuais/hospitais da Colina de Santana.
Reconhecidos que estão valores culturais tão diversificados, que
os cidadãos de Lisboa atribuem a estes espaços, e sendo eles marcos tão
relevantes da história, da ciência e da cultura de Lisboa e do país, é quase
obsceno pensar que tudo aquilo se pode reduzir a lotes distribuídos a esmo,
reduzindo a preservação do património construído à manutenção de umas poucas
peças descontextualizadas, remetidas para reminiscências anedóticas, sem o
mínimo de respeito pela integridade e autenticidade daqueles espaços culturais.
Uma política de preservação – a alternativa – deverá partir do
reconhecimento da significância cultural daqueles espaços e da agregação dos
contributos que identificam e definem os valores culturais que a suportam.
Depois deste primeiro e decisivo passo, o caminho é claro, bastando buscar
inspiração nas cartas internacionais e na experiência de países civilizados,
como a Austrália com a sua Carta de Burra, a English Heritage, ou em
recomendações produzidas por instituições como o Getty Conservation Institute.
A Direcção-Geral do Património Cultural, que tem no seu seio gente que bem
conhece estas práticas, deveria ser a primeira a proclamar alto e bom som: “Os
terrenos das antigas cercas conventuais da Colina de Santana não podem ser
desmembradas em loteamentos para construção de habitações.”
Uma política de conservação não significa imobilismo, nem
conservar tudo em formol, como os detractores desta linha de actuação já
começaram a qualificar, mas sim a procura dos usos, ou das restrições ao uso,
que melhor permitam preservar os valores culturais identificados. Simples e
directo. Uma política que siga o princípio da intervenção mínima, para assim se
preservar o máximo!
A política de loteamento/urbanização que a Estamo quer ver implementada
é um crime de lesa-património e de lesa-cultura. Uma pura operação de
especulação imobiliária, tirando partido da conversão de espaço cultural em
terreno urbanizado fortemente valorizado, com mais-valias de dimensão
gigantesca e de destino mais do que duvidoso. A dimensão deste crime social
pode ser bem ilustrada na feliz imagem que o eng.º Vítor Cóias apresentou
naquela sessão. Para permitir os loteamentos previstos pela Estamo, os entulhos
resultantes das demolições de construções hoje existentes nas cercas
conventuais/hospitais dariam para encher um número de camiões que, em linha,
ocupariam as duas faixas da Marginal, entre Lisboa e Cascais.
Esta será a dimensão da destruição de património cultural do
país que a Estamo se prepara para executar. E assim será, se os lisboetas, e os
portugueses em geral, não reagirem a este atentado cultural.
Geólogo, investigador (ap.)
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https://www.youtube.com/user/gecorpa/videos
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