22/03/2008

"É difícil explicar porque gosto tanto da Baixa"


in DN 22-3-2008

FERNANDA CÂNCIO

António Campos Rosado. Toda a vida preferiu aquele bocado de Lisboa, mas só em 2005 se mudou para lá. Agora é presidente da Associação dos Moradores da Baixa: para defender as pessoas e o sítio. E desfazer clichés sem sentido
O lugar que toda a gente decreta "sem vida" e "moribundo" tem afinal sortilégio que chegue para, antes de todas as operações de reabilitação anunciadas e de todos os planos concretizados, atrair gente como ele. "Porque é que gosto tanto da Baixa? É difícil de explicar. Há um lado de sintonia com o espaço que tem a ver com ser amplo e luminoso. Se não tivesse a poluição sonora e atmosférica causada pelo excesso de tráfego, daria vontade de parar e respirar fundo. Há uma certa liberdade ali."

Artista plástico, gestor cultural -foi director do centro de esposições do Centro Cultural de Belém entre 2006 e 2007 e director dos pavilhões temáticos da EXPO'98 -, comprou em 2001, ao fim de muitos anos à procura, um espaçoso primeiro andar na Rua da Madalena, com condições para se tornar, além de habitação, atelier. O preço da paixão que desde menino nascido no lisboeta Bairro Azul tem pela Baixa começou a pagá-lo logo aí: quatro anos se passaram antes de conseguir utilizar a sua propriedade. A licença de habitação e de requalificação do espaço, as vistorias necessárias, a aprovação de projectos pela autarquia e pelo Instituto do Património Arquitectónico, para além das obras propriamente ditas, levaram longos quatro anos. Em alguns momentos, António Campos Rosado deve ter dito mal da sua vida e da ideia de ser proprietário de uma parcela da "sua" Baixa. Mas não só não desistiu como resolveu entregar-se a outro trabalho de Hércules, o de "fazer alguma coisa" pela zona. Com vários outros proprietários, resolveu agitar a fossilizada associação de moradores. Fizeram uma lista e ganharam as eleições. Desde 19 de Fevereiro, a direcção é composta por ele, pela professora universitária Isabel Coutinho, e pelo arquitecto Vicente Manuel Gião Roque, entre outros. A sua vivência quotidiana da Baixa permite-lhes não só chamar a atenção dos responsáveis autárquicos para "pormenores" como o do acumular de matérias orgânicas devidas ao excesso de pombos nos saguões (que, diz Campos Rosado, pode adquirir contornos de perigo para a saúde pública) como para a ocupação desses espaços com a maquinaria associada aos restaurantes, que não só dirige os fumos de exaustão para as casas e pulmões dos habitantes dos primeiros andares como os impede de descansar devido ao barulho dos motores. Dois aspectos para os quais foi alertado, numa reunião tida há dias, o vereador do urbanismo Manuel Salgado, que dirige a "operação" Baixa Pombalina (cujas primeiras medidas foram aprovadas esta quarta-feira na Câmara). "Para manter os moradores na Baixa e atrair mais é preciso criar qualidade de vida", certifica Rosado. Para tal, aponta "coisas muito básicas" (que até agora, vá-se saber porquê, não foram feitas por ninguém) melhoria ou criação de equipamentos fundamentais para os moradores - como creches, escolas, centros de saúde, etc - e de actividades comerciais essenciais, como as ligadas à alimentação, nomeadamente de frescos ("A Baixa é enorme e tem pouquíssimas lojas que vendam produtos desses"), assim como a resolução de problemas de limpeza e ambientais como os da recolha de lixo reciclável, do estado dos pavimentos e da qualidade do ar, assim como a redução do ruído. "Enquanto não se resolver a questão do trânsito em excesso, dificilmente haverá melhores condições na Baixa. Pela poluição atmosférica e sonora, mas também pela ausência de estacionamento à superfície para habitantes", diz o presidente da Associação de Moradores. "Por outro lado, há ruas em que nem sequer se pode parar um táxi, como a do Ouro e a da Prata. Uma pessoa não pode ir às compras e trazer os sacos do supermercado até à porta. É ridículo." Outra coisa ridícula, comenta, é repetir que a Baixa está morta comercialmente. "Não está de todo. Há uma série de marcas e lojas a mudarem-se para aqui. A Zara tem duas lojas enormes na Rua Augusta, a H&M instalou-se na Rua do Ouro... Há comércio que funciona muito bem. E é muito importante manter uma série de lojas tradicionais, como as retrosarias. Um dos encantos essenciais da zona é essa diversidade."
Foto: vista de uma casa remodelada na R. da Madalena

3 comentários:

Miguel Drummond de Castro disse...

Mas estas jornalistas andam alevantadas em oráculos e aúgures dos povos - esta frase da F. Câncio a propósito da Baixa " o lugar que toda a gente decreta "sem vida" e "moribundo" tem afinal sortilégio que chegue (...)" é excessivamente peremptória.
Por mim nunca pespeguei na parede os meus desencantos e tristezas citadinas em relação à Baixa nem subscrevi um decreto desses - e a Baixa teve sempre vida e encanto, luz e paisagem, perspectiva infinita e renovada, além de excelentes restaurantes, cafés, animação e universos por todo o lado, não só na rua dos Douradores. Não sei por onde andam, mas não devem andar muito a pé. Tant pis. Que se há de fazer? Não me proponho reformar a perna autista, que mirrará, a seu devido tempo.

O Saldanha, o novo centro da cidade, por exemplo, não está moribundo, está automático e nervoso, e não se pode gostar muito daqueles dois buracos de vidro, nem do monóculo do pai de todos os liberais, o Duque de Saldanha, ainda meu parente longínquo de resto, de sangue e não de ideário.

A frase "sortilégio que chegue" também me parece muito Coimbra B. Ou há sortilégio e esse chega, ou não há, suponho eu ou supunha eu que quase começo a entrar na angst da desactualização. Mas calma , Miguel! Coimbra B, a luz dos povos, entretanto decide que há uma classificação de sortilégios! tipo o Campo Grande já não tem sortilégio que chegue mas o Campo Pequeno apesar de massacrado tem sortilégio que chegue. Bem, cfixe e catita! ao que vejo o exército da avaliação começou a chegar a tudo. Neste momento uma parte da cidade no juízo deste poderosíssimo oráculo da urbe ( a FC) é avaliada em quantidade de sortilégio. Quantos metros quadrados de soprtilégio ten caríssma área histórica? Tem que chegue? salve-se e assine-se. Não tem? Damn it! Que a história e o gosto colectivo rapidamente te esqueçam.

Sempre são divertidos estes singulares tempos. E sortílegos.

Enfim, o afortunado Campos Rosado mora na Baixa. A isabel Coutinho também.Concerteza que os louvo, um dos únicos lugares decentes da cidade para morar. Mas porque diabo vão querer fazer "creches" na Baixa?

Não compreendo a queixa do Campos Rosado ou por outra compreendo, é uma queixa de afortunado, diz ele com triosteza "não se pode parar um táxi na rua do Ouro nem da Prata." Maldição! A coisa é grave, Milorde. isto é inconcebível numa zona residencial. Depois quer-se uma alface fresca, e uma pessoa tem que galgar quilómetros. Não se pode dar um passeio aos sacos de plástico do suopermercado porque os patifes não existem aqui na zona. Quer uma pessoa dispôr as crianças no infectário ou na creche (rima com ché-ché) não pode. Insuportável!

Não sei como as Zaras foram parar na Baixa - aquela roupa que se desfaz em tão pouco tempo, quase toda infestada de materiais sintéticos e de um design espanhol en tercero grado intepretado do italiano . tudo isso não está lá? Oh deuses fenícios do consumo, pode lá ser: No Zara, no life!

Anónimo disse...

Pois é Drummas, desde o Eça que considerava o Grémio a sua Quinta no Chiado - satisfazia-se com pouco, sinal de estóico - que alguns de nós, excepto a Fernanda Câncio que só descobre a Baixa a reboque do Rosado, ficámos com o desejo de ir morar numa Quinta qualquer na Baixa. Podia ser uma Quinta de um só andar, nem sequer muito cimeiro, bastaria assomar à janela, ao de leve, e ver-se o rio a fluir. (mas agora acho que foge de Lisboa, com as mãos cobrindo os olhos.)
Claro que é uma Quinta cosmopolita, passam navios no lago-rio-ribeiro, zeppelins lentos e bojudos descem pela Foz do claro, ledo e amado Tejo, a doce preguiça que causa a veemente luz de Lisboa, misto de mar e rio, fica preciosamente activada na Baixa - que não é por acaso fosfórica, sítio de muita inteligência e tertúlia, onde se abatiam monarquias, preparavam revoluções políticas e literárias e se desencanalhava o monóculo em muita e boa palestra que ao mesmo tempo diminuía a espessura das mentes e dilatava a alma do dandy alfacinha, com talentos de flâneur e de esgrimista.
Nada disso mudou, a conspiratio mens ainda assenta arraiais por lá, o rebelde espírito do Bocage que nos frades via economistas, e nestes frades, por lá continua, muito esverdeado e a pingar gosma e peçonha na página da economia (a superstição literária do nosso tempo, a religião do presidente e do Constâncio), mas os tempos correm vulgares, a pileca do trânsito decidiu que havia de empatar até o táxi do Rosado! Crime grave.
Felizmente existe a Fnac - já se viu em Lisboa Livraria assim tão concorrida - não que seja um primor em termos de espaço, falta-lhe chic e cachet, tem a vulgaridade larga e cascuda das coisas democráticas a armar, mas mesmo assim em pouco tempo tornou-se um ícone contemporâneo. A livraria é um sucesso, passe o ar semi-Zaroso, tem de tudo, deixam os místicos e pobretas ler o que quiserem e ir-se embora sem obrigá-los a comprar - essa parte de biblioteca filantrópica rouba louros e ainda bem à Gulbenkian. Mas vendem imenso, desde o John Saussets o da economic illiteracy que agora anda na moda nos stuart millianos castiços, nos clássicos e nos neo ao velho Zola - um prazer ver que recuperam e renovam clássicos - eu como sabes sou um crente no poder da literatura e acho que a FNAC, àparte aquelas touches franco-funcionalistas, é o motor secreto da transformação da Baixa, ou um dos.
Por isso, nunca olhei com o olhar apocalíptico daqueles que com pouca vida dizem que as coisas é que a tem pouca. Que raio, quem tem vida faz vida fora de si, haja ou não pessoas, ou usos abusados dela como tu chamavas aos trotinetas, aos atmosferóides. e aos búzios amadores.
Por outro lado o Bairro Alto também é Baixa, apesar de ser Alto como Alto é o Chiado, e Baixa é tudo até ao Rato e a descida pela rua de Santa Catarina. O tio Fernando que tu ainda conheceste sempre de máquina Agfa em punho morava ali na Poço dos Negros, e homem, ele fazia Baixa naquela rua, que subia de eléctrico em direcção da Brasileira para tomar a bica com o Torrão (Visconde do).
Tudo isto para dizer sem os palavrões oficiosos que a Baixa é o nosso clássico, não só por ter as pégadas jurássicas do FPessoa ele mesmo, como as do Aquilino, do Batalha Reis, do Cesariny... e não escrevo mais senão os nomes em estela subiam até Sirius e afogavam este blog.
Mas agora dizes bem - andam a descobrir a pólvora! isto é tudo uma gente que veio da província - a província agora até podem ser os subúrbios. A outra, a Prado Coelho, como disseste, descobriu agora a Grande Pedra de Meca. Oh really. Eu também vou achando a isto graça, e rio-me com alguma clorose mefistofélica ao pensar que é esta gente que é agora opinion-maker, oráculo e Minerva. Claro tem que despachar artigos a metro, a concorrência dos jornais tipo Metro também aperta, e a prosa sofre e a ideia mingua. Clister para cima do cliché, e lá vai mais um fluxo de prosa! Qualquer dia far-nos-ão o favor de explicar que a rua do Ouro é na Baixa, que o João do Grão fica na...
É gente sem chá, neo-iluminada. Claro,agora vem-nos dizer que aquilo tem montes de vécu e de espaço. Não no-lo sabiam? Além de vulgosos os tempos andam distraídos: Lembras-te de uma das tuas máquinas patafísicas? O que eu me ri com o enfarda-passarinhos! e com a do perde-azulejos? Good Gracious. Nos nossos tempos oxonianos, foi um susto voltar ao Portugalo, mas felizmente a boa, estacada, pombalina, italianizante Baixa nos abriu os braços e em mansardas mil musas nos faziam o mesmo, e não percebo mas também percebo que o que parece haver agora é uma Grande Falta de Sereia.

A Baixa molinha, comfortable, burguesa, com tudo à porta do Rosado, os frescos, os sacos de plástico,a creche - desconsola-me. C'est ça la vie? O supermercado à mão, a creche, as enfermeiras do quotidiano, o previsível, o seguro...bem sabes que venho do Afeganistão. Brandos costumes os do Rosado! E tem logo solícita brigada de apoio a divulgar o seu queixume magoado por não se poder apanhar um táxi na rua do Ouro. Bem, Formidável, mas há muitíssimos mais Rosados hoje em dia, terão as suas Quintas no Chiado com ar condicionado? Suaves dicções os benzam! Que tenham sortilégios!
talvez lhes dêem um pouco de força na canela


Um abraço do teu,

José Vaz de Almada

PS e parabéns ao colaboradores deste blog - boa ideia, como é que se diz naqueles anúncios? Lisboa merece. As pessoas da cidade em geral, não. Mas Allah lá se resolverá um dia, a dar as quintas no Chiado as interiores e as exteriores (my favourite) a quem fez por elas em boa prosa,desenho e verso e acção, mon cher, como tu gostas.

Filipe Melo Sousa disse...

Não precisa de se justificar. Se gosta, é livre de lá adquirir um imóvel. Os portugueses gostam muito de se justificar.

Não está é livre de pagar avultados tributos e alcavalas aos burocratas que "gerem" a cidade.